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terça-feira, 27 de maio de 2025

Neutralidade Axiológica

Coisa difícil olhar sem julgar...

Outro dia, numa fila de padaria, um senhor comentava com indignação sobre um jovem tatuado que estava à frente, dizendo algo como: “Esses de hoje em dia não respeitam nada”. Ninguém respondeu, mas ficou aquele silêncio meio constrangido. O senhor não sabia nada sobre o rapaz — nem seu nome, nem sua história, nem se ajudava a mãe doente ou lia poesia russa à noite. Apenas julgou. E eu fiquei pensando: como a gente tem dificuldade de observar o outro sem já carregar um julgamento pronto na mochila.

Essa mania de “colocar adjetivo em tudo” não é só uma questão de educação. É também um desafio para quem tenta estudar o mundo social com seriedade. Por isso, Max Weber cunhou um conceito que hoje ainda soa radical para muita gente: neutralidade axiológica. A ideia de olhar um fenômeno sem misturar os próprios valores pessoais no meio da análise. Em outras palavras: observar, registrar, compreender — mas não transformar tudo numa pregação moral.

Weber não era ingênuo. Sabia que ninguém é uma folha em branco. Todo pesquisador tem ideais, crenças, paixões políticas. Mas ele dizia: quando estudamos a sociedade, é preciso tentar separar o que é um fato do que é uma opinião. Isso não significa virar uma pedra ou fingir que não sentimos nada. Significa ter o compromisso de não impor nossos valores ao objeto estudado, mas sim escutá-lo com atenção, mesmo que ele nos incomode.

Um exemplo bem cotidiano: um sociólogo estudando o tráfico de drogas numa comunidade não pode chegar já dizendo que todos ali são bandidos. Ele precisa entender o contexto, as escolhas limitadas, as redes de poder, as relações de sobrevivência. Se ele já entra com a moral pronta, fecha os olhos para a complexidade do real. E aí, ao invés de ciência, faz panfleto.

Na vida cotidiana, esse esforço de neutralidade pode até parecer impossível — e talvez seja mesmo, no sentido pleno. Mas isso não quer dizer que não valha a tentativa. Talvez, mais do que uma técnica científica, a neutralidade axiológica seja um exercício ético: o de dar ao outro o direito de existir sem ser imediatamente rotulado.

O filósofo brasileiro José Arthur Giannotti dizia que pensar exige “rigor e delicadeza”. Rigor para não nos deixarmos levar pelos ventos fáceis da opinião. Delicadeza para acolher o que é diferente de nós. Neutralidade axiológica é isso: um gesto de respeito. Um silêncio que escuta antes de falar. Uma espera que observa antes de bater o martelo.

Talvez, se aquele senhor da padaria tivesse esse olhar, visse no jovem tatuado não uma ameaça, mas uma história. Talvez visse nele alguém tão humano quanto ele próprio. E, quem sabe, se interessasse mais pelo pão quentinho do que pela vida alheia.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Conduta Alheia

Um espelho rachado de nós mesmos

Outro dia, parado no trânsito, vi um motorista buzinando furiosamente para um ciclista que cruzava na faixa. O ciclista, por sua vez, gritou de volta um palavrão daqueles de fazer murchar samambaia. Nada que eu não tivesse visto antes. Mas, por algum motivo, nesse instante algo me cutucou por dentro: por que nos incomodamos tanto com a conduta dos outros? E mais — por que ela nos afeta tanto, a ponto de desviar nosso humor, alterar nossas escolhas ou até mudar o rumo do nosso dia?

Vivemos cercados de condutas alheias: gente que fala alto no ônibus, que fura fila, que dá bom dia sorrindo ou que age com gentileza silenciosa. Cada gesto do outro é como uma nota solta no nosso cotidiano — às vezes harmônica, às vezes dissonante. Este ensaio quer pensar a conduta alheia não apenas como "o que o outro faz", mas como um campo de espelhos onde, frequentemente, nos vemos refletidos — distorcidos, aumentados ou reduzidos.

Então vamos dialogar com alguns de nossos amigos filósofos e ver o que eles tem a nos dizer a respeito.

Jean-Paul Sartre: o inferno são os outros... ou são os nossos olhos sobre eles?

Sartre, em O Ser e o Nada, propõe que o olhar do outro nos fixa como objeto. Ao percebermos que estamos sendo observados, deixamos de ser sujeitos livres e passamos a tentar corresponder — ou reagir — ao julgamento alheio. A conduta do outro, nesse sentido, não é só o que ele faz, mas o que nos faz sentir.

É por isso que, ao ver alguém quebrando uma regra que seguimos, sentimos raiva ou desconforto: o outro parece nos dizer, sem palavras, que nossa escolha talvez tenha sido inútil. E isso nos tira o chão. Não suportamos a liberdade do outro quando ela expõe nossas próprias escolhas como frágeis ou inconsistentes.

Hannah Arendt: a banalidade do agir comum

Arendt nos ajuda a ver que a conduta alheia pode ser tanto poderosa quanto banal. Em Eichmann em Jerusalém, ela descreve como a obediência cega à norma social — sem reflexão — pode gerar tragédias. Mas essa observação se aplica também ao dia a dia: muitas condutas alheias que criticamos (ou imitamos) são feitas sem consciência, apenas como reflexo do ambiente.

Quando julgamos a conduta do outro, raramente nos perguntamos: qual o contexto? houve reflexão ou repetição? A grande virada arendtiana é mostrar que o agir só ganha sentido ético quando se pensa. Assim, se queremos avaliar condutas alheias, talvez o critério não seja o que foi feito, mas se houve pensamento no fazer.

Nietzsche: a crítica como projeção

Nietzsche, em Além do Bem e do Mal, alerta que muito da moral que usamos para julgar os outros é só um disfarce dos nossos próprios impulsos reprimidos. Quando apontamos o dedo para a conduta alheia, frequentemente projetamos nela algo que não queremos admitir em nós mesmos.

Por exemplo, ao criticar alguém que vive “de aparência”, pode ser que, secretamente, desejemos aquela liberdade de parecer o que se quiser. Ou então, ao condenar a passividade de outro, talvez sejamos nós os que agem por medo, camuflados de coragem. A conduta do outro, nesse sentido, é uma tela onde pintamos nossas sombras.

Olhar sem enrijecer

A conduta alheia sempre vai nos afetar — somos seres relacionais, sensíveis ao que nos cerca. Mas talvez o exercício filosófico aqui seja outro: aprender a olhar a conduta do outro não como um tribunal onde se julga, mas como um laboratório onde se compreende. Há dias em que o outro apenas age — como nós também agimos — de forma tosca, repetida, hesitante, talvez um grito de rebeldia contra um sistema cruel. E tudo bem. O que fazemos com o que vemos diz mais sobre nós do que sobre quem age.

Sartre nos mostra que o olhar do outro nos define. Arendt nos lembra da importância de pensar antes de agir. Nietzsche nos provoca a buscar nossas motivações ocultas antes de acusar. No fim das contas, entender a conduta alheia pode ser uma maneira de afinar nosso próprio compasso — e talvez, só talvez, tocar uma nota melhor na sinfonia caótica dos encontros humanos.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Imerso em Contradições

Vamos dar uma viajada e falar sobre o paradoxo cotidiano de ser humano!

Viva a imaginação, o vento que sopra a vela que nos leva mundo a fora!

Outro dia, parado no trânsito, reparei em um adesivo colado no carro da frente: “Seja você mesmo!”. Achei tri, nada mais justo, pensei. Mas, dois minutos depois, o mesmo carro buzinava impacientemente para um idoso atravessar a faixa com dificuldade. Putz, aquilo me fez rir. E também pensar. Porque, afinal, quem é esse “você mesmo” que a gente tanto recomenda ser — e que, no minuto seguinte, desaparece na ansiedade coletiva, na pressa do relógio, nas cobranças sociais?

Vivemos imersos em contradições. Pedimos empatia, mas rolamos as redes sociais julgando sem piedade. Pregamos liberdade, mas apontamos o dedo para quem vive fora do nosso molde. Queremos autenticidade, mas vibramos por curtidas. Esse emaranhado de contradições, mais do que hipocrisia, talvez seja a nossa condição mais profunda — e mais esquecida. Vamos por aí, tropeçando em nossas próprias verdades e mentiras, tentando organizar o caos sem perceber que somos, nós mesmos, parte dele.

O corpo dividido: entre o que sentimos e o que mostramos

A filosofia já alertava: Heráclito dizia que tudo flui, que nunca nos banhamos no mesmo rio. Mas e quando nem sabemos quem somos ao mergulhar? O “eu” moderno não é mais uma unidade — ele é um mosaico de pedaços, uma colcha de retalhos feita de vontades contrárias, desejos conflitantes, máscaras sociais e silêncios profundos. A sociologia de Erving Goffman já denunciava isso com sua metáfora do teatro social: todos nós encenamos. O problema é quando a peça se mistura tanto com a vida que já não sabemos se estamos atuando ou sendo.

