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domingo, 29 de junho de 2025

Sem Escrúpulos

Estas são reflexões de muitos domingos! Parece até uma colcha de retalhos, mas pensamento é assim mesmo! Os retalhos das notícias do cotidiano vão sendo guardados no Palácio da Memória, lembrei de Santo Agostinho em sua jornada de reforma intima, sem deixar de olhar para o mundo em que vivia!

Então, vamos lá!

...quando a moral deixa a mesa de decisões!

Há governos que governam, e há governos que operam — friamente, como máquinas calculistas. A diferença entre um e outro não está apenas na eficiência ou no carisma dos líderes, mas, sobretudo, na presença ou ausência de escrúpulos. Um governo sem escrúpulos é aquele que já não sente o incômodo do erro, não hesita diante do injusto, não recua diante do sofrimento causado. É como se sua bússola moral estivesse desmagnetizada. O governo muda de mão, mas não muda.

No cotidiano, vemos sinais disso nos pequenos absurdos: filas intermináveis nos hospitais públicos, salários atrasados de professores, licitações misteriosas, orçamento secreto, fraudes na previdência. Mas a falta de escrúpulo se revela, sobretudo, na forma como o poder se blinda da dor alheia. A máquina segue funcionando, mesmo quando passa por cima de pessoas.

Há governos que se movem com base em ideias, e outros que se arrastam empurrados por interesses. Mas os mais perigosos são aqueles que já não sentem mais incômodo moral — governos sem escrúpulos, que perderam a capacidade de hesitar diante do erro, que naturalizaram o injusto, que blindaram a consciência. O problema não é só de política: é de alma.

A política cotidiana nos mostra isso nos detalhes: a escola que não tem teto, o hospital sem médico, a comida que não chega ao prato. E no entanto, os recursos existem — só estão presas em orçamentos secretos (se é secreto é imoral), verbas bilionárias a título de fundo partidário, direcionados por parlamentares que se comportam como donos do país. Essa prática é talvez o retrato mais cristalino de um governo sem escrúpulos: verbas públicas distribuídas longe dos olhos do povo, guiadas não pela necessidade social, mas por conveniências eleitorais e alianças silenciosas. O dinheiro, que deveria ir para o bem comum, é canalizado como moeda de poder. Sem falar na centralização de impostos nas mãos de governos corruptos e incompetentes.

O filósofo Immanuel Kant, em sua ética do dever, falava que devemos tratar os outros sempre como fins, nunca como meios. Um governo sem escrúpulos faz exatamente o contrário: transforma vidas em estatísticas, pessoas em obstáculos, comunidades em ruídos. O cálculo utilitário substitui o juízo moral. Há um descolamento entre o poder e o povo — como se governar fosse uma ciência fria, livre de dilemas.

Maquiavel, no O Príncipe, descreve uma política onde a virtude está na manutenção do poder, não na bondade. Mas mesmo ele, tão associado à frieza política, reconhecia que o governante deveria parecer virtuoso. O problema do governo sem escrúpulos é que ele não se dá mais ao trabalho de parecer justo — ele apenas exerce o poder como quem está acima de qualquer lei moral.

A ética da responsabilidade, defendida por Max Weber, desaparece quando não há transparência. Quando os joelhos que se dobram diante de Deus, o fazem apenas para rezar pelos próprios interesses, estamos diante de uma espiritualidade esvaziada. Uma encenação sagrada ao serviço do poder profano. Dobra-se o joelho, mas não o orgulho; faz-se o sinal da cruz, mas não se cruza com o outro.

Esse uso político de Deus, comum em governos sem escrúpulos, não é fé — é estratégia. É como se até a religião fosse incorporada ao orçamento secreto da consciência. A sacralidade vira cenário, a oração vira retórica, e a humildade dá lugar ao marketing. Tudo se torna instrumento.

Hannah Arendt, ao refletir sobre o mal burocrático, nos alerta sobre o “mal sem maldade” — aquele que age sem pensar, que cumpre ordens, que se esconde por trás de normas e processos. O governo sem escrúpulos se nutre dessa mesma lógica: tira o rosto do mal, apaga a assinatura das injustiças, e nos diz que “é assim mesmo”.

Talvez o mais preocupante seja o acostumar-se com esse tipo de governo. Quando a população começa a achar normal a injustiça, quando o cinismo toma o lugar da esperança, o escrúpulo vira fraqueza. A política vira espetáculo, e a moral, um incômodo a ser ridicularizado.

