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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Amálgama de Dramas

Você está esperando o ônibus, celular na mão, olhos cansados. De repente, recebe uma mensagem da sua irmã dizendo que o avô caiu e foi levado ao hospital. Enquanto tenta processar isso, alguém atrás de você grita no telefone: “Ela me traiu, cara!”. À sua frente, um casal se abraça como se fosse a última vez. E ali está você, tentando ir ao trabalho. Num ponto de ônibus comum, o mundo inteiro virou palco de um amálgama de dramas.

Essa cena cotidiana revela uma verdade profunda: a vida humana é feita de sobreposições emocionais. Não vivemos histórias separadas em gavetas organizadas. Vivemos tudo junto — e de preferência, ao mesmo tempo. Cada um carrega seu próprio enredo, com personagens, pausas dramáticas, reviravoltas. E tudo isso acontece ao nosso redor sem pedir licença, como se o mundo fosse um palco girando sem direção única.

Imagine agora uma mulher fazendo uma apresentação importante no trabalho. Ela ensaiou por dias, está confiante, sorridente. Mas seu filho ficou doente de madrugada, ela mal dormiu, e enquanto fala sobre resultados trimestrais, está com a mente presa na febre do menino. No mesmo escritório, o colega ao lado acabou de saber que vai ser pai, e está radiante — quase flutuando. E no outro canto, alguém acabou de ser demitido. Nenhuma dessas histórias se anula. Todas coexistem, se atravessam. E ninguém tem como sair ileso desse entrelaçamento de mundos emocionais.

No supermercado, uma senhora chora discretamente no corredor dos enlatados. Perdeu o marido recentemente e ainda não aprendeu a fazer compras para uma só pessoa. Enquanto isso, um adolescente reclama alto do preço do energético, e uma mãe tenta entreter o filho que berra porque quer um pacote de salgadinhos. Todos ali parecem travar uma batalha invisível, mas real. E todos estão, de alguma forma, em cena — mesmo que ninguém aplauda.

Nas redes sociais, o drama ganha uma nova camada: a da performance. Alguém posta uma taça de vinho com a legenda “recomeço”, mas está tentando sobreviver a um fim traumático. Outro exibe a chegada à academia com emojis de fogo, tentando esconder a dor do diagnóstico de depressão. Há quem poste paisagens serenas tentando convencer o mundo (e a si mesmo) de que está em paz. A amálgama continua existindo — só que editada. Com filtro.

O filósofo francês Edgar Morin, ao pensar a complexidade, dizia que não se pode isolar uma parte da vida e achar que isso explica o todo. A realidade é feita de redes, de entrelaçamentos. O drama de um indivíduo nunca é apenas dele. Ele respinga, reverbera, se mistura ao dos outros. Walter Benjamin também observava que a experiência moderna é fragmentária — vivemos em pedaços, justapostos, sobrepostos. Somos, todos nós, camadas de histórias em conflito.

A vida, assim, não é um roteiro limpo. É uma tapeçaria com fios soltos, bordados interrompidos, linhas que mudam de cor no meio do ponto. Tentar dar coesão total ao próprio enredo é ignorar que, muitas vezes, o drama do outro é o que altera o rumo da nossa história. E isso não é fraqueza — é condição humana.

Cada pessoa se torna, assim, um ponto de convergência de múltiplas histórias. O drama pessoal já é por si só uma construção simbólica: o que chamamos de “drama” geralmente é um acontecimento que rompe com o ritmo esperado, que exige reposicionamento. Mas quando isso se mistura com o sofrimento dos outros, cria-se uma atmosfera emocional espessa. A amálgama surge aí: no entrelaçamento de experiências que não respeitam hierarquias de importância. A morte de um gato pode conviver no mesmo espaço mental que uma crise existencial sobre o sentido da carreira.

A amálgama de dramas pode parecer um fardo. Mas talvez seja ela o que nos mantém humanos. Viver no meio do excesso emocional dos outros, sentir o peso e a vibração de histórias que não são nossas, nos ensina a ter cuidado, a reconhecer o outro para além da superfície. O drama, no fim, é uma forma de conexão. É quando o sofrimento de um desconhecido nos toca que percebemos: estamos todos entrelaçados.

No café da manhã de um casal em crise, no olhar distante de um motorista de aplicativo, na ansiedade disfarçada de uma piada no elevador — ali está a amálgama. E cabe a nós aceitar que viver bem talvez seja menos sobre controlar a narrativa e mais sobre aprender a conviver com os roteiros que atravessam o nosso.

Porque se cada um carrega dentro de si um romance inacabado, então o mundo é uma biblioteca viva de histórias cruzadas. E a amálgama de dramas é o que torna tudo isso — confuso, intenso, absurdo — profundamente real.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

As Dores do Mundo

Por que viver dói tanto? Uma conversa com Schopenhauer no meio do caos

Tem dias que a gente acorda já cansado. O despertador toca, o corpo obedece, mas a alma hesita. Vai trabalhar, estuda, sorri socialmente — mas lá dentro algo pesa. Não é drama, nem frescura. É só a vida sendo... vida. E aí surge a pergunta silenciosa: por que viver dói tanto?

Se você já sentiu isso (e quem não?), pode sentar ao lado de Arthur Schopenhauer. Ele não vai tentar te consolar. Não vai dizer que tudo vai melhorar. Na verdade, ele vai te dizer o oposto: a dor é o núcleo da existência. A vida não é um parque de diversões, é uma espera no consultório da realidade. E é aí que ele começa a sua obra mais direta e crua: As Dores do Mundo.

Mas antes de fugir, fique um pouco. Porque, estranhamente, há algo libertador em entender que a dor não é um erro, mas uma chave para enxergar o mundo de outro jeito.

