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quinta-feira, 5 de junho de 2025

Hipermodernismo

O mundo em alta velocidade

Vivemos tempos em que tudo parece urgente. As mensagens chegam com notificações sonoras, os prazos encurtam, e até o lazer vira tarefa com cronograma. É como se o mundo tivesse engatado a quinta marcha e esquecido o freio. Esse ritmo acelerado, saturado de informação, consumo e autocentramento é o que alguns pensadores chamam de hipermodernismo.

O termo foi popularizado pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky, especialmente em sua obra "Os tempos hipermodernos" (2004), onde ele afirma que não saímos da modernidade – apenas a aceleramos. Se a modernidade prometia progresso e razão, o hipermodernismo vive o excesso dessas promessas. É a modernidade no turbo.

No dia a dia, sentimos isso quando abrimos um aplicativo de delivery e nos deparamos com centenas de opções de comida — e mesmo assim ficamos indecisos. Ou quando estamos numa reunião virtual, respondendo e-mails e planejando o fim de semana, tudo ao mesmo tempo. É a era do multitarefa emocional e da ansiedade de escolha.

No hipermodernismo, o indivíduo é rei e prisioneiro. Valorizamos a autonomia, mas estamos sobrecarregados de decisões. Queremos autenticidade, mas somos constantemente moldados por algoritmos. O corpo virou projeto, o tempo virou investimento e a vida virou performance. É um tempo de liberdade individual máxima — e, paradoxalmente, de fragilidade emocional crescente.

Lipovetsky comenta que vivemos entre o prazer e o medo: queremos aproveitar a vida intensamente, mas somos constantemente lembrados dos riscos — das pandemias às mudanças climáticas. Por isso, há um culto à saúde, à segurança, à prevenção. O hipermoderno vive como se fosse morrer amanhã, mas faz planos de previdência para 40 anos.

Na prática, vemos isso na obsessão por bem-estar, autocuidado e produtividade. Não se trata mais apenas de "viver bem", mas de otimizar a existência.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han também alerta sobre essa era do desempenho, onde a liberdade se transforma em autoexploração. “A sociedade do desempenho é uma sociedade de cansaço”, diz ele. E talvez seja essa a grande armadilha do hipermodernismo: correr tanto para chegar a lugar nenhum.

Vamos a exemplos do hipermodernismo no cotidiano

Para entender melhor como o hipermodernismo atua, podemos observá-lo em áreas específicas da vida: arte, educação, trabalho e amor.

1. Arte: da contemplação à hiperexposição

Na arte hipermoderna, muitas vezes o valor não está mais na obra em si, mas em quantas curtidas ela recebe ou na sua capacidade de viralizar. Museus viraram cenários de selfies. Exposições são organizadas já pensando na estética do Instagram. A experiência artística se transforma em espetáculo visual instantâneo — rápida, compartilhável, fotogênica.

Um exemplo claro são as chamadas “exposições imersivas”, como as de Van Gogh ou Monet: elas priorizam o impacto sensorial e o consumo rápido da arte, muitas vezes mais do que o contato reflexivo com a obra original.

2. Educação: aprender para quê?

A escola hipermoderna lida com alunos que têm acesso a tudo e, ao mesmo tempo, estão perdidos no excesso. Querem saber "pra que serve isso", mas muitas vezes estão mais interessados em hacks, resumos ou inteligência artificial do que no processo do saber. O conhecimento, nesse cenário, vira produto e não jornada.

Professores se veem pressionados a entreter, competir com telas e adaptar o conteúdo para caber em vídeos curtos. O problema? O pensamento crítico e profundo precisa de tempo, pausa e silêncio — elementos escassos na lógica hipermoderna.

3. Trabalho: 24h on-line

O trabalho invadiu a casa. A linha entre "vida pessoal" e "vida profissional" se dissolveu no home office. Mesmo fora do expediente, as pessoas continuam acessíveis, respondendo mensagens, “aproveitando o tempo” para adiantar tarefas.

O culto à produtividade se manifesta em aplicativos de metas, reuniões sem fim, cursos de alta performance e métricas de rendimento. O que era apenas trabalho virou projeto de vida — e muitas vezes, fonte de culpa: nunca é o suficiente, sempre dá para melhorar.

