Um ensaio sobre a fidelidade ao tempo antigo em tempos de ditadura do novo, sabem como é, coisas da nostalgia...
Tem
gente que acorda todos os dias querendo o mesmo café, no mesmo copo, na mesma
cadeira da cozinha, com o mesmo silêncio das sete e meia da manhã. E não é por
preguiça, tampouco por falta de criatividade. É por devoção. Por fidelidade.
Por acreditar que aquilo que foi bom não precisa ser enterrado só porque alguém
inventou um aplicativo novo.
Vivemos
na era da “ditadura do progresso” — um regime disfarçado de inovação, que impõe
a constante necessidade de mudar, atualizar, melhorar, superar. As palavras
“antigo”, “velho” e “repetido” tornaram-se quase palavrões no vocabulário
moderno. E, no entanto, há quem resista. Há quem sustente que o amanhã pode — e
deve — ser como o ontem. Que a repetição não é atraso, mas ritual. Que manter
algo como está não é preguiça de pensar, mas uma forma sofisticada de pensar
com o coração.
Contra
o culto do novo
A
modernidade vende uma ideia perigosa: a de que tudo o que é novo é melhor. Como
se o simples fato de algo ter vindo depois já o tornasse superior. Mas o que é
esse novo que todos perseguem com tanto fervor? Muitas vezes, nada mais que uma
variação cosmética do que já existe. Um amanhã ansioso, que não tem tempo de
amadurecer porque já quer ser substituído por um próximo amanhã ainda mais
“eficiente”.
Quem
resiste a isso, quem deseja um amanhã com o cheiro do pão de ontem, é visto
como anacrônico. Mas talvez seja apenas alguém que não se ilude. Alguém que, ao
invés de correr atrás do tempo como quem persegue um trem desgovernado, escolhe
caminhar lado a lado com ele, com passo firme e memória viva.
O
valor do eterno retorno
Nietzsche
falava do “eterno retorno”, não como uma maldição, mas como um teste de força
interior. Seria você capaz de viver a mesma vida, com as mesmas dores e as
mesmas alegrias, repetidamente? Muitos recuam diante da ideia. Mas há um tipo
de alma — talvez mais sábia, talvez mais amorosa — que responde: sim, eu
viveria. Porque o que me aconteceu não foi pouco, não foi banal. Foi
verdadeiro.
Para
essas pessoas, repetir não é estar preso: é estar em aliança com o que importa.
É confiar que certos gestos, mesmo que repetidos mil vezes, não perdem valor. O
beijo na testa do filho. A oração da avó. O mesmo caminho até o trabalho com o
sol nas costas. Esses momentos não envelhecem — eles se consolidam.
No
bairro os domingos são quase imóveis. Cheiro de churrasco, rádio FM no fundo.
Ali, ninguém corre. Ninguém quer mudar nada. E quando alguém novo chega,
querendo agitar, alguém sempre diz: “Calma. Aqui o tempo é outro.” Não é atraso
— é escolha. O amanhã ali já tem dono: é o mesmo de ontem, e ninguém quer
despejá-lo.
A
fidelidade ao que já foi
Há
uma beleza teimosa em manter certas coisas como estão. Cuidar da casa da
infância. Usar o mesmo perfume do primeiro encontro. Contar histórias antigas
com as mesmas palavras. Trata-se de uma fidelidade rara: não à novidade, mas ao
que já mostrou ser digno de permanecer. É quase um ato político — dizer não ao
descarte fácil, ao modismo, à velocidade que esmaga o significado.
Como
bem dizia o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, a verdadeira
tradição não é repetir por repetir, mas manter viva uma centelha que merece
atravessar os tempos. O amanhã como ontem não é nostalgia, é compromisso. Não é
regressão, é continuidade.
Finalizando
com um toque de silêncio
O
progresso grita, mas há quem escute o sussurro do tempo com reverência. Que o
amanhã seja como o ontem — não por medo de mudar, mas por amor ao que já foi
verdadeiro. E talvez essa escolha, tão silenciosa quanto radical, seja a única
forma de resistir a um mundo que confunde velocidade com sentido.