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sábado, 24 de maio de 2025

Questão de Controle

Outro dia, estava sentado na sala de espera do laboratório, reparei em como tudo ali parecia tão... clínico. Luz branca, silêncio, cartazes sobre diabetes, colesterol e vacinação, só se ouvia a voz da atendente chamando para atendimento. As pessoas entravam e saíam como peças de um sistema bem organizado. E me veio uma pergunta: será que estamos mesmo vivendo, ou só mantendo o corpo funcionando?

Essa pergunta – entre o viver e o sobreviver – não é nova. Ela atravessa a filosofia desde a Grécia antiga e ganha contornos urgentes nos tempos modernos. Michel Foucault, Giorgio Agamben, Hannah Arendt e outros nos ajudaram a perceber que o poder não governa apenas por leis ou armas. Ele governa pela vida. Ou melhor, sobre a vida.

Neste ensaio, vamos explorar quatro conceitos entrelaçados: biopoder, biopolítica, zoé e bíos – e tentar entender como, muitas vezes, nossa existência se transforma em objeto de estatística, política pública e decisão estatal.

Biopoder: o poder que entra na pele

Michel Foucault foi um dos primeiros a mostrar que o poder moderno não se limita a mandar ou punir. Ele se infiltra na gestão da saúde, da reprodução, da alimentação, da sexualidade. Ele quer manter a população viva, saudável e produtiva.

O nome disso? Biopoder – o poder que se exerce sobre os corpos vivos. É um tipo de cuidado que vem junto com controle. Quando o governo lança uma campanha para reduzir o consumo de sal, ou quando um aplicativo conta quantos passos você deu, o biopoder está em ação.

A novidade aqui é que não se trata mais de decidir quem deve morrer, como no poder soberano antigo. Trata-se de decidir como a vida deve ser vivida, quantificada, vigiada, modelada.

Biopolítica: quando viver vira projeto do Estado

A biopolítica é a extensão prática e estratégica do biopoder. Se o poder tem interesse na vida, ele também precisa planejar essa vida coletivamente. E isso se faz com políticas públicas, dados populacionais, decisões sanitárias.

A biopolítica decide, por exemplo, que tipos de corpos devem ser incentivados (esportivos, saudáveis), que hábitos devem ser corrigidos (fumar, comer mal) e que grupos devem ser protegidos (crianças, idosos) ou deixados à margem.

É também através da biopolítica que se define quem merece viver plenamente e quem será apenas tolerado biologicamente.

Zoé e Bíos: duas formas de existir

Na Grécia antiga, havia duas palavras para "vida": zoé e bíos.

  • Zoé é a vida nua, biológica, comum a todos os seres vivos. Respirar, se alimentar, existir como organismo.
  • Bíos é a vida qualificada, política, cultural. É viver com sentido, com relações, com expressão social.

Na modernidade, Giorgio Agamben percebeu que o biopoder frequentemente empurra certos grupos para a condição de zoé: vivos, mas sem cidadania plena. Isso é visível em campos de refugiados, populações encarceradas, moradores de rua. Estão vivos, mas fora do jogo político. Fora do bíos.

O Estado os mantém vivos, mas não os escuta, não os reconhece, não os representa.

A vida nua: o risco de existir apenas como corpo

Agamben chama de vida nua esse estado em que se está vivo biologicamente, mas excluído politicamente. E isso acontece mais frequentemente do que imaginamos. Quando o poder decide suspender direitos em nome de uma emergência sanitária ou de segurança, ele cria um estado de exceção – onde o corpo continua respirando, mas a pessoa deixa de ser sujeito político.

Hannah Arendt já havia nos alertado: viver não é suficiente. É preciso ser visível, atuante, dotado de voz. Sem isso, viramos apenas organismos úteis ou descartáveis.

E nós, como vivemos?

Talvez estejamos todos, em maior ou menor grau, num equilíbrio instável entre zoé e bíos. Somos incentivados a cuidar da saúde, mas também somos constantemente vigiados. Temos liberdade de ir e vir, mas somos condicionados por algoritmos, protocolos sanitários, normas de conduta.

A pergunta que fica é: estamos vivendo com profundidade, afetos e escolhas? Ou apenas seguindo protocolos biológicos e sociais que nos mantêm produtivos?

Respirar é viver?

Respirar, sim, é condição básica da vida. Mas viver de fato exige mais: exige ser escutado, reconhecido, desejado. A política da vida não pode se reduzir à gestão de corpos. Ela deve incluir o direito ao bíos: à palavra, ao afeto, à diferença, ao tempo não cronometrado.

Se o poder hoje se exerce sobre a vida, nossa resistência talvez esteja em reivindicar mais do que a sobrevivência. Reivindicar uma vida que valha a pena ser vivida – mesmo que isso exija desobedecer um pouco às estatísticas.


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Ideologia Tecnocrata

 

Quando a Máquina Veste Terno e Gravata...

Outro dia, preso num engarrafamento, reparei que o semáforo da esquina parecia ignorar completamente a realidade. Nenhum carro na transversal, e ainda assim ali estávamos, parados, obedientes ao sinal vermelho de um algoritmo mal programado. Foi ali, no calor do asfalto, que me veio o pensamento: e se a ideologia tecnocrata for justamente isso — a crença de que a solução para a complexidade humana é entregar o volante às máquinas, às planilhas e aos “especialistas”?