 

A vida como vontade cega

Para Schopenhauer, tudo o que vive é movido por uma força interior que ele chama de vontade. Não é a vontade racional, tipo "quero café com leite", mas uma vontade irracional, incessante, impessoal — que nos empurra a desejar, buscar, lutar, sofrer... e repetir tudo isso.

Essa vontade está em tudo: nos instintos, nos amores, nas guerras, nas carências, nos medos. A dor surge porque desejar é sofrer. E quando o desejo é satisfeito, logo surge outro — e outro, e outro. Uma sede que nunca termina.

A vida, para ele, é como um mendigo que ganha uma moeda e, no segundo seguinte, sente fome outra vez.

 

A versão 2.0: a dor no século das notificações

Se Schopenhauer vivesse hoje, talvez As Dores do Mundo começasse com um celular vibrando às 4 da manhã, um boleto vencido e uma timeline cheia de vidas felizes que não são a sua. Ele diria: o mundo moderno não eliminou o sofrimento — ele só o sofisticou.

A gente não sente fome de comida como antes, mas sente fome de sentido, de pertencimento, de curtidas. O desejo virou algoritmo. A frustração, mercadoria. E a dor... bom, ela continua lá. Só que disfarçada de ansiedade, burnout ou um vazio sem nome.

 

E agora? Existe saída?

Schopenhauer não é um otimista, mas também não é um niilista total. Ele acredita que é possível diminuir o sofrimento, mesmo que ele nunca desapareça.

Como?

  • Pela contemplação estética (a arte, a música, a beleza desinteressada).
  • Pela compaixão, que é quando a gente reconhece a dor do outro como nossa.
  • E, mais profundamente, pela negação da vontade — um estado de desprendimento, quase budista, onde o querer cede lugar ao ser.

A salvação, para ele, não está em ter tudo, mas em querer menos. Em silenciar a vontade, ainda que por instantes.

 

Aceitar a dor é começar a viver

As Dores do Mundo não é um convite ao desespero, mas à lucidez. Schopenhauer não quer que a gente sofra mais — quer que a gente pare de fingir que não está sofrendo.

Reconhecer que a vida é difícil não é fraqueza, é coragem. E talvez, ao aceitar a dor como parte da jornada, possamos encontrar momentos de paz mais sinceros, mais profundos, mais humanos.

Porque, no fim, o mundo pode até ser um lugar de dor — mas nós ainda podemos ser lugares de compaixão.

 

sábado, 12 de julho de 2025

Priming

A sugestão invisível do ser



Estava sorvendo meu mate quente entre as mãos e, sem perceber, já estava me sentindo mais aberto à conversa. Algo no calor, no vapor subindo, na pausa do gesto, parecia me convidar ao acolhimento. Logo pensei, não é só costume ou tradição — é como se o corpo, ao sentir o calor, se lembrasse de como é bom confiar. E é aí que me veio a história do priming: aquele efeito curioso em que estímulos sutis moldam nossos pensamentos e atitudes, mesmo sem a gente notar. Como um mate que, antes de esquentar por dentro, aquece por fora e muda o jeito que olhamos o outro.

Vivemos sob a impressão de que escolhemos. A cada passo, a cada palavra, imaginamos que uma vontade sólida nos guia, que um “eu” pensante, firme e indivisível, decide o rumo da vida. No entanto, a teoria do priming, oriunda da psicologia cognitiva, oferece um espelho desconcertante: talvez não sejamos tão senhores de nossas decisões quanto acreditamos.

Priming é a influência sutil — e muitas vezes inconsciente — de estímulos prévios sobre nossas ações e pensamentos. Ao sermos expostos a uma palavra, imagem ou ideia, reagimos ao mundo de maneira alterada, mesmo sem nos darmos conta disso. A mente responde a sugestões silenciosas. Mas o que esse fenômeno revela filosoficamente?

I. O eu moldável: sujeito ou efeito?

O conceito de sujeito autônomo, herança iluminista, pressupõe uma consciência centrada, capaz de deliberar racionalmente. No entanto, se um simples cartaz com palavras de gentileza aumenta a probabilidade de alguém ser educado, o que resta da liberdade?

O filósofo francês Michel Foucault já desconfiava da ilusão de um sujeito fixo. Para ele, somos atravessados por discursos, moldados por regimes de saber e poder. O priming, nesse contexto, seria a evidência científica de que nossos gestos nascem de gramáticas invisíveis, de redes simbólicas que operam abaixo da superfície da consciência.

II. Liberdade sob influência: a ilusão do espontâneo

Se somos suscetíveis a influências mínimas, o livre-arbítrio seria uma ficção? Não exatamente. O priming não determina, mas inclina. Como uma brisa que desvia levemente o curso de um barco, ele mostra que nossas decisões não surgem no vácuo. Elas são respostas condicionadas por contextos anteriores. A liberdade, então, não é absoluta — é situada, contextual, e talvez até relacional.

A verdadeira pergunta filosófica não é "somos livres?", mas: de que somos feitos? Se memórias, emoções e estímulos moldam nossos gestos, talvez a identidade não seja uma estrutura, mas um campo de forças, um jogo de sugestões internas e externas.

III. Priming como estética do mundo: o invisível que age

Há algo poético no fato de que uma palavra lida em silêncio possa modificar uma atitude. É como se o mundo sussurrasse possibilidades, e nós, atentos ou não, dançássemos ao ritmo de suas sugestões.

Nesse sentido, o priming toca a filosofia de Merleau-Ponty, quando este afirma que o corpo é a abertura ao mundo — não há separação radical entre o sujeito e o ambiente. O corpo percebe, responde, antecipa. Ele não espera a consciência: ele age. O priming, então, é uma forma de estética da existência — o modo como o mundo nos pinta, antes mesmo de sabermos que estamos na tela.

