Descolonialismo
é um desses temas que parece pertencer a um capítulo fechado da história, mas
na verdade continua a moldar silenciosamente nossas vivências diárias, tanto
nas cidades quanto nas relações pessoais, sociais e culturais. Quando falamos
de descolonialismo, evocamos um esforço para desfazer as amarras invisíveis que
ligam o presente ao passado colonial, um passado que ditava quem poderia
possuir conhecimento, quem detinha o poder, e como o “outro” deveria se
comportar ou ser visto. Mas a questão principal é: e nós com isso? Por que um
termo aparentemente distante deve importar para quem vive no cotidiano do
século XXI?
Primeiro,
é preciso perceber que o descolonialismo não é apenas uma teoria; ele é uma
lente crítica para observarmos o mundo. E ao olhar por essa lente, surge a
possibilidade de desconstruirmos narrativas e estereótipos, revelando um novo
tipo de liberdade. A grande questão, portanto, não é apenas intelectual; é
profundamente prática. Isso nos afeta porque, consciente ou inconscientemente,
muitos de nós continuamos a ser influenciados por valores e percepções
construídas no passado colonial. Essas influências se manifestam em nossa visão
do que é "bom" e "belo", em nosso preconceito velado contra
a estética ou a espiritualidade de culturas que antes foram marginalizadas, e
até nas dinâmicas familiares, quando inconscientemente repetimos padrões e
atitudes que herdamos sem questionamento.
Descolonizar,
nesse sentido, significa mais do que simplesmente resgatar as culturas e
tradições locais; é um esforço para renovar o pensamento e reimaginar a
sociedade em suas interações diárias. Pense, por exemplo, em como valorizar a
história indígena não é apenas um ato de justiça histórica, mas também uma
forma de enriquecer nossa cultura e compreensão da natureza e do espaço que
habitamos. E não se trata apenas de resgatar tradições ancestrais, mas de
desafiar o conceito de progresso e desenvolvimento como uma linha que precisa,
necessariamente, seguir os moldes de uma estrutura ocidentalizada e industrial.
O
filósofo Frantz Fanon foi um dos que enxergou de forma profunda o impacto do
colonialismo na psique humana, destacando como os colonizados internalizaram
uma visão distorcida de si mesmos, julgando-se sempre pela régua do
colonizador. Ele sugeria que o caminho para a libertação não era apenas romper
as correntes físicas, mas também as correntes internas de uma autoimagem
aprisionada. No nosso cotidiano, o eco do pensamento de Fanon ressoa quando
percebemos que o autojulgamento, a autocrítica exagerada, ou o desejo de se
adequar a um padrão que não corresponde à nossa essência, são formas
contemporâneas de uma colonialidade persistente.
Quando
nos perguntamos “e nós com isso?”, a resposta pode ser vista no modo como nos
relacionamos com as nossas raízes e com a identidade cultural que nos cerca.
Muitas vezes, temos uma relação ambígua ou superficial com o que é local. Ainda
olhamos para fora como se o conhecimento e as soluções mais valiosas fossem
sempre aquelas que vêm de centros tidos como mais “avançados.” O
descolonialismo, portanto, é um convite para pensarmos em termos de
pertencimento. Trata-se de nos darmos conta de que, ao validar apenas aquilo
que vem de fora, perpetuamos uma hierarquia colonial e invalidamos, pouco a
pouco, nossas próprias vozes.
Então,
descolonizar implica desconfiar das ideias de que o "progresso"
significa sempre ir para frente, de que o que vem de fora é sempre melhor, e de
que nossas próprias culturas, saberes e modos de vida são menos significativos.
Implica também em recuperar a noção de que as tradições não precisam ser vistos
como obstáculos ao desenvolvimento, mas como pilares que enriquecem nossas
identidades.
