A
maçã na mesa...
Outro
dia, vi uma maçã em cima da mesa e pensei: “Maçã”. Só isso. Não parei para
duvidar da existência da fruta nem me perguntei se poderia ser uma ilusão.
Minha reação foi natural, automática, sensível e prática: “Maçã”.
Se
René Descartes estivesse ao meu lado, talvez perguntasse: “Mas como você sabe
que essa maçã é real? E se for um sonho?”. Se fosse David Hume, ele talvez me
lembrasse que não temos certeza do que existe fora das nossas impressões. Mas
se fosse Quine, ele daria um gole no café e diria:
“Calma.
Vamos entender como você chegou a essa crença — do jeito que a ciência faz.”
Porque
o naturalismo de Quine é isso: não queremos mais fundações absolutas para o
conhecimento, mas sim compreender, com base na ciência, como nosso
cérebro constrói o mundo a partir dos estímulos que recebe. Se eu vi a
maçã, o que está em jogo não é um argumento lógico para provar que ela existe —
mas o modo como meus olhos, minha linguagem, minha cultura e meu cérebro
cooperaram para formar a ideia de “maçã”.
Do
mundo ao cérebro, do cérebro ao mundo
Segundo
Quine, quando recebo um feixe de luz nos olhos e meu cérebro interpreta isso
como “fruta”, não há filosofia pura que separe isso da psicologia ou da
neurociência. O que há é um sistema inteiro de crenças, hipóteses e hábitos
mentais que vão se ajustando à medida que a experiência avança.
Não
testamos crenças isoladas, mas todo um “ecossistema de ideias” que vamos
carregando e corrigindo. Por isso, a filosofia, para Quine, não está acima da
ciência. Está junto dela. E a epistemologia — o estudo do conhecimento —
não deve procurar certezas a priori, mas sim acompanhar o que fazemos de
fato quando pensamos, aprendemos ou julgamos.
No
supermercado com Quine
Fui
ao supermercado comprar café. Olhei a prateleira, comparei preços, marcas,
descrições e, no fim, escolhi um com “notas de chocolate”. Quais estímulos me
levaram a essa escolha? A embalagem vermelha? A palavra “especial”? O cheiro
imaginado do café? Quine acharia esse momento fascinante. Ele não perguntaria
se foi “certo ou errado”, mas como, biologicamente e culturalmente, esse
julgamento aconteceu.
O
naturalismo quineano transforma o ato banal de escolher café num
microexperimento de como o ser humano pensa. Estamos sempre ajustando nosso
conhecimento conforme novas informações aparecem — e isso não precisa de um
tribunal lógico para funcionar, mas de observação, de estudo real.
Sem
fundações eternas, mas com pés no chão
Quine
nos convida a parar de buscar fundamentos inalcançáveis. Em vez disso,
ele propõe que a filosofia caminhe com a ciência e olhe para o mundo com olhos
atentos, humildes e investigativos.
A
maçã na mesa não é um problema filosófico abstrato. É uma oportunidade para
entender como funcionamos, como pensamos, como acreditamos.
E,
com sorte, ainda dá para comer a maçã no final.
O
mundo segundo Quine: um copo d’água e algumas dúvidas
Estava
na cozinha, enchendo um copo d’água, quando me peguei pensando: “Que confiança
cega a gente tem no mundo, né?”. Abro a torneira, espero que a água saia, tomo
sem pensar duas vezes. Ninguém faz um teste de realidade antes de tomar água. A
gente age como se o mundo estivesse ali, funcionando.
E
é aí que Quine entra de novo, com seu naturalismo na mochila e um olhar
desconfiado — não da realidade, mas das perguntas que fazemos sobre ela.
Exemplos
cotidianos para entender Quine
No
ônibus lotado
Você
entra no ônibus, vê alguém com cara conhecida, mas não tem certeza. Seu cérebro
começa a comparar, ajustar, buscar padrões. O rosto lembra alguém? A situação é
plausível? Quais são as chances de ser a pessoa que você está pensando?
Segundo
Quine, esse processo de reconhecimento não exige certezas absolutas, mas
probabilidades funcionais, baseadas em um emaranhado de crenças anteriores,
percepções atuais e memória. É a mente funcionando como uma pequena “ciência
informal”.
A
criança que aprende o que é "gato"
Ela
ouve a palavra, vê o bicho, associa. Mas também vê um cachorro pequeno e chama
de gato. Com o tempo, acerta. A linguagem, para Quine, não nasce do
dicionário, mas da interação viva com o mundo. A criança aprende pelo uso,
pela repetição, pela correção — como num experimento empírico contínuo.
A
superstição do número 13
Mesmo
quem não acredita em superstições às vezes evita o número 13. Quine diria que
isso é parte do nosso sistema de crenças, que inclui não só ciência e razão,
mas também elementos culturais, simbólicos e emocionais, que resistem ao
teste da experiência por outros caminhos. O naturalismo não exige que sejamos
lógicos o tempo todo, mas que entendamos como realmente funcionamos.
Mas… e as críticas a Quine?
Apesar
de seu enorme impacto, o naturalismo de Quine também recebeu críticas. Eis
algumas:
- Reduzir a
epistemologia à psicologia?
Filósofos
como Jaegwon Kim alegam que, ao transformar a epistemologia em um ramo
da psicologia, Quine abandona questões normativas importantes — como distinguir
boas razões de crenças falsas, ou discutir o que é conhecimento
verdadeiro, e não apenas funcional.
- Falta de critério
normativo
Se
tudo vira um experimento empírico, como saber o que é “melhor” saber? O
risco é cair num relativismo prático: o que “funciona” para um grupo pode não
funcionar para outro — e a filosofia perde seu papel de julgamento crítico.
- E a lógica? E a
ética?
Críticos
também dizem que nem todas as áreas da filosofia podem ou devem se submeter ao
naturalismo. Como naturalizar discussões éticas? Ou a lógica matemática? Nem
tudo cabe num laboratório.
Entre
a torneira e o telescópio
Mesmo
com as críticas, o legado de Quine é imenso. Ele trouxe a filosofia para
perto do mundo, para perto da torneira, do ônibus, do supermercado, da
criança e do cientista. Nos ensinou a olhar para a mente humana com os pés
no chão — e isso, num mundo cheio de abstrações, já é um gesto filosófico
poderoso.
No
fim, talvez o naturalismo de Quine não explique tudo. Mas ele nos ajuda a
começar pelas perguntas certas:
Como
pensamos, de fato? Como lidamos com o mundo sem garantias? E por que
acreditamos que há mesmo uma maçã sobre a mesa?
Algumas
sugestões de leitura:
Da
um ponto de vista lógico – Willard Van Orman Quine
A
palavra e o objeto – Willard Van Orman Quine
Editora:
WMF Martins Fontes