IV. Filosofia do cuidado: cultivar o invisível

Se somos permeáveis ao que nos rodeia, talvez a ética esteja em cuidar do ambiente que nos constitui. Escolher palavras, imagens, sons e silêncios que nos moldem de maneira mais consciente. Assim como a alimentação influencia o corpo, os estímulos moldam o espírito.

A filosofia contemporânea não pode ignorar o priming — não como mais um fenômeno psicológico, mas como uma chave para repensar o que significa ser humano num tempo em que o inconsciente se revela moldável, acessível e, muitas vezes, manipulado.

A liberdade depois do priming

O priming não anula a liberdade; ele a problematiza. Mostra que a autonomia talvez esteja menos em resistir a influências e mais em compreendê-las. Saber que somos atravessados por sinais invisíveis é o primeiro passo para cultivar uma consciência mais ampla e gentil.

O filósofo não é mais apenas o que pensa, mas o que se pergunta: “o que está pensando por mim neste exato momento?”

domingo, 22 de junho de 2025

Sinestesia


O real quando perde a vergonha de se misturar.

Quem nunca pensou que segunda-feira tem cor? Ou que o nome de alguém "soa verde"? Há quem jure sentir o gosto do número cinco, ou ouvir o cheiro da chuva. Os neurologistas dão um nome bonito e técnico para isso: sinestesia. Um curto-circuito sensorial, dizem. Uma ponte cruzada no cérebro.

Mas talvez seja o contrário: não um defeito, mas uma relíquia. Um traço esquecido de quando o real era um só, antes que o pensamento humano começasse a podar e separar: visão aqui, som ali, cheiro acolá.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty alertava: o corpo não sente o mundo em canais isolados. Ele vive uma presença global do real, uma "carne do mundo" onde tato, visão e audição ainda são faces da mesma moeda. Na criança pequena — e no artista — isso é evidente: tudo é tudo ao mesmo tempo. Só mais tarde, com a domesticação do olhar, a separação artificial começa.

O mundo dos sentidos embaralhados

O poeta sente isso de modo natural. Arthur Rimbaud, na juventude ousada do século XIX, escreveu o célebre soneto das "vogais coloridas": A é preto, E é branco, I é vermelho, U é verde, O é azul. Os sentidos, livres de função prática, se reencontram na festa do absurdo.

Mas é possível que isso vá além da poesia. Para Gilles Deleuze, toda experiência sensível carrega uma potência de conexão múltipla, rizomática, sem hierarquia. O som pode ser luz. O cheiro pode ser volume. O gosto pode ser tempo. O real é esse campo de intensidades que só o pensamento domesticado transformou em departamentos estanques.

Sinestesia cotidiana: a confusão que salva

Mesmo quem não tem "sinestesia clínica" sente isso de vez em quando. Quem nunca chamou uma voz de "aveludada"? Ou disse que um olhar "pesa"? E quando dizemos que uma lembrança tem "cheiro de infância"? Não são metáforas: são escorregamentos reais entre canais sensoriais, lampejos de sinestesia existencial que resistem no cotidiano.

Vilém Flusser, filósofo nascido em Praga e radicado no Brasil, dizia que nossa técnica moderna ampliou a separação dos sentidos. A fotografia só para o olho. O rádio só para o ouvido. O telefone, a tela, o texto — todos nos treinaram para dividir a experiência. Mas a arte quer o oposto: reunião, mistura, fusão. O cinema, a dança, a performance, o happening — tudo clama pela volta da sinestesia originária. O humano não quer aparelhos separados. Quer um mundo inteiro de novo.

E se o real fosse sinestésico desde sempre?

Aqui mora uma hipótese perigosa: e se o real nunca tivesse sido feito de sentidos separados? E se nossa divisão entre som, luz, sabor, tato for só uma construção útil, uma lente artificial?

O filósofo inglês Alfred North Whitehead já sugeria isso em sua "filosofia do processo": a realidade não é feita de "coisas" sólidas, mas de experiências fluídas — eventos vibratórios que podem ser percebidos de múltiplas maneiras ao mesmo tempo. A sinestesia não seria então um defeito neurológico, mas uma fresta por onde escapa o real em estado bruto.

Por isso o artista sinestésico (ou o místico, ou o poeta) não vê "mais" que os outros — vê o que todos veem antes da poda. Antes do corte. Antes do "organograma dos sentidos" ser imposto.

Conclusão aberta: para um mundo menos tímido

Talvez seja isso o que nos falta: um mundo menos tímido, onde o som aceite ser cheiro, a palavra aceite ter temperatura, a segunda-feira confesse sua cor.

Enquanto isso não acontece, pequenas sinestesias resistem. Na poesia, na infância, no sonho, na memória de um cheiro que ilumina uma paisagem perdida. Pequenos vazamentos do real verdadeiro.

Ou, como dizia Merleau-Ponty, "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo". E viver talvez seja — sempre — misturar.

domingo, 15 de junho de 2025

Univocidade e Singularidades


Vamos trazer as ideias de Deleuze falarem conosco

A gente acorda achando que o mundo é o mesmo de ontem. Que o quarto é o mesmo, o corpo é o mesmo, o rosto no espelho é o mesmo. Mas algo escapa. O cheiro do ar mudou, o som da rua também. Nem a pele responde igual à água da torneira. Parece o mesmo, mas não é. Por baixo da aparência da identidade, tudo vibra como diferença.

É aqui que Deleuze nos dá um tapa filosófico de leve, quase um sussurro:
O Ser é unívoco, mas a diferença reina.

