Filosofia entre grades e estrelas
A
gente nunca sabe o que fazer quando a vida vira do avesso. Pode ser um
acidente, uma demissão, uma injustiça. De repente, tudo o que parecia seguro
escorrega pelos dedos — como se o mundo tivesse girado sem aviso. Imagina,
então, estar preso, acusado de traição, vendo sua reputação desmoronar e
esperando a morte. Pois foi exatamente nesse cenário que um homem chamado Boécio
escreveu um dos textos mais profundos da história da filosofia: A
Consolação da Filosofia. E é aí que começa o paradoxo: como alguém pode
ser consolado pela filosofia, enquanto está à beira do fim?
Boécio
não buscava piedade, nem escreveu para se defender. Ele chamou a Filosofia —
sim, com F maiúsculo — para conversar. No meio da cela, ela aparece como uma
dama serena, relembrando que a sorte, essa dama caprichosa, muda como o vento.
E mais: lembra Boécio de que tudo o que é externo pode ser tirado. A única
posse verdadeira é a interior — aquilo que nem mesmo o cárcere consegue
confiscar.
É
nesse ponto que surge uma das imagens mais fortes que ele nos deixou: a Roda
da Fortuna. Para Boécio, a vida é como essa roda giratória conduzida pela
deusa Fortuna. Hoje estamos no topo, amanhã podemos estar esmagados embaixo. A
roda não para — e nela, reis caem e miseráveis sobem. A tragédia, diz ele, não
está em a roda girar, mas em acreditarmos que o topo é eterno. Apegar-se à
posição atual é esquecer que tudo no mundo muda, e que confiar na fortuna é
confiar no que não se pode controlar.
Inovador
em sua época, Boécio fez o que quase nenhum pensador havia feito antes: fundiu
a sabedoria estoica, a lógica de Aristóteles e a fé cristã em um único
movimento de resistência intelectual. Ele acreditava que o universo não era
caótico, mas guiado por uma razão superior — a Providência. E mesmo que os
caminhos da fortuna pareçam injustos, a razão divina ainda conduz os
acontecimentos para um bem maior. Em tempos de crise, isso soa quase como
loucura. Mas talvez seja justamente aí que mora a sabedoria.
Em
seu diálogo com a Filosofia, Boécio antecipa perguntas que ainda nos perseguem:
por que pessoas boas sofrem? Qual o sentido do infortúnio? Existe justiça no
mundo? E, acima de tudo, o que vale a pena manter quando tudo mais nos é
tirado?
A
resposta que Boécio nos oferece não vem de fora — não está nos bens, no status,
na liberdade ou no sucesso. Vem de dentro, e se chama serenidade. Uma
serenidade que não ignora a dor, mas a atravessa com firmeza. Não se trata de
aceitar passivamente o sofrimento, mas de compreender sua natureza para que ele
não nos destrua por dentro.
Talvez
por isso Boécio tenha sido mais do que um prisioneiro injustiçado. Foi um
mestre da interioridade. Enquanto tudo ao redor desabava, ele se elevava — não
como fuga, mas como construção. Encarou o fundo do poço e, em vez de se
desesperar, escreveu uma ponte filosófica para o alto.
Hoje,
quando enfrentamos nossas próprias prisões — emocionais, sociais, existenciais
—, talvez seja hora de reencontrar essa Dama Filosofia. E lembrar que, mesmo
cercado pelas muralhas do mundo, ainda podemos conversar com a parte mais livre
de nós mesmos.
Como
diria o próprio Boécio, "a felicidade verdadeira não pode ser tocada pela
fortuna, porque mora no interior do sábio". E quando a roda girar — porque
ela sempre gira —, que estejamos firmes no centro, onde ela não nos arrasta,
mas gira ao nosso redor.
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