O motor secreto do existir
A
paixão sempre foi tratada como excesso, desvio ou desordem. Desde os estoicos
até Freud, passando por Descartes, ela aparece como algo que nos arrasta, algo
a ser contido ou interpretado. Mas e se pensarmos a paixão não como desvio, mas
como engrenagem? Não como obstáculo da razão, mas como sua condição de
movimento?
A
“mecânica das paixões” propõe ver o desejo, a atração, a fúria, o encantamento,
não como perturbações, mas como forças motoras — semelhantes aos pistões que
impulsionam uma máquina. Elas não apenas nos afetam: elas nos colocam em curso.
Nada começa sem uma paixão: seja uma briga, uma descoberta científica, um
poema, ou o início de um amor. Por que, então, insistimos em tratar a paixão
como doença, e não como mecanismo vital?
O
filósofo francês Gilles Deleuze oferece uma chave potente para essa
reviravolta. Em Mil Platôs, ele e Guattari falam de “máquinas
desejantes”: o desejo não como falta, mas como produção. A paixão, nesse caso,
não seria algo que vem de fora, nos invade e nos perturba, mas uma função
interna, criadora, produtiva. Uma engrenagem. Um dispositivo.
Imagine
o ciúme. Normalmente visto como negativo, ele também revela o quanto algo (ou
alguém) importa. Ele aciona a percepção, liga alarmes internos, reconfigura
prioridades. É incômodo, sim — como todo motor barulhento —, mas também
revelador. Ou pense na paixão estética: aquela emoção diante de um quadro ou
uma música, que não serve para nada “prático”, mas nos reorganiza por dentro.
Como diria Deleuze, o afeto é um modo de conexão. Uma linha que traça o mapa do
que somos.
Nessa
mecânica, o sujeito não é o centro de controle. Ele é parte da máquina,
engrenado nela. Somos feitos das paixões que nos atravessam. A cada giro, nos
transformamos. Ao contrário da racionalidade cartesiana que separa alma e
corpo, a paixão nos junta. Ela é a liga da experiência humana. Por isso,
talvez, o termo “paixão” vem do latim passio, que significa “sofrer” ou
“ser afetado”. Sofrer, aqui, no sentido de sofrer uma ação, ser tocado. Sem
isso, estaríamos parados.
Assim,
a paixão deixa de ser inimiga da liberdade. Pelo contrário: é o que a move. A
paixão como movimento involuntário que nos lança em novas direções. Uma espécie
de motor secreto do existir.
Conclusão?
Não reprima a paixão: escute-a como quem escuta o ronco de um motor. Talvez ela
esteja dizendo para onde você precisa ir.
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