Um espelho rachado de nós mesmos
Outro
dia, parado no trânsito, vi um motorista buzinando furiosamente para um
ciclista que cruzava na faixa. O ciclista, por sua vez, gritou de volta um
palavrão daqueles de fazer murchar samambaia. Nada que eu não tivesse visto
antes. Mas, por algum motivo, nesse instante algo me cutucou por dentro: por
que nos incomodamos tanto com a conduta dos outros? E mais — por que ela nos
afeta tanto, a ponto de desviar nosso humor, alterar nossas escolhas ou até
mudar o rumo do nosso dia?
Vivemos
cercados de condutas alheias: gente que fala alto no ônibus, que fura fila, que
dá bom dia sorrindo ou que age com gentileza silenciosa. Cada gesto do outro é
como uma nota solta no nosso cotidiano — às vezes harmônica, às vezes
dissonante. Este ensaio quer pensar a conduta alheia não apenas como "o
que o outro faz", mas como um campo de espelhos onde, frequentemente, nos
vemos refletidos — distorcidos, aumentados ou reduzidos.
Então
vamos dialogar com alguns de nossos amigos filósofos e ver o que eles tem a nos
dizer a respeito.
Jean-Paul
Sartre: o inferno são os outros... ou são os nossos olhos sobre eles?
Sartre,
em O Ser e o Nada, propõe que o olhar do outro nos fixa como objeto. Ao
percebermos que estamos sendo observados, deixamos de ser sujeitos livres e
passamos a tentar corresponder — ou reagir — ao julgamento alheio. A conduta do
outro, nesse sentido, não é só o que ele faz, mas o que nos faz sentir.
É
por isso que, ao ver alguém quebrando uma regra que seguimos, sentimos raiva ou
desconforto: o outro parece nos dizer, sem palavras, que nossa escolha talvez
tenha sido inútil. E isso nos tira o chão. Não suportamos a liberdade do outro
quando ela expõe nossas próprias escolhas como frágeis ou inconsistentes.
Hannah
Arendt: a banalidade do agir comum
Arendt
nos ajuda a ver que a conduta alheia pode ser tanto poderosa quanto banal. Em Eichmann
em Jerusalém, ela descreve como a obediência cega à norma social — sem
reflexão — pode gerar tragédias. Mas essa observação se aplica também ao dia a
dia: muitas condutas alheias que criticamos (ou imitamos) são feitas sem
consciência, apenas como reflexo do ambiente.
Quando
julgamos a conduta do outro, raramente nos perguntamos: qual o contexto?
houve reflexão ou repetição? A grande virada arendtiana é mostrar que o
agir só ganha sentido ético quando se pensa. Assim, se queremos avaliar
condutas alheias, talvez o critério não seja o que foi feito, mas se
houve pensamento no fazer.
Nietzsche:
a crítica como projeção
Nietzsche,
em Além do Bem e do Mal, alerta que muito da moral que usamos para
julgar os outros é só um disfarce dos nossos próprios impulsos reprimidos.
Quando apontamos o dedo para a conduta alheia, frequentemente projetamos nela
algo que não queremos admitir em nós mesmos.
Por
exemplo, ao criticar alguém que vive “de aparência”, pode ser que,
secretamente, desejemos aquela liberdade de parecer o que se quiser. Ou então,
ao condenar a passividade de outro, talvez sejamos nós os que agem por medo,
camuflados de coragem. A conduta do outro, nesse sentido, é uma tela onde
pintamos nossas sombras.
Olhar
sem enrijecer
A
conduta alheia sempre vai nos afetar — somos seres relacionais, sensíveis ao
que nos cerca. Mas talvez o exercício filosófico aqui seja outro: aprender a
olhar a conduta do outro não como um tribunal onde se julga, mas como um
laboratório onde se compreende. Há dias em que o outro apenas age — como nós
também agimos — de forma tosca, repetida, hesitante, talvez um grito de
rebeldia contra um sistema cruel. E tudo bem. O que fazemos com o que vemos diz
mais sobre nós do que sobre quem age.
Sartre
nos mostra que o olhar do outro nos define. Arendt nos lembra da importância de
pensar antes de agir. Nietzsche nos provoca a buscar nossas motivações ocultas
antes de acusar. No fim das contas, entender a conduta alheia pode ser uma
maneira de afinar nosso próprio compasso — e talvez, só talvez, tocar uma nota
melhor na sinfonia caótica dos encontros humanos.