O que isso quer dizer? Quer dizer que tudo que existe — de uma barata ao pensamento mais sofisticado — existe do mesmo modo: simplesmente é. O Ser não faz acepção. Não há Ser privilegiado, nem hierarquia ontológica. Em outras palavras: ser filósofo, ser pedra, ser música, ser bactéria... tudo é Ser da mesma maneira. Mas essa univocidade não produz repetição ou identidade. O que emerge dessa igualdade de base é exatamente o contrário: uma explosão de diferenças.

É curioso: a univocidade, na tradição medieval, significava segurança — um termo dizia-se da mesma forma de Deus e do mundo, garantindo uma ponte entre o alto e o baixo. Para Deleuze, essa mesma univocidade é o campo onde tudo pode se diferenciar sem parar. Não há modelo para nada. Não há arquétipo. Não há essência. Só diferenças que se dobram, se torcem, se misturam.

A beleza disso? Nada precisa ser fiel a uma forma ideal. Um pássaro não voa para ser "o pássaro verdadeiro"; ele voa como pode, no seu jeito singular. Um humano não fala para se adequar ao verbo divino; ele fala para criar sentido no mundo que lhe escapa. O real é criação, não cópia. Diferença real, não identidade vazia.

É por isso que Deleuze nos faz repensar até mesmo a ideia de erro. No mundo da univocidade deleuziana, não há erro essencial — há variação, tentativa, singularização. Quando um aprendiz tropeça nas palavras, não é porque falhou em imitar o mestre perfeito: é porque ainda está criando a sua própria diferença. Quando a vida escapa do previsto, não é porque fugiu da verdade ideal — é porque a diferença nunca repousa.

Esse pensamento dissolve a obsessão por categorias fixas: o normal, o desviado, o modelo, a cópia. Tudo está em variação contínua. A filosofia deixa de ser tribunal e vira laboratório: lugar de experimentar modos de ser, de pensar, de viver.

No cotidiano, isso tem um efeito libertador. A angústia de “ser quem eu deveria ser” perde força. Quem é esse “eu ideal” que nunca chega? Ele não existe. O que existe sou eu aqui, agora, diferente de mim mesmo a cada instante, deslizando num Ser que só admite uma regra: tudo deve diferir. Até mesmo o café da manhã de hoje, que parecia igual ao de ontem, não foi. A colher caiu diferente. O gosto do pão mudou. A memória que me acompanhou enquanto eu mastigava veio de outro canto. Pequenas diferenças — mas absolutas. Porque, como diz Deleuze:

"não existe diferença de grau sem diferença de natureza."

Assim, a univocidade não é o lugar da igualdade morta. É o campo de onde brotam infinitas singularidades, todas autorizadas a serem únicas, sem precisar se justificar diante de um centro.

No fundo, talvez a grande mensagem deleuziana seja essa:

o mundo não nos quer iguais, nem corretos, nem fiéis a modelos. Ele nos quer múltiplos, criativos, dissonantes, vivos.

Aceitar a univocidade do Ser é, paradoxalmente, aceitar a diferença em estado puro. E isso muda tudo: o modo de pensar, de criar, de amar, de ser.

A Arte: Pintar a Diferença

Se existe um lugar onde a univocidade deleuziana se encarna fácil é na arte. Não há uma pintura verdadeira que todas as outras tentam imitar. Não há "o" romance essencial do qual os outros seriam cópias. Cada obra é um acontecimento singular, uma dobra irrepetível do Ser.

É como um quadro de Francis Bacon, cheio de rostos deformados, corpos tortos, carne viva. Quem olha busca uma figura clássica, uma identidade formal — e não acha. Ali o Ser é o mesmo que no rosto de qualquer pessoa, mas a diferença explodiu em formas novas. Não é deformação no sentido de falha; é outra forma surgindo, como um grito preso na tela.

Na arte deleuziana, copiar é impossível. Porque o que importa não é o tema (o rosto, o corpo, o objeto), mas o modo como a diferença se dá ali, única, irrepetível. Por isso Deleuze amava tanto o cinema de movimento (como o de Antonioni ou Godard) — porque o tempo nele não é cronológico, mas vivido como variação pura, dobra de afeto, instante deslocado.

O artista não é quem revela a essência do mundo — é quem faz a diferença vibrar no mundo.

A Política: Contra o Mesmo, pelo Múltiplo

Na política, a ilusão da identidade também rui. A ideia de um "povo uno", de uma "nação homogênea", de uma "vontade geral" é o sonho de quem teme a diferença. Deleuze (e Guattari, seu parceiro inseparável) sabia disso: onde há poder, há uma máquina tentando capturar a diferença e forçá-la a caber no molde da unidade.

O perigo está no desejo de identidade. Ser "como todos", ser "cidadão modelo", ser "membro produtivo" — tudo isso disfarça um corte violento nas diferenças reais que pulsam nas vidas concretas: o migrante, o marginal, o louco, o artista, o inventor de novas formas de viver.

A política da univocidade é outra: não busca fundir tudo num só bloco de igualdade, mas permitir que as diferenças convivam, friccionem, criem novos arranjos. Deleuze gostava das minorias não porque fossem "coitadinhas", mas porque toda diferença tem potência revolucionária. Uma nova maneira de amar, de morar, de falar, de se relacionar é uma linha de fuga contra a máquina de fazer iguais.

Política não é a arte do consenso. É o campo das diferenças ativas, em tensão. É um corpo múltiplo, rizomático, sem centro fixo.

O Corpo: Campo de Transformações

E o corpo? O corpo talvez seja o lugar mais próximo onde sentimos essa filosofia na pele — literalmente.

O corpo não é identidade. Não é estrutura fixa. Ele muda com o tempo, com o toque, com a comida, com o sono, com a dor. É um campo de forças, de intensidades. Um corpo nunca está pronto; ele está sempre se fazendo.

