Estas são reflexões de muitos domingos! Parece até uma colcha de retalhos, mas pensamento é assim mesmo! Os retalhos das notícias do cotidiano vão sendo guardados no Palácio da Memória, lembrei de Santo Agostinho em sua jornada de reforma intima, sem deixar de olhar para o mundo em que vivia!
Então,
vamos lá!
...quando
a moral deixa a mesa de decisões!
Há
governos que governam, e há governos que operam — friamente, como máquinas
calculistas. A diferença entre um e outro não está apenas na eficiência ou no
carisma dos líderes, mas, sobretudo, na presença ou ausência de escrúpulos.
Um governo sem escrúpulos é aquele que já não sente o incômodo do erro, não
hesita diante do injusto, não recua diante do sofrimento causado. É como se sua
bússola moral estivesse desmagnetizada. O governo muda de mão, mas não muda.
No
cotidiano, vemos sinais disso nos pequenos absurdos: filas intermináveis nos
hospitais públicos, salários atrasados de professores, licitações misteriosas,
orçamento secreto, fraudes na previdência. Mas a falta de escrúpulo se revela,
sobretudo, na forma como o poder se blinda da dor alheia. A máquina segue
funcionando, mesmo quando passa por cima de pessoas.
Há
governos que se movem com base em ideias, e outros que se arrastam empurrados
por interesses. Mas os mais perigosos são aqueles que já não sentem mais
incômodo moral — governos sem escrúpulos, que perderam a capacidade de
hesitar diante do erro, que naturalizaram o injusto, que blindaram a
consciência. O problema não é só de política: é de alma.
A
política cotidiana nos mostra isso nos detalhes: a escola que não tem teto, o
hospital sem médico, a comida que não chega ao prato. E no entanto, os recursos
existem — só estão presas em orçamentos secretos (se é secreto é imoral),
verbas bilionárias a título de fundo partidário, direcionados por parlamentares
que se comportam como donos do país. Essa prática é talvez o retrato mais
cristalino de um governo sem escrúpulos: verbas públicas distribuídas longe dos
olhos do povo, guiadas não pela necessidade social, mas por conveniências
eleitorais e alianças silenciosas. O dinheiro, que deveria ir para o bem comum,
é canalizado como moeda de poder. Sem falar na centralização de impostos nas
mãos de governos corruptos e incompetentes.
O
filósofo Immanuel Kant, em sua ética do dever, falava que devemos tratar
os outros sempre como fins, nunca como meios. Um governo sem escrúpulos faz
exatamente o contrário: transforma vidas em estatísticas, pessoas em
obstáculos, comunidades em ruídos. O cálculo utilitário substitui o juízo
moral. Há um descolamento entre o poder e o povo — como se governar fosse uma
ciência fria, livre de dilemas.
Já
Maquiavel, no O Príncipe, descreve uma política onde a virtude
está na manutenção do poder, não na bondade. Mas mesmo ele, tão associado à
frieza política, reconhecia que o governante deveria parecer virtuoso. O
problema do governo sem escrúpulos é que ele não se dá mais ao trabalho de
parecer justo — ele apenas exerce o poder como quem está acima de qualquer
lei moral.
A
ética da responsabilidade, defendida por Max Weber, desaparece quando
não há transparência. Quando os joelhos que se dobram diante de Deus, o fazem
apenas para rezar pelos próprios interesses, estamos diante de uma
espiritualidade esvaziada. Uma encenação sagrada ao serviço do poder profano. Dobra-se
o joelho, mas não o orgulho; faz-se o sinal da cruz, mas não se cruza com o
outro.
Esse
uso político de Deus, comum em governos sem escrúpulos, não é fé — é
estratégia. É como se até a religião fosse incorporada ao orçamento secreto da
consciência. A sacralidade vira cenário, a oração vira retórica, e a humildade
dá lugar ao marketing. Tudo se torna instrumento.
Hannah
Arendt, ao refletir sobre o mal burocrático, nos alerta
sobre o “mal sem maldade” — aquele que age sem pensar, que cumpre ordens, que
se esconde por trás de normas e processos. O governo sem escrúpulos se nutre
dessa mesma lógica: tira o rosto do mal, apaga a assinatura das injustiças, e
nos diz que “é assim mesmo”.
Talvez
o mais preocupante seja o acostumar-se com esse tipo de governo. Quando
a população começa a achar normal a injustiça, quando o cinismo toma o lugar da
esperança, o escrúpulo vira fraqueza. A política vira espetáculo, e a moral, um
incômodo a ser ridicularizado.