Mas é exatamente aí que a filosofia resiste. Escrúpulo não é fraqueza — é humanidade. Um governo sem escrúpulos pode até parecer eficiente por um tempo, mas constrói ruínas invisíveis: o medo, o silêncio, a indiferença. Governar com escrúpulos é ouvir as consequências antes de tomar a decisão. É lembrar que por trás de cada lei, há vidas.

Além do orçamento secreto, outro sintoma de um governo sem escrúpulos é o aumento constante de impostos sem qualquer esforço real para cortar despesas públicas. A conta recai, como sempre, sobre quem trabalha e produz, enquanto os privilégios permanecem intocados. Não há coragem para enfrentar os gastos inchados do Estado, nem vontade política para cortar na própria carne. Em vez disso, o Executivo se curva à lógica do "toma-lá-dá-cá" do Congresso, alimentando uma classe parlamentar viciada em emendas, cargos e favores. A máquina pública segue ineficiente, mas o cidadão é quem paga a conta — sem direito a indignação, como se financiar a inércia fosse um dever patriótico. A submissão do governo a esse sistema corrupto de trocas silenciosas revela não apenas fraqueza administrativa, mas uma renúncia ética: governar já não é enfrentar os interesses, mas servi-los em silêncio.

O suor do trabalhador é como água benta do sacrifício, vidas vem e vão, numa circularidade interminável e insuportável, até Sísifo não aguentaria tamanha crueldade desta cobrança interminável de impostos injustos. Quando ainda conseguimos empurrar a pedra montanha acima é porque ainda a suportamos, mas e quando o esforço estiver além de suas forças? Seremos atropelados pela pedra, esmagados pela insensibilidade, corrupção e incompetência daqueles (governos) que entregam as pedras para serem movidas montanha acima.

No fim das contas, o escrúpulo — esse pequeno desconforto da consciência — é o que ainda nos humaniza. Ele nos faz pensar duas vezes, recuar, questionar. Um governo que não tem escrúpulos não erra menos: erra mais, e com orgulho. E o mais perigoso: passa a ensinar que o erro é o caminho normal.

Talvez seja hora de lembrar que governar é, antes de tudo, um ato moral. E que joelho que se dobra apenas por conveniência jamais sustentará de pé uma nação justa.

E quando em meio à impopularidade crescente, os governos recorrem a esforços populistas pontuais, como reajustes de benefícios, programas emergenciais e discursos inflamados, tudo cuidadosamente cronometrado para melhorar os índices de aceitação às vésperas das eleições. Não se trata de política pública estruturada, mas de marketing disfarçado de sensibilidade social. O povo vira plateia de um teatro onde o foco não é o bem comum, mas a manutenção do poder a qualquer custo.

Muitas vezes penso no episódio dos 40 anos de caminhada do povo judeu no deserto após a saída do Egito, é um dos mais poderosos símbolos de renovação através do sacrifício. Deus não levou o povo diretamente à Terra Prometida; antes, permitiu que uma geração inteira morresse no deserto, para que apenas os nascidos na liberdade pudessem entrar na nova terra. Foi uma purificação histórica e espiritual: os que haviam sido formados na lógica da escravidão não estavam preparados para a responsabilidade da liberdade. Assim, o deserto se tornou metáfora da travessia dolorosa que separa o velho do novo, e o sacrifício, condição para que um povo inteiro se reconstruisse com valores diferentes dos que o oprimiam. É um lembrete de que mudanças verdadeiras muitas vezes exigem tempo, perdas e desapego do passado — inclusive daqueles que, embora libertos, ainda pensavam como servos. Será preciso todos irmos para o deserto?

Este texto nasceu de um desabafo diante do cansaço cívico — da sensação de estar preso em um ciclo repetitivo onde a injustiça se organiza, a corrupção se adapta e a moral se cala. Não é apenas indignação com um governo, mas com um sistema que normalizou o erro, premia a esperteza e pune a consciência. Falar sobre isso é uma tentativa de não adoecer em silêncio.

E como dizia Simone Weil:

“A atenção verdadeira é rara e é um ato de amor.”

Um governo escrupuloso é aquele que ainda presta atenção.

Afinal, O governo muda de mãos, mas ele não muda. Que país é esse?

Link no Youtube da música “Que país é esse” do lendário Legião Urbana:

https://www.youtube.com/watch?v=CqttYsSYA3k