Quando dançamos, sentimos isso: o corpo acha ritmos estranhos, posturas novas, movimentos que não estavam "programados". No sexo também: não há mapa, há invenção viva do contato. Na doença, o corpo cria zonas imprevistas de afeto, cansaço, febre — uma nova maneira de ser carne no mundo.

Deleuze via o corpo como máquina desejante, produtora de realidades, e não como um invólucro passivo da alma. O corpo é laboratório de diferença. Sua univocidade é total: todo corpo é corpo do mesmo Ser — mas nenhum corpo é idêntico a outro, nem a si mesmo de ontem.

O corpo é multiplicidade em estado puro.

Fechamento: Viver a Diferença

No fim, Deleuze nos convida não a buscar quem somos — mas a inventar quem podemos ser. O "eu" não é identidade profunda, mas diferença emergente. Ser fiel a si mesmo não é repetir uma essência; é aceitar a aventura de se transformar sem cessar.

Arte, política, corpo — tudo é campo de variação. Tudo é espaço de diferença. A univocidade do Ser não impede nada disso — ela garante. Porque só quando o Ser é o mesmo para tudo é que ele pode se dobrar de infinitas maneiras.

Talvez o maior erro da modernidade tenha sido temer a diferença: no nome da ordem, da razão, da pureza. Deleuze propõe o contrário: afirmar a diferença sem medo, deixar o real vibrar no múltiplo.

O mundo não quer que sejamos corretos. Quer que sejamos novos.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sinônimos de Amor

Por que não um ensaio Filosófico-Poético sobre um Verbo Irremediável: “Amor é Amar”

Para ler ouvindo a música Sinônimos de Zé Ramalho:

https://www.youtube.com/watch?v=FUz0a2cl_RM

Dizem que amar é verbo nobre, mas nunca disseram que é um verbo sem defesa. Amar é, no fundo, consentir com o próprio desamparo. É sofrer de forma escolhida — e eis a novidade: um sofrimento querido, quase desejado, aceito como quem aceita uma ferida que não quer ver curada. Não há amor sem alguma fissura, como não há casa antiga sem rachadura nas paredes. O amor, como as velhas moradias, guarda o cheiro de seus próprios desabamentos.

Amar não é paz. É um incêndio discreto que arde sem consumir — uma febre sem remédio, uma fome que não passa porque o alimento é o próprio desejo. O amante sofre porque quer — sofre porque ama; e não há jeito de separar um do outro sem que ambos morram. O amor sem sofrimento é jardim de plástico: bonito de longe, mas sem vida, sem cheiro, sem risco.

Quem ama teme. Teme perder, teme não ser amado, teme ser demais, teme ser de menos. Teme que o outro mude, que o tempo mude, que a própria alma mude. O amor é um campo minado de suposições, esperanças, incertezas. Nenhum amor verdadeiro anda de mãos dadas com a segurança — quem se sente seguro demais no amor já não ama, apenas administra um contrato civil de convivência.

Amar é sofrer porque o outro escapa. O outro nunca cabe inteiro no nosso abraço, nunca é exatamente o que imaginamos. O amor real é sempre um pouco menor (ou maior) que o amor sonhado. E é nessa fresta que mora o sofrimento: o amor é o que falta, mesmo quando está presente. Como dizia Fernando Pessoa:

"Tudo quanto o amor me dá

É o que me faz falta nele..."

Sim, o amor é falta. O outro é sempre inacessível em alguma parte — e é isso que nos mantém vivos, desejantes, queimando de curiosidade pela alma alheia.

Mas — e eis o que a filosofia nos sussurra — o sofrimento do amor não é fracasso, é potência. Porque só quem ama de verdade se permite não controlar. Só quem ama aceita a aventura de ser ferido e mesmo assim permanece. Amar é dizer ao mundo: "estou disposto a perder". E nisso reside uma força mais rara que a razão: a força de quem suporta o incerto.

Schopenhauer via nisso uma armadilha da vida: amar seria cair no truque da natureza, que nos obriga a sofrer para perpetuar a espécie. Um ciclo de desejo e dor do qual não podemos escapar, meros joguetes da Vontade cega da vida. Mas talvez ele estivesse cego para o outro lado do espelho: que sofrer por amor é a única dor que nos torna mais vivos, não menos.

Nietzsche, ao contrário, via no amor (especialmente no amor que sofre) uma promessa de superação. Não um castigo, mas uma prova: quem ama intensamente é empurrado para fora de si mesmo, para o perigo, para a vertigem — e só quem suporta isso pode tornar-se criador de si. Para ele, o amor que dói é o mesmo que fortalece; é um campo de batalha onde morre o velho eu e nasce o novo. Ele escreveu:

"Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura."

Amar, para Nietzsche, é desordem criativa — não morte, mas transformação.

No fim, amar é sofrer, sim — mas é um sofrer que acorda, não que adormece. Um sofrer que afia a alma, como quem passa a faca na pedra até que brilhe. Sofrer de amor é a única dor que vale o preço, porque ao final dela descobrimos o mais estranho dos milagres: que doendo, crescemos.

Fernando Pessoa, com sua lucidez trágica, sabia disso. Em seus versos dispersos, confessou:

"Amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé..."

Até mesmo o amor sofrido vira saudade bela. Até a dor se recicla em ouro da memória.

Por isso, quem ama sofre. E quem foge do amor, sofre também — mas de um sofrimento mais frio, mais inútil, mais seco. O sofrimento de quem não ousou. O sofrimento de quem escolheu a paz dos que não viveram.

Talvez o amor seja, afinal, a arte de escolher o sofrimento certo.

A dor certa.

A ferida nobre.

