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sexta-feira, 4 de julho de 2025

É sério isso?


Tem horas que a gente escuta uma frase ou presencia uma cena e a única reação possível é: “É sério isso?” Pode ser o chefe que diz que o atraso no pagamento "é para nosso bem". Ou o amigo que compartilha uma teoria da conspiração com olhos brilhando de “verdade”. Ou até o sujeito que estaciona em duas vagas e sai assobiando. Nessas horas, não dá pra evitar: a pergunta escapa mais como desabafo do que como dúvida real.

Essa expressão — aparentemente banal — esconde uma operação filosófica profunda. “É sério isso?” coloca em xeque a coerência da realidade. Questiona o senso comum, a autoridade, o absurdo. É uma micro-revolução cotidiana, onde a incredulidade vira crítica.

A dúvida como sinal de sanidade

No fundo, o “é sério isso?” é um gesto de resistência. É como se o sujeito dissesse: “Eu ainda tenho critérios. Eu não aceito tudo.” No trânsito, no trabalho, na política, essa pequena pergunta pode ser o início de uma mudança de percepção. O mundo vai ficando tão saturado de incoerências que manter o espanto é quase uma forma de lucidez.

O filósofo Michel Foucault, que estudou justamente as relações entre verdade, poder e normalidade, poderia comentar: “A verdade não é algo a ser descoberto, mas algo a ser construído em meio a relações de força.” Em outras palavras, quando alguém pergunta “é sério isso?”, pode estar se recusando a engolir uma verdade imposta, a normatividade disfarçada de bom senso.

Cotidiano e ruptura

Essa frase surge em contextos triviais, mas aponta para rupturas importantes. Quando uma professora dá aula para 50 alunos sem estrutura e ainda recebe críticas por não “inovar”, ela talvez pense: “é sério isso?”. Quando uma mãe solo ouve que “quem quer, dá um jeito”, o mesmo eco aparece. Há uma desconexão entre o discurso e a realidade — e quem aponta essa falha já começou a filosofar.

O “é sério isso?” revela que há um conflito entre o que nos dizem que deve ser aceito e o que sentimos que não dá mais para aceitar.

Manter o espanto

Talvez o maior risco de viver numa sociedade saturada de absurdos seja perder a capacidade de se espantar. Se tudo vira piada, meme, deboche, a gente pode parar de reagir — e aceitar. E aí sim, o absurdo vence.

Por isso, essa pergunta aparentemente simples carrega um valor filosófico: ela é o espelho quebrado que nos impede de nos acostumar com o ilógico. Foucault nos lembraria que a crítica é um exercício constante, e que resistir começa com o olhar que se recusa a naturalizar.

Então sim — perguntar “é sério isso?” pode ser uma forma séria de existir no mundo.

sábado, 28 de junho de 2025

Ímpeto de olhar

...e ser olhado, vamos falar sobre o desejo de existir aos olhos do outro

Todo mundo já viveu aquela cena banal e desconcertante: você está andando na rua, distraído, e de repente percebe que alguém te observa. No instante seguinte, você também olha de volta. Não há palavra, não há gesto — só a força estranha do encontro entre dois olhares. E isso basta para dar um pequeno nó na alma: por que aquele olhar nos prende? Por que é tão difícil desviar? E por que sentimos, às vezes, a compulsão de também olhar, vigiar, buscar o rosto do outro?

Esse ímpeto antigo — olhar e ser olhado — talvez seja um dos impulsos humanos mais profundos. Ele é anterior à fala, ao gesto, à escrita. Crianças pequenas já procuram os olhos da mãe antes mesmo de dizer qualquer palavra. Namorados trocam olhares mais intensos do que frases. Trabalhadores no escritório observam-se de longe para medir forças ou cumplicidades. Até nas redes sociais, mesmo sem presença física, queremos “olhares digitais”: curtidas, views, reações.

No fundo, não basta existir: queremos que alguém nos veja existir.

O olhar que define o ser: Sartre e Lacan

Jean-Paul Sartre foi quem melhor traduziu esse incômodo: no instante em que o outro me olha, eu deixo de ser puro sujeito e viro objeto na cena alheia. Estou ali, na vitrine do mundo, exposto ao julgamento. A vergonha, diz ele, nasce disso: não da nudez em si, mas de saber que há um outro me vendo nu — seja no corpo, seja nas fraquezas.

