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sexta-feira, 25 de julho de 2025

Falsa Consciência

Quando a vida molda o pensamento: Marx, Engels e a consciência que vem do chão

A gente costuma pensar que nossas ideias vêm da nossa cabeça. Que somos livres para acreditar no que quisermos, pensar o que quisermos, votar em quem quisermos, e ponto. Mas será que é bem assim? Será que o que pensamos sobre o mundo — sobre política, trabalho, justiça, sucesso — é tão livre quanto imaginamos?

Marx e Engels diriam que não. Para eles, a nossa consciência — aquilo que achamos que é certo, errado, justo ou natural — nasce da vida concreta que levamos. Ou seja: não é a cabeça que molda o mundo, é o mundo que molda a cabeça. E essa virada muda tudo.

 

O ser social determina a consciência

Imagine duas pessoas: uma que vive em um bairro periférico e acorda às 5 da manhã para pegar três ônibus até o trabalho, e outra que vive num condomínio fechado, com carro, segurança e tempo livre. Agora pense: essas duas pessoas vão enxergar o mundo da mesma forma? Vão entender o que é esforço, mérito, segurança, lazer ou justiça do mesmo jeito?

Para Marx e Engels, a resposta é clara: nossas condições materiais — onde nascemos, o que fazemos, quanto temos, como vivemos — moldam diretamente a maneira como vemos o mundo. É isso que eles chamam de o ser social determina a consciência.

Não somos apenas "indivíduos pensantes", como dizia a filosofia idealista da época. Somos sujeitos inseridos num mundo de relações — especialmente relações de trabalho — e nossa visão de mundo nasce dessa base.

 

A ideologia como véu

Mas tem mais. Marx e Engels também apontam que a consciência que temos muitas vezes é distorcida. Isso acontece porque o sistema em que vivemos (o capitalismo) produz ideias que ajudam a manter tudo como está. É a ideologia.

Exemplo: quando alguém diz que "quem é pobre é porque não se esforça", está reproduzindo uma ideia que esconde a desigualdade estrutural. Ou quando achamos que "empreender é para todos", como se todos tivessem o mesmo ponto de partida.

Essas ideias não são neutras — elas servem para legitimar o que está posto. E muitas vezes a gente acredita nelas sem nem perceber. É o que Marx chamava de falsa consciência: uma visão do mundo que parece natural, mas na verdade é construída para manter a ordem social.

 

Consciência de classe: o despertar

A crítica de Marx e Engels não é só uma denúncia. Ela também é um chamado. Quando o trabalhador começa a entender que sua condição não é culpa sua, mas parte de um sistema desigual, ele começa a desenvolver consciência de classe.

Esse despertar é perigoso para quem está no topo, porque rompe o ciclo da alienação. A consciência deixa de ser apenas um reflexo da vida material e passa a ser uma ferramenta de transformação. Como quem acorda de um sonho — e vê que é possível sonhar diferente, acordado.

 

Em outras palavras...

A consciência, para Marx e Engels, não é um dom divino nem um pensamento livre no ar. É uma construção social, moldada pelas condições materiais. Nossos pensamentos, crenças e valores nascem da vida que levamos, da classe que ocupamos, da posição que temos dentro das relações de produção.

A verdadeira liberdade começa quando a gente entende isso — e pode, enfim, questionar o que parecia natural.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Construtivismo Social - Um Novo Olhar

Entre o Espelho e o Mosaico: Ensaio sobre o Construtivismo Social na Era da Performance

Sabe quando a gente ouve alguém dizer “isso é assim porque sempre foi assim”? Pois é. Parece uma frase inofensiva, mas esconde uma das maiores ilusões que carregamos no dia a dia: a de que o mundo é pronto, dado, imutável. A verdade é que muita coisa do que consideramos natural — desde os nossos hábitos até o jeito como pensamos sobre amor, trabalho ou identidade — foi, em algum momento, inventada, combinada, aceita por um grupo de pessoas… e aí virou “normal”. O construtivismo social entra justamente aí, nesse ponto em que as coisas deixam de parecer construções e viram certezas. Neste ensaio, a ideia é desfiar um pouco esse tecido aparentemente firme da realidade e mostrar que, no fundo, a vida é feita de arranjos — e que entender isso pode ser mais libertador do que parece.

A realidade, dizemos, está “aí”, como uma pedra ou uma parede. Mas o que é essa realidade, senão o reflexo de um consenso? O construtivismo social nos convida a quebrar o espelho da objetividade e observar os cacos no chão: cada um reflete um ângulo diferente, um olhar socialmente moldado, um pedaço de mundo que só faz sentido quando olhado em conjunto. Não há essência anterior à relação. Nós somos porque estamos com o outro.

Peter Berger e Thomas Luckmann, em A Construção Social da Realidade (1966), mostram como os mundos sociais são produzidos, institucionalizados e interiorizados. A realidade social é um processo dinâmico de sedimentação: o que antes era escolha vira costume, o que era invenção vira tradição. A linguagem, nesse processo, não é mero canal de comunicação, mas o próprio cimento que solidifica o mundo social. Quando dizemos “isso é normal”, já estamos operando o poder da construção: legitimamos o costume como se fosse lei natural.

Mas talvez o mais radical dessa perspectiva não seja o reconhecimento de que o mundo social é construído — isso já é relativamente aceito nas ciências humanas. A verdadeira ruptura está em perceber que nós mesmos somos construídos. A identidade não é uma essência interior a ser descoberta, mas uma performance contínua, uma narrativa contada com base nos olhos dos outros. Judith Butler, ao discutir gênero, aprofunda esse ponto: não se nasce mulher, tampouco se escolhe sê-lo como quem muda de roupa. Performar o gênero é reencenar expectativas culturais, repetidamente, até parecer natural.

