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quinta-feira, 17 de julho de 2025

Ideologia do Trabalho

O que nos move e o que nos esgota

Nunca saímos do momento presente! Esta frase não sai da minha mente, ela fica martelando a cabeça o tempo todo, eis que meus pensamentos me conduziram naquilo que a maioria das pessoas faz que é trabalhar, o ser humano de maneira geral adquire valor através do trabalho, pelo menos é assim que nosso mundo entende, mas nem sempre o trabalho foi visto como valor. Já foi castigo divino, obrigação de escravos, necessidade dos pobres. Hoje, ele se confunde com identidade: quem é você? “Sou dentista.” “Sou entregador.” “Sou gerente.” O verbo “ser” aparece antes mesmo de qualquer outra coisa — como se o que fazemos definisse quem somos. Na verdade, penso que estamos por enquanto, agora uma coisa e daqui a pouco outra.

Mas de onde vem essa ideia? Por que tantas pessoas se sentem culpadas quando não estão produzindo? Por que o desemprego causa vergonha, mesmo quando não é culpa de ninguém?

A resposta começa com um olhar sociológico: o trabalho é uma construção social. Ele não é natural, nem sempre teve o mesmo sentido. A forma como pensamos e sentimos o trabalho é atravessada por ideologias — sistemas de crenças que nos ensinam o que é certo, o que é bonito, o que é digno — e também por experiências psicológicas que marcam profundamente nossa relação com o mundo e conosco.

 

A maquiagem ideológica do trabalho

Na sociedade capitalista, o trabalho é exaltado como virtude. Desde pequenos, aprendemos que “quem trabalha vence” e que “o esforço traz recompensa”. Essas frases soam nobres, mas muitas vezes escondem realidades duras.

Um exemplo atual é o do entregador de aplicativo. Ele pedala o dia inteiro, sem salário fixo, sem direitos, sem proteção social. Mas as empresas o chamam de “empreendedor”. Essa ideia é uma maquiagem ideológica: transforma um trabalhador precarizado em um herói moderno da liberdade. Ao dizer que ele “é seu próprio patrão”, esconde-se que ele está preso a um sistema algorítmico, instável e impessoal.

Essa ideologia do empreendedorismo individual vende liberdade, mas entrega solidão e risco. A responsabilidade pelo sucesso ou fracasso recai apenas sobre o sujeito, nunca sobre o sistema.

 

A psicologia de quem se sente culpado por não render

A consequência disso aparece no plano psicológico. Muitos trabalhadores internalizam a ideia de que não estão se esforçando o suficiente. Mesmo exaustos, pensam que precisam “fazer mais”, “entregar mais”, “ser melhores”. O cansaço vira fracasso pessoal.

Além disso, vivemos hoje sob a promessa do “trabalho com propósito”. Não basta mais pagar as contas — o trabalho tem que ser apaixonante. Essa exigência cria angústia. Afinal, e se meu trabalho não for incrível? E se eu não amar o que faço? A culpa bate como se a vida estivesse errada.

E o desemprego, então? Ele não é só falta de renda — é quase um luto. A pessoa perde não só o salário, mas também o sentido, o pertencimento, a rotina. A ideologia do mérito ensina que “quem quer, consegue”, e o desempregado passa a se sentir um fracassado, mesmo sendo vítima de uma crise, de uma reestruturação, de algo muito maior do que ele.

Não se pode ignorar que há religiões que associam o sucesso profissional e a melhoria das condições de vida a uma espécie de reconhecimento ou bênção divina. Nesse contexto, aqueles que não conseguem progredir, obter um emprego digno ou melhorar sua situação econômica podem acabar se sentindo excluídos desse suposto favor divino. Psicologicamente, isso pode gerar um profundo sentimento de rejeição, como se o amor de Deus não os alcançasse. O resultado é uma carga emocional de frustração, derrota e desânimo — sentimentos que, longe de impulsionar a pessoa, muitas vezes a paralisam e dificultam ainda mais seu progresso.