Lacan vai além: no “estádio do espelho”, o bebê se reconhece como eu só porque vê uma imagem fora de si. Somos essa distância: um sujeito que só se entende enquanto objeto de visão. O outro nos devolve uma imagem de nós mesmos — e ficamos para sempre presos a ela. A busca de aprovação, a vaidade, o medo de errar em público: tudo nasce desse laço invisível entre ver e ser visto.

O olhar como poder: Nietzsche e Foucault

Nietzsche nos lembraria que olhar é disputar força. Quem vê primeiro domina; quem é visto primeiro revela fraqueza. É uma luta ancestral de predadores e presas — só que agora nos escritórios, nas salas de aula, nos ônibus lotados. Até o flerte amoroso é um jogo de quem sustenta mais tempo o olhar sem ceder.

Michel Foucault estendeu isso à vigilância moderna: hoje o olhar se espalhou, tornou-se técnica. Câmeras, sistemas, redes sociais monitoram tudo. Estamos dentro do “panóptico”, prisão imaginada por Bentham, onde o prisioneiro nunca sabe se está sendo vigiado — e por isso vigia a si mesmo. O ímpeto de olhar e ser olhado virou método de controle social.

O olhar e o desejo de ser

Mas não é só domínio ou medo: é também desejo puro de ser. Roland Barthes escreveu que o amor começa no instante em que alguém nos olha “de maneira singular”. Não qualquer olhar, mas aquele que nos vê como únicos, como ninguém jamais viu. Daí nasce a paixão, o encantamento, o brilho especial de certos encontros.

Em tempos de Instagram, TikTok e selfies, esse desejo explodiu em espetáculo. Como alerta Byung-Chul Han, nunca se exibiu tanto o rosto, o corpo, o cotidiano — e nunca se foi tão cego para o verdadeiro encontro do olhar real. Mostrar virou substituir: em vez de ser visto no olhar do outro, queremos ser exibidos para o mercado das imagens.

O cotidiano do olhar

No trabalho, queremos o reconhecimento do chefe, o respeito dos colegas — ou pelo menos não ser invisíveis. Na amizade, buscamos cumplicidade: um olhar que nos compreenda sem palavras. No amor, queremos ser lidos por inteiro nos olhos do outro, como se ali estivesse a prova de que valemos algo.

Na política, nas ruas, o olhar também pesa: o morador de rua que desvia o olhar para não ser humilhado; o jovem negro parado pela polícia que sente o peso mortal do olhar estatal; a mulher que sente olhares invasivos no transporte público. O olhar é prazer, mas também ameaça.

O risco de perder o olhar verdadeiro

Byung-Chul Han teme que estejamos perdendo o olhar que demora, que escuta, que vê de verdade. No lugar dele, só resta a vitrine de imagens rápidas, o marketing de si mesmo, o consumo do outro como coisa. O ímpeto de ser olhado não é mais para existir — é para ser comprado, curtido, ranqueado.

Mas Emmanuel Lévinas oferece esperança: para ele, o rosto do outro me convoca à ética. No olhar do outro há uma súplica: “não me mates”. Ali nasce a responsabilidade, a humanidade. O olhar autêntico não é controle, mas abertura: permite o outro ser outro.

Concluindo: existir é aparecer?

Talvez a verdade mais incômoda seja esta: não sabemos quem somos sem o olhar alheio. Todo eu se forma no reflexo de algum espelho humano. Mas isso não nos condena: nos liberta. Somos relação, não essência isolada. Por isso o ímpeto de olhar e ser olhado é a nossa mais primitiva oração: "estou aqui, me vê". Não para dominar, não para vender — mas para ser alguém no mundo compartilhado.

Como disse Merleau-Ponty: “o mundo é o campo da visão de todos”. Olhar e ser olhado é só o modo humano de existir nesse campo aberto.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Ideologia Tecnocrata

 

Quando a Máquina Veste Terno e Gravata...

Outro dia, preso num engarrafamento, reparei que o semáforo da esquina parecia ignorar completamente a realidade. Nenhum carro na transversal, e ainda assim ali estávamos, parados, obedientes ao sinal vermelho de um algoritmo mal programado. Foi ali, no calor do asfalto, que me veio o pensamento: e se a ideologia tecnocrata for justamente isso — a crença de que a solução para a complexidade humana é entregar o volante às máquinas, às planilhas e aos “especialistas”?