A sedução da neutralidade

A ideologia tecnocrata nasce de uma promessa aparentemente inocente: decisões racionais, baseadas em dados, longe das paixões políticas ou dos conflitos ideológicos. Quem não gostaria de um governo onde tudo funciona como um relógio suíço? Onde médicos decidem sobre a saúde, engenheiros sobre a infraestrutura, economistas sobre a economia — e políticos, bem, só apertam os botões?

Mas esse sonho de precisão técnica esconde uma armadilha. A neutralidade é uma fantasia. Toda escolha técnica repousa sobre valores, mesmo que velados. Quando um urbanista decide priorizar viadutos em vez de transporte público, há uma ideologia ali, ainda que venha embalada em gráficos e termos técnicos. Quando um algoritmo decide quem merece crédito ou quem pode sair da prisão com base em padrões estatísticos, há julgamentos morais embutidos nas fórmulas.

Exemplos que moram ao nosso lado

No cotidiano, a ideologia tecnocrata se infiltra de modo quase invisível. Veja o caso das escolas: muitas famílias escolhem instituições de ensino com base no desempenho em rankings nacionais, como se educar uma criança fosse equivalente a ranquear um produto no e-commerce. A educação vira número, enquanto a formação ética, o diálogo e a criatividade — difíceis de mensurar — vão sendo empurrados para o rodapé do boletim.

Nas empresas, o setor de Recursos Humanos se modernizou tanto que às vezes já não há mais “humanos” ali. Softwares analisam currículos, monitoram produtividade, medem “engajamento” e até sugerem promoções ou demissões. O gestor apenas “valida” o que o sistema já decidiu. Quem define o destino de uma carreira, então? Um gráfico de desempenho trimestral. A singularidade da pessoa é achatada pela régua da eficiência.

Na área da saúde, plataformas de atendimento automatizado muitas vezes decidem se você será atendido por um clínico, encaminhado para exames ou simplesmente dispensado com uma dica genérica de autocuidado. É a medicina da estatística. Rápida, funcional — mas será que escuta?

Habermas e o “mundo da vida” colonizado

É aqui que entra Jürgen Habermas. Em sua crítica à tecnocracia, ele alerta para a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-instrumentais. O que ele quer dizer com isso? Que a lógica dos sistemas — como o dinheiro e o poder administrativo — começa a invadir a esfera da vida cotidiana, onde as pessoas se comunicam, compartilham significados, tomam decisões em comum.

Para ele, uma sociedade saudável precisa de espaço para o agir comunicativo — o diálogo livre de coerção, onde os indivíduos deliberam sobre o que é melhor para todos. A tecnocracia, ao contrário, transforma decisões políticas em soluções técnicas e silencia a participação democrática. O debate é substituído pelo diagnóstico técnico. O “nós” vira “eles decidem”.

Habermas não despreza a técnica, mas exige que ela se submeta ao discurso público. É a democracia que deve guiar a tecnologia, e não o contrário.

O governo dos competentes?

Platão, no seu A República, já sonhava com um governo dos sábios, os filósofos-reis. Mas mesmo ele sabia que o saber filosófico exige uma forma de sabedoria sobre o bem comum, não apenas o domínio técnico de um campo. A tecnocracia, ao contrário, confunde competência técnica com sabedoria moral. Um engenheiro pode ser ótimo em cálculos estruturais e ainda assim propor um projeto urbano que expulsa os mais pobres da cidade. Um especialista em segurança pode aumentar a vigilância e reduzir o crime, mas ao preço da liberdade.

Como lembra Hannah Arendt, a política não é o lugar da gestão, mas da convivência com a pluralidade humana. Reduzir a política à técnica é amputar seu coração: o debate sobre os fins, e não apenas sobre os meios.

O poder sem rosto

A ideologia tecnocrata cria um poder difuso, sem rosto, onde as decisões parecem inevitáveis. "Não há alternativa", dizem — porque os números, as métricas, os dados assim mandam. A política, nesse cenário, vira mera administração. E o cidadão, em vez de sujeito de direitos, vira cliente de serviços públicos.

Michel Foucault chamaria isso de biopolítica: o controle da vida através de aparatos de saber e poder. O cidadão ideal, para a tecnocracia, é aquele que se encaixa nas planilhas — que não atrasa, não adoece fora de hora, não protesta.

E a alma humana?

N. Sri Ram, pensador da Teosofia, dizia que “nenhuma estrutura, por mais eficaz que pareça, pode suprir a ausência de consciência”. A tecnocracia nos convida a terceirizar essa consciência — a acreditar que o especialista pensa melhor por nós. Mas há perguntas que nenhuma inteligência artificial pode responder: o que é justo? O que é belo? O que é humano?

Por um reencantamento da política

A crítica à tecnocracia não é um elogio à incompetência ou ao populismo ignorante. É um chamado ao equilíbrio: a técnica é fundamental, mas deve estar subordinada à ética, à escuta e à deliberação coletiva. O saber técnico precisa dialogar com a sensibilidade, com a história e com as aspirações humanas.

Se deixarmos a política virar mera equação, corremos o risco de viver num mundo funcional — mas sem sentido. Um mundo onde tudo funciona, menos o essencial: o direito de sermos mais do que números.