A falta que nos salva.


sexta-feira, 6 de junho de 2025

O Ramo de Ouro

O Eco do Sagrado e a Morte do Rei — Pensando “O Ramo de Ouro” com James Frazer

Quem nunca jogou sal por cima do ombro ou hesitou antes de quebrar um espelho? Rituais nos rodeiam, mesmo quando achamos que somos modernos demais para eles. É curioso pensar que, por trás desses gestos supersticiosos, há resquícios de uma lógica milenar que buscava controlar o caos com símbolos, gestos e sangue.

É nesse terreno fértil e sombrio que mergulha O Ramo de Ouro, livro monumental do antropólogo escocês James George Frazer (1854-1941), publicado originalmente em 1890. A obra — que parte da investigação de um antigo ritual no bosque de Nemi, onde um sacerdote-rei era morto por seu sucessor — tornou-se uma das primeiras grandes tentativas de compreender as raízes da religião, do mito e da cultura como estruturas universais. Mais do que etnografia comparada, Frazer criou uma mitologia da mente humana.

O sacrifício como linguagem: o rei morre para que o mundo continue

O enigma inicial do rei de Nemi — cuja vida dependia de manter o ramo de ouro e derrotar seu assassino futuro — transforma-se, na leitura de Frazer, em uma chave interpretativa para entender uma miríade de rituais de morte e regeneração em todo o mundo. Em tribos africanas, entre sacerdotes incas, nas festas agrícolas do oriente, Frazer vê padrões recorrentes: o soberano como símbolo da fertilidade, que precisa morrer para que a natureza renasça.

Essa lógica, além de antropológica, é filosófica. O corpo do rei é símbolo do mundo: envelhece, entra em crise, e deve ser substituído para que o ciclo continue. O ritual, então, funciona como uma linguagem simbólica de reinício. A repetição da morte é, paradoxalmente, uma afirmação da vida.

Magia, religião, ciência: camadas da razão humana

Frazer organizou seu estudo em torno de três formas de pensamento humano: magia, religião e ciência. Para ele, a magia era uma tentativa primitiva de controlar o mundo por meio da analogia (como se fosse uma tecnologia simbólica). A religião emerge quando se reconhece um mundo comandado por deuses e vontades invisíveis. E a ciência seria, finalmente, a forma “correta” de compreender e operar a realidade.

Mas essa linearidade evolutiva foi duramente criticada. O antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss, por exemplo, viu em O Ramo de Ouro um exemplo brilhante de etnologia, mas rejeitou a ideia de que o pensamento “selvagem” fosse menos racional que o científico — para ele, trata-se apenas de lógicas diferentes, estruturadas em códigos distintos.

Da mesma forma, Mircea Eliade, filósofo e historiador das religiões, admirava a vastidão simbólica da obra de Frazer, mas a reinterpretou em termos da oposição entre tempo profano e tempo mítico. Para Eliade, o sacrifício ritual não era erro primitivo, mas uma forma de reatualizar a criação do mundo — um retorno ao tempo sagrado da origem.

Jung e o inconsciente simbólico

Entre os mais impactados por O Ramo de Ouro esteve Carl Gustav Jung, que viu no livro uma mina de ouro simbólica. Jung não o leu como simples antropologia, mas como testemunho de uma psique arquetípica. O rei sacrificado, a árvore dourada, o ciclo de morte e renascimento — tudo isso representava, para Jung, expressões do inconsciente coletivo.

Jung considerava que esses rituais antigos não desapareceram, mas foram reinternalizados na alma moderna, manifestando-se em sonhos, mitos e narrativas. O ramo de ouro, nesse sentido, torna-se símbolo de iniciação psíquica: o ego que precisa morrer para que o self renasça.

A psicologia profunda de Jung e a mitologia comparada de Frazer se encontram na intuição comum de que a humanidade vive através de símbolos — e que esses símbolos, mesmo quando esquecidos, continuam a operar silenciosamente em nós.

A cultura moderna ainda carrega o ramo

Não foram apenas antropólogos e psicólogos que se encantaram com Frazer. O Ramo de Ouro influenciou fortemente T.S. Eliot, cuja obra-prima modernista The Waste Land (1922) se constrói justamente sobre a imagem do mundo árido, à espera de um sacrifício redentor. Eliot usou a estrutura simbólica de Frazer para dar forma ao desespero espiritual do século XX.

Também Sigmund Freud dialogou com o livro, especialmente na elaboração de Totem e Tabu (1913), onde interpreta o assassinato do pai primordial como origem da cultura. A conexão entre sexualidade, morte e sacralidade — tão presente em Frazer — é base para toda a psicanálise freudiana.

Até mesmo cineastas e romancistas beberam da fonte: da cena do bosque em O Poderoso Chefão ao horror pagão de The Wicker Man, o imaginário de Frazer é constantemente reciclado. Ele criou um léxico simbólico ocidental, mesmo que isso tenha sido feito à revelia do próprio Ocidente.

O ramo continua a florescer

O Ramo de Ouro é mais do que uma obra sobre o passado: é um espelho simbólico do presente. Mesmo que o rei não seja mais sacrificado num bosque, seguimos sacrificando versões de nós mesmos, buscando sentido, repetindo gestos com raízes invisíveis.

Frazer pode ter sido eurocêntrico e evolucionista, sim — mas sua obra sobreviveu porque tocou algo fundamental: a intuição de que o humano vive em busca de passagem. Seja para outro mundo, para uma nova estação, para uma vida melhor ou para o autoconhecimento, ainda precisamos do ramo — dourado, raro, impossível — que nos permita atravessar o invisível.

Como nos lembrou Jung, não abandonamos nossos rituais: apenas os tornamos internos. Como escreveu Eliot: “Esses fragmentos eu reuni contra minha ruína.” E como apontou Frazer, talvez a civilização não seja o fim dos mitos, mas sua forma mais sofisticada.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Tudo Tão Vago

 

Outro dia, num intervalo qualquer, alguém comentou: “tá tudo tão vago ultimamente”. Ninguém respondeu, mas todos pareceram entender. A frase ficou flutuando no ar como fumaça de cigarro em sala fechada — sem forma, sem pressa, incômoda e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar.