A sedução da neutralidade

A ideologia tecnocrata nasce de uma promessa aparentemente inocente: decisões racionais, baseadas em dados, longe das paixões políticas ou dos conflitos ideológicos. Quem não gostaria de um governo onde tudo funciona como um relógio suíço? Onde médicos decidem sobre a saúde, engenheiros sobre a infraestrutura, economistas sobre a economia — e políticos, bem, só apertam os botões?

Mas esse sonho de precisão técnica esconde uma armadilha. A neutralidade é uma fantasia. Toda escolha técnica repousa sobre valores, mesmo que velados. Quando um urbanista decide priorizar viadutos em vez de transporte público, há uma ideologia ali, ainda que venha embalada em gráficos e termos técnicos. Quando um algoritmo decide quem merece crédito ou quem pode sair da prisão com base em padrões estatísticos, há julgamentos morais embutidos nas fórmulas.

Exemplos que moram ao nosso lado

No cotidiano, a ideologia tecnocrata se infiltra de modo quase invisível. Veja o caso das escolas: muitas famílias escolhem instituições de ensino com base no desempenho em rankings nacionais, como se educar uma criança fosse equivalente a ranquear um produto no e-commerce. A educação vira número, enquanto a formação ética, o diálogo e a criatividade — difíceis de mensurar — vão sendo empurrados para o rodapé do boletim.

Nas empresas, o setor de Recursos Humanos se modernizou tanto que às vezes já não há mais “humanos” ali. Softwares analisam currículos, monitoram produtividade, medem “engajamento” e até sugerem promoções ou demissões. O gestor apenas “valida” o que o sistema já decidiu. Quem define o destino de uma carreira, então? Um gráfico de desempenho trimestral. A singularidade da pessoa é achatada pela régua da eficiência.

Na área da saúde, plataformas de atendimento automatizado muitas vezes decidem se você será atendido por um clínico, encaminhado para exames ou simplesmente dispensado com uma dica genérica de autocuidado. É a medicina da estatística. Rápida, funcional — mas será que escuta?

Habermas e o “mundo da vida” colonizado

É aqui que entra Jürgen Habermas. Em sua crítica à tecnocracia, ele alerta para a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-instrumentais. O que ele quer dizer com isso? Que a lógica dos sistemas — como o dinheiro e o poder administrativo — começa a invadir a esfera da vida cotidiana, onde as pessoas se comunicam, compartilham significados, tomam decisões em comum.

Para ele, uma sociedade saudável precisa de espaço para o agir comunicativo — o diálogo livre de coerção, onde os indivíduos deliberam sobre o que é melhor para todos. A tecnocracia, ao contrário, transforma decisões políticas em soluções técnicas e silencia a participação democrática. O debate é substituído pelo diagnóstico técnico. O “nós” vira “eles decidem”.

Habermas não despreza a técnica, mas exige que ela se submeta ao discurso público. É a democracia que deve guiar a tecnologia, e não o contrário.

O governo dos competentes?

Platão, no seu A República, já sonhava com um governo dos sábios, os filósofos-reis. Mas mesmo ele sabia que o saber filosófico exige uma forma de sabedoria sobre o bem comum, não apenas o domínio técnico de um campo. A tecnocracia, ao contrário, confunde competência técnica com sabedoria moral. Um engenheiro pode ser ótimo em cálculos estruturais e ainda assim propor um projeto urbano que expulsa os mais pobres da cidade. Um especialista em segurança pode aumentar a vigilância e reduzir o crime, mas ao preço da liberdade.

Como lembra Hannah Arendt, a política não é o lugar da gestão, mas da convivência com a pluralidade humana. Reduzir a política à técnica é amputar seu coração: o debate sobre os fins, e não apenas sobre os meios.

O poder sem rosto

A ideologia tecnocrata cria um poder difuso, sem rosto, onde as decisões parecem inevitáveis. "Não há alternativa", dizem — porque os números, as métricas, os dados assim mandam. A política, nesse cenário, vira mera administração. E o cidadão, em vez de sujeito de direitos, vira cliente de serviços públicos.

Michel Foucault chamaria isso de biopolítica: o controle da vida através de aparatos de saber e poder. O cidadão ideal, para a tecnocracia, é aquele que se encaixa nas planilhas — que não atrasa, não adoece fora de hora, não protesta.

E a alma humana?