4. Amor: o consumo do outro

No campo afetivo, o hipermodernismo se mostra em relações líquidas, como diria Zygmunt Bauman, mas agora aceleradas por aplicativos de relacionamento. Há uma sensação de infinita possibilidade, mas também uma incapacidade de investir em profundidade.

As pessoas deslizam para o lado como quem escolhe uma pizza: por imagem, por gosto imediato, descartando o que não agrada num segundo. O outro se torna um espelho — e muitas vezes um produto — do nosso desejo de reconhecimento.

E agora?

Diante desse panorama, não se trata de rejeitar a modernidade, mas de frear um pouco — ou pelo menos criar zonas de silêncio, de presença, de pausa. Um café com um amigo, uma tarde offline, uma conversa sem objetivos. Pequenos gestos que podem parecer anacrônicos, mas que nos devolvem o que o hipermodernismo tenta nos tomar: tempo e presença.

Como diz o escritor italiano Franco “Bifo” Berardi, “a lentidão é o novo luxo”. E talvez, em tempos de hipermodernismo, viver devagar seja um ato revolucionário.

Agora vamos as consequências psicológicas do hipermodernismo — e o que pensadores e terapeutas estão propondo como caminhos possíveis.

As feridas silenciosas do hipermoderno

Viver num mundo de excesso, velocidade e visibilidade traz consequências. Por fora, tudo parece bem — produtividade alta, corpo em forma, redes sociais ativas. Mas por dentro, muitos enfrentam um cansaço invisível, uma exaustão que não tem nome exato, mas que se manifesta em forma de ansiedade, insônia, sensação de vazio ou falta de sentido.

1. Ansiedade e o medo de ficar para trás

Nunca tivemos tanta liberdade para ser quem quisermos. Mas essa liberdade vira cobrança: "o que você está fazendo da sua vida?", "por que ainda não empreendeu?", "por que você ainda não se encontrou?".

O resultado é um estado constante de comparação, de sensação de insuficiência. Tudo parece urgente e insuficiente ao mesmo tempo. Você pode estar bem, mas alguém sempre está melhor. E nas redes, todos parecem felizes — menos você.

2. Burnout como epidemia emocional

No hipermodernismo, até o descanso precisa ter função: a meditação deve aumentar seu foco, a caminhada precisa queimar calorias, e o tempo livre tem que ser “bem aproveitado”. Assim, o descanso verdadeiro — aquele sem meta, sem controle, sem finalidade — se torna raro.

O burnout, antes restrito a profissões de alta pressão, agora aparece em estudantes, donas de casa, influenciadores digitais e aposentados. Não é só o corpo que cansa — é a alma.

Byung-Chul Han chama isso de “violência neuronal”: a mente deixa de ser oásis para virar campo de batalha.

3. O eu como projeto infinito

A promessa do hipermodernismo é: você pode ser qualquer coisa. Mas o preço é: você deve ser tudo. O corpo deve estar em forma, a mente em equilíbrio, a carreira em ascensão, a vida social ativa, e o feed do Instagram bonito.

O sujeito hipermoderno vive num projeto infinito de si mesmo — sem fim, sem pausa, sem sossego. E o medo de falhar se mistura com o medo de não ser visto.

E as saídas?

Alguns pensadores sugerem caminhos que não passam por largar tudo e viver no mato (apesar de, às vezes, dar vontade).

1. Reencantar a rotina

O filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella costuma dizer que é preciso dar sentido ao cotidiano, não buscar sentido fora dele. Isso significa resgatar o valor das pequenas coisas: um café tranquilo, uma conversa com os filhos, um banho demorado. Redescobrir o valor da lentidão.

2. Criar zonas de invisibilidade

A psicóloga e filósofa Eva Illouz fala da tirania da exposição. Uma resposta possível é deliberadamente escolher momentos de invisibilidade. Não postar. Não responder. Desligar. Não porque você está ausente, mas porque está presente — no que realmente importa.

3. Cultivar vínculos profundos

Na lógica hipermoderna, relações são substituíveis. Mas o que nos sustenta, no fim, são os vínculos profundos — aqueles que resistem ao tempo, às falhas e às fases ruins. Cultivar amizade, parceria e escuta talvez seja mais urgente do que qualquer outro investimento.

Concluindo: O hipermodernismo não é um erro. Ele é uma consequência de um mundo que deu certo demais em algumas áreas — tecnologia, liberdade, consumo — mas perdeu o eixo do cuidado, da pausa e do sentido.