No entanto, em um mundo onde tudo é construído, onde repousa a autenticidade? Essa é a angústia contemporânea. Se tudo é narrativa, onde está a verdade? A resposta talvez esteja não em negar o construtivismo, mas em reconhecê-lo como condição de liberdade. A construção é um risco, sim — mas também é uma oportunidade. Se fomos feitos por discursos, talvez possamos nos refazer por meio de novos discursos. Isso é o que Foucault sugere ao mostrar que resistir é também produzir sentido. O poder não é só repressão: é produção de verdades, e portanto, espaço para reimaginar a existência.

O problema contemporâneo talvez seja que, ao tomarmos consciência do caráter performativo de tudo, mergulhamos em um novo tipo de ansiedade: a obrigação de sermos únicos em meio a tantas possibilidades de montagem. As redes sociais, onde identidades são constantemente construídas e expostas, ilustram essa virada. Somos, ao mesmo tempo, autores, personagens e plateia de nós mesmos. Um eu hiperconsciente da própria construção pode acabar preso na vitrine.

E é aqui que o construtivismo social encontra sua virada ética. Se o mundo é uma construção, quais mundos queremos construir juntos? Se os significados são frágeis, como cuidamos deles para que não se tornem opressão? O sociólogo brasileiro José de Souza Martins observa que, muitas vezes, a vida cotidiana é o lugar onde as contradições mais profundas da construção social aparecem — onde o indivíduo vive, simultaneamente, a liberdade de criar e o peso de estruturas que ele não escolheu.

No fundo, o construtivismo social não destrói o real. Ele apenas nos lembra que o real é um projeto coletivo — nunca acabado, sempre vulnerável, eternamente em disputa. Nesse mosaico de vozes e símbolos, cada gesto, cada palavra e cada silêncio é um tijolo no edifício comum. Não se trata, portanto, de negar a realidade, mas de assumir a responsabilidade pela sua (re)construção contínua.


sábado, 21 de dezembro de 2024

Humaníssimo Destino

O que significa ter um destino humaníssimo? A expressão, envolta em certa nobreza linguística, evoca uma reflexão sobre a essência do humano e os caminhos que a vida, ou o próprio ser, traça para si. É como se estivéssemos a perguntar: o que há de mais humano em nosso destino? E mais ainda, quem é o arquiteto desse destino: nós, a sociedade, ou algo transcendente?

A busca pelo que nos faz humanos

O conceito de “humaníssimo” carrega a ideia de uma humanidade elevada, um ideal ético e existencial que transcende o simples ato de viver. Não basta existir; é preciso realizar aquilo que nos torna únicos, como a consciência reflexiva, a capacidade de criar, de amar, de sofrer e de transformar o mundo. No entanto, essa busca pelo “humaníssimo” é muitas vezes atravessada por desvios, tropeços e incertezas.

Imaginemos uma cena cotidiana: alguém decide abandonar um emprego seguro para se dedicar a uma paixão, como a pintura ou a música. Esse ato, tão carregado de incertezas, revela uma tentativa de honrar o que há de mais humano no indivíduo – a capacidade de criar significado além da sobrevivência. O destino humaníssimo, nesse caso, não é uma trilha pavimentada, mas uma vereda traçada pela coragem de ser autêntico.

Liberdade ou fatalidade?

Se o destino existe, ele é imposto ou construído? Os estoicos acreditavam que o destino é uma força inexorável, mas que podemos, por meio da razão, aprender a aceitá-lo. Já Sartre diria que o destino não existe a priori – somos condenados a ser livres, e nossa liberdade nos obriga a inventar nosso caminho.

Nos dilemas cotidianos, isso se manifesta de maneira quase trivial. Quando decidimos perdoar alguém que nos feriu, por exemplo, estamos exercendo a liberdade de ressignificar o passado, em vez de nos agarrarmos a uma narrativa predeterminada. O perdão não apaga o que aconteceu, mas transforma o rumo da nossa história.

O destino como projeto coletivo

Há também quem veja o destino não como algo individual, mas como um projeto coletivo. O filósofo brasileiro Milton Santos, ao falar sobre o papel do humano no mundo globalizado, nos lembra que o futuro da humanidade depende de ações que unam ética e solidariedade. Nesse sentido, um destino humaníssimo só é possível se reconhecermos que o "eu" só existe no “nós”.

Pensemos na cena de um bairro onde vizinhos se unem para transformar um terreno baldio em uma horta comunitária. Ali, o destino humano se manifesta não como um ideal solitário, mas como uma construção compartilhada, em que cada gesto individual contribui para um bem maior.

O inescapável mistério

Por fim, há algo de misterioso em todo destino, algo que escapa à compreensão humana. Mesmo que sejamos os autores de nossas escolhas, nem sempre temos controle sobre os desdobramentos. Talvez o destino humaníssimo resida justamente na aceitação desse mistério, sem que isso nos paralise.

Como bem disse Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas", “viver é muito perigoso.” Mas é nesse perigo, nessa aventura constante, que encontramos a grandeza de ser humano – não pelo que sabemos, mas pelo que continuamos a buscar.

O destino humaníssimo não é uma linha reta ou um caminho predeterminado. É uma construção contínua, alimentada por nossas escolhas, nossos erros, nossas relações e, acima de tudo, pela busca incessante por significado. Seja pela liberdade de Sartre, pela resignação dos estoicos ou pela visão coletiva de Milton Santos, o destino humano é, antes de tudo, um convite a viver com intensidade e autenticidade.

E talvez, no final das contas, o destino humaníssimo seja aquele em que, ao olharmos para trás, possamos dizer que vivemos plenamente o que nos torna humanos: a coragem de sentir, de criar e de transformar.