Nas redes, sorrimos para selfies tristes. No trabalho, competimos enquanto falamos em colaboração. Em casa, desejamos descanso, mas não largamos o celular. Estamos em um estado permanente de dissonância. E o mais curioso: aprendemos a chamar isso de normalidade.

As estruturas que alimentam o paradoxo

Contradições não nascem só dentro da gente — elas são também fabricadas por sistemas. O capitalismo, por exemplo, nos vende a ideia de felicidade, mas lucra com nossa insegurança. “Você é perfeito como é”, diz a propaganda, logo antes de oferecer a próxima solução para você se melhorar. As instituições reforçam valores que não praticam: a escola ensina igualdade, mas o vestibular seleciona por classe. A política defende a justiça, mas negocia privilégios.

Nesse jogo, cada um de nós vira um campo de batalha. Entre o que somos e o que deveríamos ser, entre o que sentimos e o que diz o manual da vida moderna. O resultado? Uma subjetividade esgotada, mas hiperconectada. Perdidos em nós mesmos, ainda somos cobrados a nos encontrar — rápido, e com estética.

O paradoxo como matéria-prima da humanidade

E se a contradição não for um erro a ser corrigido, mas uma característica essencial da existência? Nietzsche, com sua lucidez cortante, já dizia: “É preciso ter caos dentro de si para gerar uma estrela dançante.” Talvez viver bem não seja resolver nossas contradições, mas aprender a dançar com elas.

A contradição nos humaniza. Ela mostra que não somos fórmulas fechadas, mas caminhos em construção. É no conflito entre querer e poder, entre dizer e fazer, que abrimos espaço para a reflexão — e, quem sabe, para alguma transformação. Não uma revolução heroica, mas um pequeno ajuste de rota. Um gesto mais coerente, uma palavra menos automática, um silêncio mais presente.

Aceitar sem resignar

Estar imerso em contradições não é um fracasso moral — é um sintoma do tempo e, talvez, uma oportunidade. Aceitá-las não significa resignar-se. Significa estar atento. É olhar para si com um pouco mais de gentileza, e para o outro com um pouco menos de julgamento. Como propôs o sociólogo Zygmunt Bauman, viver hoje é viver em um mundo líquido, onde certezas escorrem entre os dedos. Mas talvez, no meio disso tudo, o que nos salva seja exatamente isso: a coragem de continuar mergulhando — mesmo sem ver o fundo.


terça-feira, 13 de maio de 2025

Não-mente


Sabe aquele momento em que você está tão imerso em algo que parece que a mente some? Não há um eu tagarelando dentro da cabeça, nem uma voz avaliando cada ação. Você simplesmente faz. Pode ser ao tocar um instrumento, cozinhar sem seguir receita, caminhar sem rumo, ou até mesmo ao olhar o céu sem interpretar nada. Essa experiência, paradoxalmente, é o que muitos chamam de "não-mente".

A ideia de "não-mente" (do japonês mushin) tem raízes no pensamento zen-budista e nas artes marciais do Oriente. Trata-se de um estado de pura presença, sem apego a julgamentos ou pensamentos discursivos. É um esvaziamento, mas não no sentido de falta — é um vazio pleno, como o de uma xícara pronta para receber chá.

No Ocidente, essa noção pode parecer estranha. Estamos acostumados a ver a mente como uma ferramenta essencial, um motor que nunca pode parar. O pensamento racional e analítico nos define. No entanto, há momentos em que a mente, ao invés de ajudar, atrapalha. Um músico que pensa demais na próxima nota pode errar. Um atleta que hesita perde a jogada. A "não-mente" não é ausência de pensamento, mas ausência de interferência do pensamento.

Podemos observar essa ideia na filosofia de Martin Heidegger, que critica a noção cartesiana de sujeito pensante separado do mundo. Para Heidegger, estar-no-mundo é algo mais primário do que cogitar sobre ele. Vivemos primeiro, refletimos depois. Assim, a "não-mente" não é uma fuga do pensamento, mas um modo de habitar plenamente a experiência antes que a razão venha interpretá-la.

No cotidiano, alcançar esse estado pode ser um desafio. A sociedade moderna cultiva a hiperconsciência e a análise constante. Cada passo deve ser documentado, cada experiência narrada. No entanto, há momentos em que a fluidez da vida exige menos racionalização e mais entrega. Pequenos gestos como respirar profundamente, ouvir sem antecipar respostas, ou apenas estar presente já são um começo.

No fim, talvez a "não-mente" seja menos um conceito e mais um convite. Um chamado para experimentar a vida sem o excesso de filtros e expectativas. Para deixar que as coisas simplesmente sejam. Sem o barulho interno que insiste em interpretar, julgar e corrigir. Apenas estar. Apenas ser.