A vaguidão virou paisagem.

As mensagens não dizem nada, mas estão cheias de palavras. Os compromissos não se sustentam, mas continuam agendados. As certezas andam frágeis, como cadeiras de plástico ao sol. Vivemos uma época em que o mundo ainda está aqui, mas a nitidez dele parece ter sido desligada, como quando o óculos embaça ou o farol do carro apaga num túnel.

Mas afinal, o que é esse vago que paira sobre tudo?

O vago como forma de sobrevivência

Viver com tudo muito claro pode doer. Por isso, o vago pode ser um escudo. Quando dizemos que “tá tudo meio estranho”, adiamos um enfrentamento. “Meio estranho” é menos agressivo do que “insuportável”. “Meio cansado” protege da vergonha de admitir que estamos exaustos de viver assim.

Há uma política do vago nas relações humanas: diz-se “vamos marcar algo” no lugar de dizer “não quero mais te ver”. Diz-se “tá em aberto” quando, na verdade, não se quer decidir nada. Vaguidão vira uma estratégia de convivência social, como se manter as coisas sem foco evitasse conflitos — e talvez evite mesmo.

Há quem diga que prefere tudo claro, mas some quando o WhatsApp mostra dois tiques azuis. Essa é a geração do “vamos conversar” que na prática se resume a “me deixa em paz, mas me elogia de longe”.

Vaguidão e excesso

O mundo contemporâneo está cheio de tudo: de informações, de imagens, de vozes, de convites, de cobranças. Quando tudo é demais, nada se fixa. A mente se enche, mas não se nutre. O resultado é esse cansaço flutuante, essa apatia educada, essa sensação de estarmos sempre por um fio sem saber qual.

A vaguidão não é ausência. É excesso mal digerido.

Poeticamente falando, somos folhas ao vento. Ironicamente falando, somos planilhas com burnout.

Vivemos entre notificações e devaneios. Queremos férias espirituais, mas o máximo que conseguimos é ativar o “modo avião” por dez minutos — até bater a culpa de não responder ao grupo da firma.

Filosofia do vago: o que nos escapa também é real

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty falava da “ambiguidade essencial da experiência”. Para ele, o mundo nunca nos é dado totalmente, e a consciência está sempre num jogo de revelar e esconder. Nesse sentido, o vago não é erro, é condição. Ver claramente tudo seria uma ilusão. O que escapa, o que não se define, o que não se encaixa — isso também faz parte da realidade.

Quando sentimos que “tá tudo vago”, talvez seja um chamado da alma pedindo por um tempo mais lento, por menos respostas prontas, por pausas que nos devolvam à pergunta.

Mas vai explicar isso para o chefe que quer clareza no e-mail até quando você só queria dizer: “não sei se quero continuar nesse cargo ou fugir para Minas e virar ceramista.”

O risco do vago como vício

Mas há um risco. Quando o vago vira hábito, perde-se o compromisso com o real. Começamos a viver como quem assiste a um filme com o brilho do celular ligado — estamos ali, mas não estamos. Evitamos o incômodo de decidir, de nomear, de assumir. E aos poucos, vamos deixando de ser protagonistas da própria vida.

O vago pode proteger, mas também pode anestesiar.

Numa era de escolhas infinitas, a maior ousadia é escolher algo de fato. É preciso coragem pra dizer "é isso", quando a moda é dizer "depende" e passar o dia escolhendo entre delivery japonês, pizza vegana ou um jejum existencial.

Da névoa à forma

Nem tudo precisa ser nítido. Há beleza no indeterminado, no que ainda está por nascer. Mas talvez seja preciso reaprender a conviver com o vago não como fuga, e sim como passagem.

Como quem entra num nevoeiro e, em vez de parar, segue com passos firmes, sabendo que mesmo sem ver muito, ainda caminha.

E se a vida parecer muito vã, muito vaga, muito líquida — que ao menos seja um café bem passado. Porque viver mal já basta, mas viver sem aroma é demais.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Tempo e Ser

 

Já reparou como, às vezes, o tempo parece escorrer por entre os dedos — como areia molhada? Você acorda, toma café, vai ao trabalho, responde e-mails, olha o relógio, almoça apressado, volta... e, quando vê, é noite. Você viveu, mas passou por você?

Heidegger, já mais velho, também pensava nisso. E decidiu voltar à pergunta que nunca o abandonou: o que é o ser? Mas agora com outra lente: o tempo não é só um pano de fundo — ele é o próprio caminho por onde o ser se mostra.

 

1. Uma inversão: não somos nós que controlamos o tempo

A primeira mudança de chave em Tempo e Ser é essa: não somos nós que temos o tempo — é o tempo que nos tem.

Parece estranho? Pensa naquela reunião que você achou que ia durar 15 minutos e virou 2 horas. Ou naquele feriado que voou. O tempo não se mede só no relógio. Ele é vivido — e, por isso, pode expandir ou encolher. Heidegger chama isso de tempo próprio, tempo apropriador (Ereignis).

 

2. Do ser como presença ao ser como doação

Lá em Ser e Tempo, Heidegger ainda tratava o ser como algo que se manifestava dentro do tempo. Agora, em Tempo e Ser, ele diz que o tempo é a condição do ser se mostrar. O ser não está “lá” o tempo todo — ele se doa, se revela, se retira.

É como as pessoas na nossa vida: tem amigos que aparecem quando a gente menos espera — e outros que, mesmo presentes, estão ausentes. O ser também é assim — se dá no tempo certo, e só no tempo certo.

