Quando a Máquina Veste Terno e Gravata...
Outro
dia, preso num engarrafamento, reparei que o semáforo da esquina parecia
ignorar completamente a realidade. Nenhum carro na transversal, e ainda assim
ali estávamos, parados, obedientes ao sinal vermelho de um algoritmo mal
programado. Foi ali, no calor do asfalto, que me veio o pensamento: e se a
ideologia tecnocrata for justamente isso — a crença de que a solução para a
complexidade humana é entregar o volante às máquinas, às planilhas e aos
“especialistas”?
A
sedução da neutralidade
A
ideologia tecnocrata nasce de uma promessa aparentemente inocente: decisões
racionais, baseadas em dados, longe das paixões políticas ou dos conflitos
ideológicos. Quem não gostaria de um governo onde tudo funciona como um relógio
suíço? Onde médicos decidem sobre a saúde, engenheiros sobre a infraestrutura,
economistas sobre a economia — e políticos, bem, só apertam os botões?
Mas
esse sonho de precisão técnica esconde uma armadilha. A neutralidade é uma
fantasia. Toda escolha técnica repousa sobre valores, mesmo que velados. Quando
um urbanista decide priorizar viadutos em vez de transporte público, há uma
ideologia ali, ainda que venha embalada em gráficos e termos técnicos. Quando
um algoritmo decide quem merece crédito ou quem pode sair da prisão com base em
padrões estatísticos, há julgamentos morais embutidos nas fórmulas.
Exemplos
que moram ao nosso lado
No
cotidiano, a ideologia tecnocrata se infiltra de modo quase invisível. Veja o
caso das escolas: muitas famílias escolhem instituições de ensino com base no
desempenho em rankings nacionais, como se educar uma criança fosse equivalente
a ranquear um produto no e-commerce. A educação vira número, enquanto a
formação ética, o diálogo e a criatividade — difíceis de mensurar — vão sendo
empurrados para o rodapé do boletim.
Nas
empresas, o setor de Recursos Humanos se modernizou tanto que às vezes já não
há mais “humanos” ali. Softwares analisam currículos, monitoram produtividade,
medem “engajamento” e até sugerem promoções ou demissões. O gestor apenas
“valida” o que o sistema já decidiu. Quem define o destino de uma carreira,
então? Um gráfico de desempenho trimestral. A singularidade da pessoa é
achatada pela régua da eficiência.
Na
área da saúde, plataformas de atendimento automatizado muitas vezes decidem se
você será atendido por um clínico, encaminhado para exames ou simplesmente
dispensado com uma dica genérica de autocuidado. É a medicina da estatística.
Rápida, funcional — mas será que escuta?
Habermas
e o “mundo da vida” colonizado
É
aqui que entra Jürgen Habermas. Em sua crítica à tecnocracia, ele alerta para a
colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-instrumentais. O que
ele quer dizer com isso? Que a lógica dos sistemas — como o dinheiro e o poder
administrativo — começa a invadir a esfera da vida cotidiana, onde as pessoas
se comunicam, compartilham significados, tomam decisões em comum.
Para
ele, uma sociedade saudável precisa de espaço para o agir comunicativo —
o diálogo livre de coerção, onde os indivíduos deliberam sobre o que é melhor
para todos. A tecnocracia, ao contrário, transforma decisões políticas em
soluções técnicas e silencia a participação democrática. O debate é substituído
pelo diagnóstico técnico. O “nós” vira “eles decidem”.
Habermas
não despreza a técnica, mas exige que ela se submeta ao discurso público. É a
democracia que deve guiar a tecnologia, e não o contrário.
O
governo dos competentes?
Platão,
no seu A República, já sonhava com um governo dos sábios, os
filósofos-reis. Mas mesmo ele sabia que o saber filosófico exige uma forma de
sabedoria sobre o bem comum, não apenas o domínio técnico de um campo. A
tecnocracia, ao contrário, confunde competência técnica com sabedoria moral. Um
engenheiro pode ser ótimo em cálculos estruturais e ainda assim propor um
projeto urbano que expulsa os mais pobres da cidade. Um especialista em
segurança pode aumentar a vigilância e reduzir o crime, mas ao preço da
liberdade.
Como
lembra Hannah Arendt, a política não é o lugar da gestão, mas da convivência
com a pluralidade humana. Reduzir a política à técnica é amputar seu coração: o
debate sobre os fins, e não apenas sobre os meios.
O
poder sem rosto
A
ideologia tecnocrata cria um poder difuso, sem rosto, onde as decisões parecem
inevitáveis. "Não há alternativa", dizem — porque os números, as
métricas, os dados assim mandam. A política, nesse cenário, vira mera
administração. E o cidadão, em vez de sujeito de direitos, vira cliente de
serviços públicos.
Michel
Foucault chamaria isso de biopolítica: o controle da vida através de
aparatos de saber e poder. O cidadão ideal, para a tecnocracia, é aquele que se
encaixa nas planilhas — que não atrasa, não adoece fora de hora, não protesta.
E
a alma humana?
N.
Sri Ram, pensador da Teosofia, dizia que “nenhuma estrutura, por mais eficaz
que pareça, pode suprir a ausência de consciência”. A tecnocracia nos convida a
terceirizar essa consciência — a acreditar que o especialista pensa melhor por
nós. Mas há perguntas que nenhuma inteligência artificial pode responder: o que
é justo? O que é belo? O que é humano?
Por
um reencantamento da política
A
crítica à tecnocracia não é um elogio à incompetência ou ao populismo
ignorante. É um chamado ao equilíbrio: a técnica é fundamental, mas deve estar
subordinada à ética, à escuta e à deliberação coletiva. O saber técnico precisa
dialogar com a sensibilidade, com a história e com as aspirações humanas.
Se
deixarmos a política virar mera equação, corremos o risco de viver num mundo
funcional — mas sem sentido. Um mundo onde tudo funciona, menos o essencial: o
direito de sermos mais do que números.