N. Sri Ram, pensador da Teosofia, dizia que “nenhuma estrutura, por mais eficaz que pareça, pode suprir a ausência de consciência”. A tecnocracia nos convida a terceirizar essa consciência — a acreditar que o especialista pensa melhor por nós. Mas há perguntas que nenhuma inteligência artificial pode responder: o que é justo? O que é belo? O que é humano?

Por um reencantamento da política

A crítica à tecnocracia não é um elogio à incompetência ou ao populismo ignorante. É um chamado ao equilíbrio: a técnica é fundamental, mas deve estar subordinada à ética, à escuta e à deliberação coletiva. O saber técnico precisa dialogar com a sensibilidade, com a história e com as aspirações humanas.

Se deixarmos a política virar mera equação, corremos o risco de viver num mundo funcional — mas sem sentido. Um mundo onde tudo funciona, menos o essencial: o direito de sermos mais do que números.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Idealizada e Irreal

A verdade é um conceito intrigante e multifacetado. Em nosso dia a dia, frequentemente nos deparamos com situações em que a verdade parece ser maleável, moldada pelas percepções individuais e pelas expectativas da sociedade. Essa verdade idealizada e irreal pode ser encontrada em diversos aspectos do cotidiano, desde as redes sociais até as relações pessoais.

A Verdade nas Redes Sociais

Pense nas redes sociais. A maioria de nós já rolou o feed do Instagram e se deparou com imagens de vidas aparentemente perfeitas: viagens exóticas, corpos esculpidos, relacionamentos dos sonhos. No entanto, sabemos que essas postagens muitas vezes são uma versão filtrada da realidade. A filósofa francesa Simone de Beauvoir uma vez disse: "A representação do mundo, como o próprio mundo, é obra dos homens; eles o descrevem a partir de seu próprio ponto de vista, que confundem com a verdade absoluta." Em outras palavras, o que vemos nas redes sociais é uma construção idealizada da realidade, não a verdade nua e crua.

Relacionamentos e a Verdade Idealizada

Os relacionamentos também são terreno fértil para a verdade idealizada. No início de um romance, é comum os parceiros apresentarem suas melhores versões, ocultando falhas e inseguranças. Essa fase é muitas vezes descrita como "a fase da lua de mel". No entanto, à medida que o tempo passa, a realidade começa a se revelar. Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão, observou: "Não há fatos, apenas interpretações." Essa citação ilustra bem como os relacionamentos podem ser vistos através de lentes idealizadas que, com o tempo, se ajustam para revelar uma verdade mais complexa e multifacetada.

O Mercado de Trabalho

No ambiente de trabalho, a verdade idealizada pode aparecer em currículos "embelezados" e nas descrições de trabalho que prometem mais do que podem cumprir. Quem nunca se deparou com uma vaga de emprego que parecia perfeita no papel, mas que na prática era bem diferente? Karl Marx argumentava que as condições econômicas e sociais influenciam nossa percepção da realidade. No contexto do trabalho, muitas vezes somos levados a idealizar posições e empresas, apenas para descobrir que a verdade é mais complicada.

Educação e a Idealização do Conhecimento

Na educação, muitas vezes idealizamos o conhecimento e os processos de aprendizado. Estudantes são ensinados a buscar a verdade, mas o que é essa verdade senão uma construção social que evolui com o tempo? O filósofo Michel Foucault discutiu como o poder e o conhecimento estão intrinsecamente ligados, sugerindo que o que consideramos verdade é frequentemente uma construção de estruturas de poder. Na sala de aula, isso pode significar que as verdades ensinadas hoje podem ser desafiadas e reconfiguradas amanhã.

A Busca pela Verdade

Diante dessa reflexão, como podemos lidar com a verdade idealizada e irreal? Talvez a chave esteja em cultivar uma atitude crítica e reflexiva. Questionar as "verdades" que nos são apresentadas, seja nas redes sociais, nos relacionamentos, no trabalho ou na educação, pode nos ajudar a chegar mais perto de uma compreensão mais autêntica da realidade. Como disse Sócrates: "Uma vida não examinada não merece ser vivida." Em outras palavras, é através do questionamento e da reflexão que podemos desconstruir as verdades idealizadas e nos aproximar de uma realidade mais genuína.

A verdade idealizada e irreal está presente em muitos aspectos de nossa vida cotidiana. Reconhecer sua existência e aprender a questioná-la é um passo essencial para viver de maneira mais autêntica e consciente. Afinal, a busca pela verdade é um caminho contínuo, repleto de nuances e interpretações que enriquecem nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.