Como toda época, a nossa também pode ser repensada. E talvez, mais do que resistir, o caminho seja reeducar o olhar. Aprender a dizer "não", a estar offline, a não performar. A ser, e não só parecer.

Como escreveu o poeta Manoel de Barros:

“O que sustenta o ser não é o muito, é o pouco.

O quase nada.

O invisível.”


sábado, 12 de abril de 2025

Amanhã Como Ontem

Um ensaio sobre a fidelidade ao tempo antigo em tempos de ditadura do novo, sabem como é, coisas da nostalgia...

Tem gente que acorda todos os dias querendo o mesmo café, no mesmo copo, na mesma cadeira da cozinha, com o mesmo silêncio das sete e meia da manhã. E não é por preguiça, tampouco por falta de criatividade. É por devoção. Por fidelidade. Por acreditar que aquilo que foi bom não precisa ser enterrado só porque alguém inventou um aplicativo novo.

Vivemos na era da “ditadura do progresso” — um regime disfarçado de inovação, que impõe a constante necessidade de mudar, atualizar, melhorar, superar. As palavras “antigo”, “velho” e “repetido” tornaram-se quase palavrões no vocabulário moderno. E, no entanto, há quem resista. Há quem sustente que o amanhã pode — e deve — ser como o ontem. Que a repetição não é atraso, mas ritual. Que manter algo como está não é preguiça de pensar, mas uma forma sofisticada de pensar com o coração.

Contra o culto do novo

A modernidade vende uma ideia perigosa: a de que tudo o que é novo é melhor. Como se o simples fato de algo ter vindo depois já o tornasse superior. Mas o que é esse novo que todos perseguem com tanto fervor? Muitas vezes, nada mais que uma variação cosmética do que já existe. Um amanhã ansioso, que não tem tempo de amadurecer porque já quer ser substituído por um próximo amanhã ainda mais “eficiente”.

Quem resiste a isso, quem deseja um amanhã com o cheiro do pão de ontem, é visto como anacrônico. Mas talvez seja apenas alguém que não se ilude. Alguém que, ao invés de correr atrás do tempo como quem persegue um trem desgovernado, escolhe caminhar lado a lado com ele, com passo firme e memória viva.

O valor do eterno retorno

Nietzsche falava do “eterno retorno”, não como uma maldição, mas como um teste de força interior. Seria você capaz de viver a mesma vida, com as mesmas dores e as mesmas alegrias, repetidamente? Muitos recuam diante da ideia. Mas há um tipo de alma — talvez mais sábia, talvez mais amorosa — que responde: sim, eu viveria. Porque o que me aconteceu não foi pouco, não foi banal. Foi verdadeiro.

Para essas pessoas, repetir não é estar preso: é estar em aliança com o que importa. É confiar que certos gestos, mesmo que repetidos mil vezes, não perdem valor. O beijo na testa do filho. A oração da avó. O mesmo caminho até o trabalho com o sol nas costas. Esses momentos não envelhecem — eles se consolidam.

No bairro os domingos são quase imóveis. Cheiro de churrasco, rádio FM no fundo. Ali, ninguém corre. Ninguém quer mudar nada. E quando alguém novo chega, querendo agitar, alguém sempre diz: “Calma. Aqui o tempo é outro.” Não é atraso — é escolha. O amanhã ali já tem dono: é o mesmo de ontem, e ninguém quer despejá-lo.

A fidelidade ao que já foi

Há uma beleza teimosa em manter certas coisas como estão. Cuidar da casa da infância. Usar o mesmo perfume do primeiro encontro. Contar histórias antigas com as mesmas palavras. Trata-se de uma fidelidade rara: não à novidade, mas ao que já mostrou ser digno de permanecer. É quase um ato político — dizer não ao descarte fácil, ao modismo, à velocidade que esmaga o significado.

Como bem dizia o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, a verdadeira tradição não é repetir por repetir, mas manter viva uma centelha que merece atravessar os tempos. O amanhã como ontem não é nostalgia, é compromisso. Não é regressão, é continuidade.

Finalizando com um toque de silêncio

O progresso grita, mas há quem escute o sussurro do tempo com reverência. Que o amanhã seja como o ontem — não por medo de mudar, mas por amor ao que já foi verdadeiro. E talvez essa escolha, tão silenciosa quanto radical, seja a única forma de resistir a um mundo que confunde velocidade com sentido.