 

A sociologia que desnaturaliza tudo

A sociologia nos convida a olhar tudo isso com outros olhos. Ela mostra que o trabalho, como o conhecemos, foi moldado por séculos de disputas, transformações e imposições culturais. A ideologia faz com que certas formas de trabalho sejam vistas como “superiores” (advogado, médico), enquanto outras, essenciais, sejam desvalorizadas (faxineiro, motorista, cuidadora).

O sociólogo Max Weber, por exemplo, analisou como a ética protestante ajudou a criar a ideia moderna do trabalho como dever moral. Já Karl Marx denunciou a alienação: o trabalhador moderno perde o controle sobre o que produz, e ainda assim é convencido de que deve se orgulhar disso. Pierre Bourdieu mostrou como o trabalho também é um capital simbólico — ele dá prestígio, status, reconhecimento, ou a falta disso.

E entre os brasileiros, José de Souza Martins nos lembra que o trabalho é, ao mesmo tempo, meio de inclusão e exclusão. Ele pode dignificar ou degradar. Pode dar sentido ou sugar a alma.

 

Entre o dever e a identidade

No fim das contas, o trabalho está no centro de uma encruzilhada. Ele é necessário, mas também pode ser opressor. Pode ser fonte de autoestima ou de adoecimento. E muitas vezes, as ideologias nos ensinam a amar o que nos explora, e a nos culpar pelo que nos falta.

Por isso, entender o trabalho não é só falar de salário, função ou carreira. É também entender como nos construímos como sujeitos — e como podemos nos libertar, aos poucos, da ideia de que o trabalho define todo o nosso valor.

Talvez seja hora de recuperar o sentido mais amplo da vida: trabalhar, sim, mas também viver, pensar, sentir, pertencer. Nem toda vocação precisa ter crachá. E nem todo sucesso se mede por produção.


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Ideologia Tecnocrata

 

Quando a Máquina Veste Terno e Gravata...

Outro dia, preso num engarrafamento, reparei que o semáforo da esquina parecia ignorar completamente a realidade. Nenhum carro na transversal, e ainda assim ali estávamos, parados, obedientes ao sinal vermelho de um algoritmo mal programado. Foi ali, no calor do asfalto, que me veio o pensamento: e se a ideologia tecnocrata for justamente isso — a crença de que a solução para a complexidade humana é entregar o volante às máquinas, às planilhas e aos “especialistas”?

A sedução da neutralidade

A ideologia tecnocrata nasce de uma promessa aparentemente inocente: decisões racionais, baseadas em dados, longe das paixões políticas ou dos conflitos ideológicos. Quem não gostaria de um governo onde tudo funciona como um relógio suíço? Onde médicos decidem sobre a saúde, engenheiros sobre a infraestrutura, economistas sobre a economia — e políticos, bem, só apertam os botões?

Mas esse sonho de precisão técnica esconde uma armadilha. A neutralidade é uma fantasia. Toda escolha técnica repousa sobre valores, mesmo que velados. Quando um urbanista decide priorizar viadutos em vez de transporte público, há uma ideologia ali, ainda que venha embalada em gráficos e termos técnicos. Quando um algoritmo decide quem merece crédito ou quem pode sair da prisão com base em padrões estatísticos, há julgamentos morais embutidos nas fórmulas.

Exemplos que moram ao nosso lado

No cotidiano, a ideologia tecnocrata se infiltra de modo quase invisível. Veja o caso das escolas: muitas famílias escolhem instituições de ensino com base no desempenho em rankings nacionais, como se educar uma criança fosse equivalente a ranquear um produto no e-commerce. A educação vira número, enquanto a formação ética, o diálogo e a criatividade — difíceis de mensurar — vão sendo empurrados para o rodapé do boletim.