 

3. O Ereignis: o momento em que o ser acontece

Heidegger inventa uma palavra complexa: Ereignis. Traduzem como “acontecimento apropriador” ou “evento de apropriação”. Mas pense nisso como aquele instante em que tudo se encaixa, mesmo que por um segundo.

Tipo quando você está andando na rua, distraído, e sente que está no lugar certo, na hora certa. Ou quando escuta uma música antiga e algo em você se revela — uma lembrança, uma emoção esquecida.

Não é você quem provoca isso — é o tempo que te entrega.

 

4. O tempo como clareira (Lichtung)

Heidegger fala que o ser precisa de uma clareira para aparecer — como uma luz que atravessa a floresta. Essa luz é o tempo.

Na prática? É como quando você finalmente tem um domingo livre. Silêncio em casa. Você senta, olha pela janela e pensa em tudo que não pensa durante a semana. A vida parece abrir espaço para você pensar no que está fazendo com ela.
Esse instante de clareira é um presente do tempo. E o ser, tímido, aparece ali — se você estiver atento.

 

5. Nem cronômetro, nem relógio — tempo como relação

Heidegger nos convida a abandonar a ideia de tempo como algo linear e medido em minutos. Ele quer que a gente perceba o tempo como relação com o ser.
Você já teve um almoço com alguém que parecia durar cinco minutos, mas mudou o seu mês? Ou já ficou olhando para o teto por três horas sem conseguir respirar de tanta angústia? O tempo que vale não é o dos ponteiros, mas o da experiência.

 

Viver é acolher o tempo que nos escolhe

Em Tempo e Ser, Heidegger não está oferecendo uma receita de como aproveitar melhor o tempo, como os gurus da produtividade. Ele está dizendo:

“Pare de correr. Escute o tempo. Ele não é seu inimigo. Ele é o próprio lugar onde o ser se mostra.”

Na prática? Talvez seja deixar o celular de lado por meia hora. Sentar em silêncio. Ouvir um amigo com atenção. Aceitar que nem tudo está no nosso controle — e que o que realmente importa acontece quando você permite que o tempo aconteça em você.

Ser e Tempo

Não é sempre que a gente se pergunta “o que é o ser?”, e talvez por isso mesmo seja uma pergunta tão esquecida. Martin Heidegger, em sua obra Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927), faz justamente isso: resgata essa pergunta esquecida que está, no fundo, por trás de todas as outras. Não é "o que são as coisas", mas o que é o próprio ser das coisas — e principalmente o nosso.

Mas calma, não precisa já puxar o dicionário de filosofia. Vamos sentar, tomar um cafezinho e ver como isso aparece na nossa vida comum.

1. Dasein: o ser que se pergunta sobre o ser

Heidegger não usa "ser humano". Ele prefere a palavra Dasein, que em alemão quer dizer algo como “ser-aí” — o ser que está lançado no mundo e que tem consciência da própria existência.

Um exemplo simples: você está na fila do supermercado, olhando para o teto, e do nada te vem a pergunta: “O que eu tô fazendo com a minha vida?”

Esse momento de desconforto, em que o mundo perde um pouco do automático, é o Dasein sentindo que há algo mais fundamental em jogo. Não é só pagar as compras — é perceber que se está existindo.

2. Ser-no-mundo: não somos coisas isoladas

Para Heidegger, a gente nunca é um ser fechado em si. A gente é ser-no-mundo: sempre em relação com outras pessoas, objetos, tarefas. Você não é você sozinho, mas você com seu celular, com seu trabalho, com seus afetos, com o alarme que tocou hoje cedo.

Por exemplo: um marceneiro não vê um martelo como um objeto teórico, mas como uma extensão do seu fazer. É assim que vivemos o mundo — em uso, em relação, em prática. Só quando algo quebra (como o Wi-Fi que cai no meio da reunião) é que percebemos que estávamos fluindo com as coisas.

3. A queda no cotidiano e o impessoal

No cotidiano, a gente vive no "se":

"Se faz assim."

"Se trabalha demais."

"Se casa antes dos trinta."

É o que Heidegger chama de queda no impessoal. A gente vive como “todo mundo vive”, sem se perguntar se aquilo faz sentido para a gente.

É como entrar no ônibus errado porque todo mundo estava entrando — e depois perceber que você nem sabia pra onde queria ir.

4. Angústia e autenticidade

Quando tudo vai bem, vivemos como se a vida fosse eterna. Mas às vezes, bate a angústia — não medo de algo específico, mas aquela sensação de que tudo perdeu o sentido. É como se a vida mostrasse: “Ei, você vai morrer. E só você pode viver a sua vida.”

Essa angústia, segundo Heidegger, pode ser um presente: ela revela a possibilidade de viver de forma autêntica, ou seja, assumindo o próprio destino, e não só seguindo o fluxo do “se”.

5. Ser-para-a-morte: a finitude como chave

A gente vive fingindo que a morte é dos outros. Mas Heidegger insiste: somos seres-para-a-morte. Isso não é pessimismo — é clareza.

Saber que vamos morrer dá peso e liberdade às escolhas. A vida não é um ensaio. Cada manhã é um palco real.

Exemplo? Aquela conversa que você não teve, aquele curso que você adiou, aquele perdão que nunca deu. Tudo isso se torna mais urgente quando você lembra que o tempo escorre.

Vamos Finalizando com o cafezinho e a conversa: não é sobre saber mais, mas sobre ser melhor

Ser e Tempo não quer te dar respostas, mas te provocar. Heidegger não ensina fórmulas de sucesso, mas mostra que viver exige coragem para perguntar o que se é — e o que se quer ser.

E talvez, só talvez, ao fazer isso, a gente aprenda a viver de um modo mais verdadeiro. Nem que seja começando pelo café de amanhã — tomado não por hábito, mas por escolha.