Outro dia, zapeando entre canais e redes, percebi que sei mais sobre o arco narrativo da Marvel do que da história do meu próprio bairro. Eu nem gosto tanto assim de super-herói — mas sei quem morreu, quem ressuscitou e qual versão alternativa salvou o multiverso. No fundo, fiquei pensando: o que é isso que nos atravessa sem pedir licença e se aloja na alma como se fosse nosso? Chama-se cultura pop. Mas talvez mereça um outro nome. Talvez… mito contemporâneo.
Entre
o pop e o profundo: a filosofia por trás do entretenimento
A
cultura pop costuma ser tratada como leve, passageira, divertida. Algo que
consumimos para escapar da realidade, não para enfrentá-la. Mas essa visão é um
tanto superficial. Se olharmos com atenção, perceberemos que ela está longe de
ser apenas entretenimento. A cultura pop molda nossas emoções, expectativas,
vocabulário e até as metáforas com que entendemos o mundo.
Quando
dizemos que alguém é um “Jedi” ou uma “Barbie girl”, não estamos apenas fazendo
uma piada — estamos usando estruturas narrativas compartilhadas para comunicar
valores, identidades e conflitos. No fundo, esses personagens funcionam como
mitos. E aqui entramos na primeira provocação filosófica: será que o mito
deixou de ser sagrado apenas para se tornar consumível?
Joseph
Campbell, ao estudar os mitos ao redor do mundo, dizia que eles tinham uma
função psíquica: ajudar o indivíduo a atravessar as etapas da vida com sentido.
A jornada do herói, por exemplo, é uma forma de organizar o caos da existência.
Ora, o que são as sagas de Harry Potter, Frodo ou até Eleven (de Stranger
Things), senão atualizações dessa mesma jornada?
A
diferença é que, na cultura pop, tudo vem embalado para o consumo. O herói se
vende em bonecos, camisetas e memes. O mito é distribuído em streaming. O
sagrado se converte em entretenimento.
Mas
não sejamos puristas. A filosofia não precisa ser elitista para ser profunda.
Aliás, Platão sabia bem disso quando criou mitos para explicar o mundo das
ideias. A diferença é que hoje, os mitos são produzidos coletivamente, por
milhões de espectadores e fãs, em fóruns, vídeos de análise e teorias fanfics
(histórias ficcionais criadas por fãs). A cultura pop se tornou uma espécie de
democracia simbólica.
E
há algo poderoso nisso: a cultura pop nos dá modelos para sentir e pensar. Por
isso, quando uma série mostra um herói lidando com ansiedade ou uma princesa
escolhendo não casar, ela está sugerindo novos modos de viver. A filosofia
entra aí: para perguntar se esses modos fazem sentido, se nos libertam ou nos
aprisionam, se nos aproximam de quem somos ou nos afundam em fantasias.
Como
diria o filósofo francês Gilles Lipovetsky, vivemos na era da “leveza”, onde
tudo tende ao efêmero, inclusive o sentido da vida. A cultura pop navega nesse
mar — ora nos oferecendo boias, ora nos puxando para a correnteza.
No
fim, talvez a questão não seja se a cultura pop é superficial ou profunda, mas
sim como a usamos. Podemos assistir a um filme e apenas relaxar. Ou podemos
fazer dele uma lente para enxergar o mundo — e a nós mesmos — com mais nitidez.
Porque,
no fundo, como diria Morpheus em Matrix, a escolha entre a pílula azul e a
vermelha ainda é nossa. Só que, hoje em dia, ela vem no formato de série,
trilha sonora ou meme viral.