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sábado, 17 de maio de 2025

Naturalismo de Quine

A maçã na mesa...

Outro dia, vi uma maçã em cima da mesa e pensei: “Maçã”. Só isso. Não parei para duvidar da existência da fruta nem me perguntei se poderia ser uma ilusão. Minha reação foi natural, automática, sensível e prática: “Maçã”.

Se René Descartes estivesse ao meu lado, talvez perguntasse: “Mas como você sabe que essa maçã é real? E se for um sonho?”. Se fosse David Hume, ele talvez me lembrasse que não temos certeza do que existe fora das nossas impressões. Mas se fosse Quine, ele daria um gole no café e diria:

“Calma. Vamos entender como você chegou a essa crença — do jeito que a ciência faz.”

Porque o naturalismo de Quine é isso: não queremos mais fundações absolutas para o conhecimento, mas sim compreender, com base na ciência, como nosso cérebro constrói o mundo a partir dos estímulos que recebe. Se eu vi a maçã, o que está em jogo não é um argumento lógico para provar que ela existe — mas o modo como meus olhos, minha linguagem, minha cultura e meu cérebro cooperaram para formar a ideia de “maçã”.

Do mundo ao cérebro, do cérebro ao mundo

Segundo Quine, quando recebo um feixe de luz nos olhos e meu cérebro interpreta isso como “fruta”, não há filosofia pura que separe isso da psicologia ou da neurociência. O que há é um sistema inteiro de crenças, hipóteses e hábitos mentais que vão se ajustando à medida que a experiência avança.

Não testamos crenças isoladas, mas todo um “ecossistema de ideias” que vamos carregando e corrigindo. Por isso, a filosofia, para Quine, não está acima da ciência. Está junto dela. E a epistemologia — o estudo do conhecimento — não deve procurar certezas a priori, mas sim acompanhar o que fazemos de fato quando pensamos, aprendemos ou julgamos.

No supermercado com Quine

Fui ao supermercado comprar café. Olhei a prateleira, comparei preços, marcas, descrições e, no fim, escolhi um com “notas de chocolate”. Quais estímulos me levaram a essa escolha? A embalagem vermelha? A palavra “especial”? O cheiro imaginado do café? Quine acharia esse momento fascinante. Ele não perguntaria se foi “certo ou errado”, mas como, biologicamente e culturalmente, esse julgamento aconteceu.

O naturalismo quineano transforma o ato banal de escolher café num microexperimento de como o ser humano pensa. Estamos sempre ajustando nosso conhecimento conforme novas informações aparecem — e isso não precisa de um tribunal lógico para funcionar, mas de observação, de estudo real.

Sem fundações eternas, mas com pés no chão

Quine nos convida a parar de buscar fundamentos inalcançáveis. Em vez disso, ele propõe que a filosofia caminhe com a ciência e olhe para o mundo com olhos atentos, humildes e investigativos.

A maçã na mesa não é um problema filosófico abstrato. É uma oportunidade para entender como funcionamos, como pensamos, como acreditamos.

E, com sorte, ainda dá para comer a maçã no final.

O mundo segundo Quine: um copo d’água e algumas dúvidas

Estava na cozinha, enchendo um copo d’água, quando me peguei pensando: “Que confiança cega a gente tem no mundo, né?”. Abro a torneira, espero que a água saia, tomo sem pensar duas vezes. Ninguém faz um teste de realidade antes de tomar água. A gente age como se o mundo estivesse ali, funcionando.

E é aí que Quine entra de novo, com seu naturalismo na mochila e um olhar desconfiado — não da realidade, mas das perguntas que fazemos sobre ela.

Exemplos cotidianos para entender Quine

No ônibus lotado

Você entra no ônibus, vê alguém com cara conhecida, mas não tem certeza. Seu cérebro começa a comparar, ajustar, buscar padrões. O rosto lembra alguém? A situação é plausível? Quais são as chances de ser a pessoa que você está pensando?

Segundo Quine, esse processo de reconhecimento não exige certezas absolutas, mas probabilidades funcionais, baseadas em um emaranhado de crenças anteriores, percepções atuais e memória. É a mente funcionando como uma pequena “ciência informal”.

A criança que aprende o que é "gato"

Ela ouve a palavra, vê o bicho, associa. Mas também vê um cachorro pequeno e chama de gato. Com o tempo, acerta. A linguagem, para Quine, não nasce do dicionário, mas da interação viva com o mundo. A criança aprende pelo uso, pela repetição, pela correção — como num experimento empírico contínuo.

A superstição do número 13

Mesmo quem não acredita em superstições às vezes evita o número 13. Quine diria que isso é parte do nosso sistema de crenças, que inclui não só ciência e razão, mas também elementos culturais, simbólicos e emocionais, que resistem ao teste da experiência por outros caminhos. O naturalismo não exige que sejamos lógicos o tempo todo, mas que entendamos como realmente funcionamos.

Mas… e as críticas a Quine?

Apesar de seu enorme impacto, o naturalismo de Quine também recebeu críticas. Eis algumas:

- Reduzir a epistemologia à psicologia?

Filósofos como Jaegwon Kim alegam que, ao transformar a epistemologia em um ramo da psicologia, Quine abandona questões normativas importantes — como distinguir boas razões de crenças falsas, ou discutir o que é conhecimento verdadeiro, e não apenas funcional.

- Falta de critério normativo

Se tudo vira um experimento empírico, como saber o que é “melhor” saber? O risco é cair num relativismo prático: o que “funciona” para um grupo pode não funcionar para outro — e a filosofia perde seu papel de julgamento crítico.

- E a lógica? E a ética?

Críticos também dizem que nem todas as áreas da filosofia podem ou devem se submeter ao naturalismo. Como naturalizar discussões éticas? Ou a lógica matemática? Nem tudo cabe num laboratório.

Entre a torneira e o telescópio

Mesmo com as críticas, o legado de Quine é imenso. Ele trouxe a filosofia para perto do mundo, para perto da torneira, do ônibus, do supermercado, da criança e do cientista. Nos ensinou a olhar para a mente humana com os pés no chão — e isso, num mundo cheio de abstrações, já é um gesto filosófico poderoso.

No fim, talvez o naturalismo de Quine não explique tudo. Mas ele nos ajuda a começar pelas perguntas certas:

Como pensamos, de fato? Como lidamos com o mundo sem garantias? E por que acreditamos que há mesmo uma maçã sobre a mesa?

 

Algumas sugestões de leitura:

Da um ponto de vista lógico – Willard Van Orman Quine

A palavra e o objeto – Willard Van Orman Quine

Editora: WMF Martins Fontes