Aqui
estão algumas situações do cotidiano onde as marcas do colonialismo se fazem
sentir de forma sutil, revelando como o descolonialismo ainda é um tema
importante e relevante:
No
ambiente de trabalho: Em muitas empresas, especialmente
multinacionais, há um peso maior atribuído a padrões de comportamento, estilo
de vestimenta e linguagem que seguem modelos ocidentais. Funciona como uma
norma implícita para "profissionalismo", e qualquer divergência disso
pode ser vista como "não adequada". Um exemplo comum é o uso de
cabelo natural por pessoas negras, que ainda enfrenta resistências e
preconceitos em algumas corporações. Isso demonstra como certos padrões
“coloniais” de estética ainda influenciam noções de aceitabilidade e
profissionalismo.
Nas
escolhas de consumo: As preferências por produtos
estrangeiros em detrimento dos locais são muitas vezes moldadas por uma
percepção de que o que vem de fora é "melhor" ou "mais
sofisticado." Isso aparece em tudo, desde roupas e cosméticos até
eletrônicos e produtos alimentícios. Escolher um produto nacional é, muitas
vezes, visto como “inferior” ou de “menor qualidade”, uma visão alimentada por
uma ideia antiga e colonial de que o que é produzido localmente tem menor
valor.
Na
educação: A história ensinada nas escolas muitas vezes dá
destaque a uma narrativa eurocêntrica, deixando as culturas e histórias locais
como uma nota de rodapé. O apagamento ou simplificação das contribuições dos
povos indígenas, afrodescendentes e outras culturas marginalizadas ainda é uma
realidade em muitos sistemas educacionais. Essa estrutura ensina as gerações
futuras a valorizar uma narrativa "universal" que, na prática, é
limitada e incompleta.
Na
moda e na estética: Em editoriais de moda, redes sociais, e
até no comportamento diário, muitas vezes vemos uma padronização estética que
privilegia certos tipos de corpo, cores e características faciais de origem
ocidental. Esse padrão acaba reforçando estereótipos de beleza que marginalizam
ou “exotizam” traços de outras etnias. Escolher, por exemplo, usar uma
vestimenta tradicional indígena ou africana, pode ser visto como “alternativo”
ou “excêntrico”, ao invés de simplesmente uma escolha legítima de expressão
cultural.
No
turismo: Quando viajamos para outras regiões, seja dentro do
próprio país ou para fora, muitas vezes esperamos que o destino tenha a
infraestrutura, os costumes e até a organização de uma forma
"ocidentalizada". Esperamos que falem o nosso idioma, que os pontos
turísticos tenham uma organização que reflita nossa própria cultura de consumo
e até mesmo que os preços estejam adaptados à nossa moeda. Este tipo de
expectativa mostra como um pensamento colonial continua presente, onde a
experiência do “outro” deve se adaptar aos nossos desejos.
Na
valorização de saberes tradicionais: No contexto médico e
científico, por exemplo, práticas de cura tradicionais, como ervas medicinais
usadas por povos indígenas ou afrodescendentes, são muitas vezes marginalizadas
ou descreditadas, enquanto abordagens ocidentais são vistas como “mais avançadas”
ou “científicas”. Esse desprezo pelos saberes tradicionais é um reflexo de uma
hierarquia de conhecimentos onde o saber "acadêmico" e ocidental se
coloca no topo.
Essas
situações mostram como o descolonialismo é um convite a percebermos o valor do
local, do diverso, e do não ocidental como partes legítimas de nossa vida
cotidiana, nos desafiando a reconsiderar e transformar padrões culturais que
herdamos sem questionar.
No
fundo, o descolonialismo trata de liberar a sociedade de uma visão de mundo
restrita, onde o valor está sempre em algum outro lugar que não no aqui e
agora. Talvez, ao final, o descolonialismo nos mostre que a liberdade não é
apenas sobre a ausência de grilhões, mas sobre a capacidade de cada indivíduo e
cada cultura de se ver e ser visto de forma plena, sem os filtros de um passado
que já não faz sentido manter.