Pesquisar este blog

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Descolonialismo

Descolonialismo é um desses temas que parece pertencer a um capítulo fechado da história, mas na verdade continua a moldar silenciosamente nossas vivências diárias, tanto nas cidades quanto nas relações pessoais, sociais e culturais. Quando falamos de descolonialismo, evocamos um esforço para desfazer as amarras invisíveis que ligam o presente ao passado colonial, um passado que ditava quem poderia possuir conhecimento, quem detinha o poder, e como o “outro” deveria se comportar ou ser visto. Mas a questão principal é: e nós com isso? Por que um termo aparentemente distante deve importar para quem vive no cotidiano do século XXI?

Primeiro, é preciso perceber que o descolonialismo não é apenas uma teoria; ele é uma lente crítica para observarmos o mundo. E ao olhar por essa lente, surge a possibilidade de desconstruirmos narrativas e estereótipos, revelando um novo tipo de liberdade. A grande questão, portanto, não é apenas intelectual; é profundamente prática. Isso nos afeta porque, consciente ou inconscientemente, muitos de nós continuamos a ser influenciados por valores e percepções construídas no passado colonial. Essas influências se manifestam em nossa visão do que é "bom" e "belo", em nosso preconceito velado contra a estética ou a espiritualidade de culturas que antes foram marginalizadas, e até nas dinâmicas familiares, quando inconscientemente repetimos padrões e atitudes que herdamos sem questionamento.

Descolonizar, nesse sentido, significa mais do que simplesmente resgatar as culturas e tradições locais; é um esforço para renovar o pensamento e reimaginar a sociedade em suas interações diárias. Pense, por exemplo, em como valorizar a história indígena não é apenas um ato de justiça histórica, mas também uma forma de enriquecer nossa cultura e compreensão da natureza e do espaço que habitamos. E não se trata apenas de resgatar tradições ancestrais, mas de desafiar o conceito de progresso e desenvolvimento como uma linha que precisa, necessariamente, seguir os moldes de uma estrutura ocidentalizada e industrial.

O filósofo Frantz Fanon foi um dos que enxergou de forma profunda o impacto do colonialismo na psique humana, destacando como os colonizados internalizaram uma visão distorcida de si mesmos, julgando-se sempre pela régua do colonizador. Ele sugeria que o caminho para a libertação não era apenas romper as correntes físicas, mas também as correntes internas de uma autoimagem aprisionada. No nosso cotidiano, o eco do pensamento de Fanon ressoa quando percebemos que o autojulgamento, a autocrítica exagerada, ou o desejo de se adequar a um padrão que não corresponde à nossa essência, são formas contemporâneas de uma colonialidade persistente.

Quando nos perguntamos “e nós com isso?”, a resposta pode ser vista no modo como nos relacionamos com as nossas raízes e com a identidade cultural que nos cerca. Muitas vezes, temos uma relação ambígua ou superficial com o que é local. Ainda olhamos para fora como se o conhecimento e as soluções mais valiosas fossem sempre aquelas que vêm de centros tidos como mais “avançados.” O descolonialismo, portanto, é um convite para pensarmos em termos de pertencimento. Trata-se de nos darmos conta de que, ao validar apenas aquilo que vem de fora, perpetuamos uma hierarquia colonial e invalidamos, pouco a pouco, nossas próprias vozes.

Então, descolonizar implica desconfiar das ideias de que o "progresso" significa sempre ir para frente, de que o que vem de fora é sempre melhor, e de que nossas próprias culturas, saberes e modos de vida são menos significativos. Implica também em recuperar a noção de que as tradições não precisam ser vistos como obstáculos ao desenvolvimento, mas como pilares que enriquecem nossas identidades.

Aqui estão algumas situações do cotidiano onde as marcas do colonialismo se fazem sentir de forma sutil, revelando como o descolonialismo ainda é um tema importante e relevante:

No ambiente de trabalho: Em muitas empresas, especialmente multinacionais, há um peso maior atribuído a padrões de comportamento, estilo de vestimenta e linguagem que seguem modelos ocidentais. Funciona como uma norma implícita para "profissionalismo", e qualquer divergência disso pode ser vista como "não adequada". Um exemplo comum é o uso de cabelo natural por pessoas negras, que ainda enfrenta resistências e preconceitos em algumas corporações. Isso demonstra como certos padrões “coloniais” de estética ainda influenciam noções de aceitabilidade e profissionalismo.

Nas escolhas de consumo: As preferências por produtos estrangeiros em detrimento dos locais são muitas vezes moldadas por uma percepção de que o que vem de fora é "melhor" ou "mais sofisticado." Isso aparece em tudo, desde roupas e cosméticos até eletrônicos e produtos alimentícios. Escolher um produto nacional é, muitas vezes, visto como “inferior” ou de “menor qualidade”, uma visão alimentada por uma ideia antiga e colonial de que o que é produzido localmente tem menor valor.

Na educação: A história ensinada nas escolas muitas vezes dá destaque a uma narrativa eurocêntrica, deixando as culturas e histórias locais como uma nota de rodapé. O apagamento ou simplificação das contribuições dos povos indígenas, afrodescendentes e outras culturas marginalizadas ainda é uma realidade em muitos sistemas educacionais. Essa estrutura ensina as gerações futuras a valorizar uma narrativa "universal" que, na prática, é limitada e incompleta.

Na moda e na estética: Em editoriais de moda, redes sociais, e até no comportamento diário, muitas vezes vemos uma padronização estética que privilegia certos tipos de corpo, cores e características faciais de origem ocidental. Esse padrão acaba reforçando estereótipos de beleza que marginalizam ou “exotizam” traços de outras etnias. Escolher, por exemplo, usar uma vestimenta tradicional indígena ou africana, pode ser visto como “alternativo” ou “excêntrico”, ao invés de simplesmente uma escolha legítima de expressão cultural.

No turismo: Quando viajamos para outras regiões, seja dentro do próprio país ou para fora, muitas vezes esperamos que o destino tenha a infraestrutura, os costumes e até a organização de uma forma "ocidentalizada". Esperamos que falem o nosso idioma, que os pontos turísticos tenham uma organização que reflita nossa própria cultura de consumo e até mesmo que os preços estejam adaptados à nossa moeda. Este tipo de expectativa mostra como um pensamento colonial continua presente, onde a experiência do “outro” deve se adaptar aos nossos desejos.

Na valorização de saberes tradicionais: No contexto médico e científico, por exemplo, práticas de cura tradicionais, como ervas medicinais usadas por povos indígenas ou afrodescendentes, são muitas vezes marginalizadas ou descreditadas, enquanto abordagens ocidentais são vistas como “mais avançadas” ou “científicas”. Esse desprezo pelos saberes tradicionais é um reflexo de uma hierarquia de conhecimentos onde o saber "acadêmico" e ocidental se coloca no topo.

Essas situações mostram como o descolonialismo é um convite a percebermos o valor do local, do diverso, e do não ocidental como partes legítimas de nossa vida cotidiana, nos desafiando a reconsiderar e transformar padrões culturais que herdamos sem questionar.

No fundo, o descolonialismo trata de liberar a sociedade de uma visão de mundo restrita, onde o valor está sempre em algum outro lugar que não no aqui e agora. Talvez, ao final, o descolonialismo nos mostre que a liberdade não é apenas sobre a ausência de grilhões, mas sobre a capacidade de cada indivíduo e cada cultura de se ver e ser visto de forma plena, sem os filtros de um passado que já não faz sentido manter.


Nenhum comentário:

Postar um comentário