Nas empresas, o setor de Recursos Humanos se modernizou tanto que às vezes já não há mais “humanos” ali. Softwares analisam currículos, monitoram produtividade, medem “engajamento” e até sugerem promoções ou demissões. O gestor apenas “valida” o que o sistema já decidiu. Quem define o destino de uma carreira, então? Um gráfico de desempenho trimestral. A singularidade da pessoa é achatada pela régua da eficiência.

Na área da saúde, plataformas de atendimento automatizado muitas vezes decidem se você será atendido por um clínico, encaminhado para exames ou simplesmente dispensado com uma dica genérica de autocuidado. É a medicina da estatística. Rápida, funcional — mas será que escuta?

Habermas e o “mundo da vida” colonizado

É aqui que entra Jürgen Habermas. Em sua crítica à tecnocracia, ele alerta para a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-instrumentais. O que ele quer dizer com isso? Que a lógica dos sistemas — como o dinheiro e o poder administrativo — começa a invadir a esfera da vida cotidiana, onde as pessoas se comunicam, compartilham significados, tomam decisões em comum.

Para ele, uma sociedade saudável precisa de espaço para o agir comunicativo — o diálogo livre de coerção, onde os indivíduos deliberam sobre o que é melhor para todos. A tecnocracia, ao contrário, transforma decisões políticas em soluções técnicas e silencia a participação democrática. O debate é substituído pelo diagnóstico técnico. O “nós” vira “eles decidem”.

Habermas não despreza a técnica, mas exige que ela se submeta ao discurso público. É a democracia que deve guiar a tecnologia, e não o contrário.

O governo dos competentes?

Platão, no seu A República, já sonhava com um governo dos sábios, os filósofos-reis. Mas mesmo ele sabia que o saber filosófico exige uma forma de sabedoria sobre o bem comum, não apenas o domínio técnico de um campo. A tecnocracia, ao contrário, confunde competência técnica com sabedoria moral. Um engenheiro pode ser ótimo em cálculos estruturais e ainda assim propor um projeto urbano que expulsa os mais pobres da cidade. Um especialista em segurança pode aumentar a vigilância e reduzir o crime, mas ao preço da liberdade.

Como lembra Hannah Arendt, a política não é o lugar da gestão, mas da convivência com a pluralidade humana. Reduzir a política à técnica é amputar seu coração: o debate sobre os fins, e não apenas sobre os meios.

O poder sem rosto

A ideologia tecnocrata cria um poder difuso, sem rosto, onde as decisões parecem inevitáveis. "Não há alternativa", dizem — porque os números, as métricas, os dados assim mandam. A política, nesse cenário, vira mera administração. E o cidadão, em vez de sujeito de direitos, vira cliente de serviços públicos.

Michel Foucault chamaria isso de biopolítica: o controle da vida através de aparatos de saber e poder. O cidadão ideal, para a tecnocracia, é aquele que se encaixa nas planilhas — que não atrasa, não adoece fora de hora, não protesta.

E a alma humana?

N. Sri Ram, pensador da Teosofia, dizia que “nenhuma estrutura, por mais eficaz que pareça, pode suprir a ausência de consciência”. A tecnocracia nos convida a terceirizar essa consciência — a acreditar que o especialista pensa melhor por nós. Mas há perguntas que nenhuma inteligência artificial pode responder: o que é justo? O que é belo? O que é humano?

Por um reencantamento da política

A crítica à tecnocracia não é um elogio à incompetência ou ao populismo ignorante. É um chamado ao equilíbrio: a técnica é fundamental, mas deve estar subordinada à ética, à escuta e à deliberação coletiva. O saber técnico precisa dialogar com a sensibilidade, com a história e com as aspirações humanas.

Se deixarmos a política virar mera equação, corremos o risco de viver num mundo funcional — mas sem sentido. Um mundo onde tudo funciona, menos o essencial: o direito de sermos mais do que números.