Mas
é exatamente aí que a filosofia resiste. Escrúpulo não é fraqueza — é
humanidade. Um governo sem escrúpulos pode até parecer eficiente por um tempo,
mas constrói ruínas invisíveis: o medo, o silêncio, a indiferença. Governar com
escrúpulos é ouvir as consequências antes de tomar a decisão. É lembrar que por
trás de cada lei, há vidas.
Além
do orçamento secreto, outro sintoma de um governo sem escrúpulos é o aumento
constante de impostos sem qualquer esforço real para cortar despesas públicas.
A conta recai, como sempre, sobre quem trabalha e produz, enquanto os
privilégios permanecem intocados. Não há coragem para enfrentar os gastos
inchados do Estado, nem vontade política para cortar na própria carne. Em
vez disso, o Executivo se curva à lógica do "toma-lá-dá-cá" do
Congresso, alimentando uma classe parlamentar viciada em emendas, cargos e
favores. A máquina pública segue ineficiente, mas o cidadão é quem paga a conta
— sem direito a indignação, como se financiar a inércia fosse um dever
patriótico. A submissão do governo a esse sistema corrupto de trocas
silenciosas revela não apenas fraqueza administrativa, mas uma renúncia
ética: governar já não é enfrentar os interesses, mas servi-los em
silêncio.
O
suor do trabalhador é como água benta do sacrifício, vidas vem e vão, numa
circularidade interminável e insuportável, até Sísifo não aguentaria tamanha
crueldade desta cobrança interminável de impostos injustos. Quando ainda
conseguimos empurrar a pedra montanha acima é porque ainda a suportamos, mas e
quando o esforço estiver além de suas forças? Seremos atropelados pela pedra,
esmagados pela insensibilidade, corrupção e incompetência daqueles (governos)
que entregam as pedras para serem movidas montanha acima.
No
fim das contas, o escrúpulo — esse pequeno desconforto da consciência — é o que
ainda nos humaniza. Ele nos faz pensar duas vezes, recuar, questionar. Um
governo que não tem escrúpulos não erra menos: erra mais, e com orgulho.
E o mais perigoso: passa a ensinar que o erro é o caminho normal.
Talvez
seja hora de lembrar que governar é, antes de tudo, um ato moral. E que
joelho que se dobra apenas por conveniência jamais sustentará de pé uma nação
justa.
E
quando em meio à impopularidade crescente, os governos recorrem a esforços
populistas pontuais, como reajustes de benefícios, programas emergenciais e
discursos inflamados, tudo cuidadosamente cronometrado para melhorar os
índices de aceitação às vésperas das eleições. Não se trata de política
pública estruturada, mas de marketing disfarçado de sensibilidade social. O
povo vira plateia de um teatro onde o foco não é o bem comum, mas a manutenção
do poder a qualquer custo.
Muitas
vezes penso no episódio dos 40 anos de caminhada do povo judeu no deserto
após a saída do Egito, é um dos mais poderosos símbolos de renovação através
do sacrifício. Deus não levou o povo diretamente à Terra Prometida; antes,
permitiu que uma geração inteira morresse no deserto, para que apenas os
nascidos na liberdade pudessem entrar na nova terra. Foi uma purificação
histórica e espiritual: os que haviam sido formados na lógica da escravidão
não estavam preparados para a responsabilidade da liberdade. Assim, o deserto
se tornou metáfora da travessia dolorosa que separa o velho do novo, e o
sacrifício, condição para que um povo inteiro se reconstruisse com valores
diferentes dos que o oprimiam. É um lembrete de que mudanças verdadeiras
muitas vezes exigem tempo, perdas e desapego do passado — inclusive daqueles
que, embora libertos, ainda pensavam como servos. Será preciso todos
irmos para o deserto?
Este
texto nasceu de um desabafo diante do cansaço cívico — da sensação de
estar preso em um ciclo repetitivo onde a injustiça se organiza, a corrupção se
adapta e a moral se cala. Não é apenas indignação com um governo, mas com um
sistema que normalizou o erro, premia a esperteza e pune a consciência.
Falar sobre isso é uma tentativa de não adoecer em silêncio.
E
como dizia Simone Weil:
“A
atenção verdadeira é rara e é um ato de amor.”
Um
governo escrupuloso é aquele que ainda presta atenção.
Afinal,
O governo muda de mãos, mas ele não muda. Que país é esse?
Link
no Youtube da música “Que país é esse” do lendário Legião Urbana: