Há dias em que tudo parece sólido: o café na xícara, o som do ônibus na esquina, a mão que segura o celular. Há outros em que a realidade se desfaz um pouco — uma notícia inesperada, uma lembrança que não se encaixa mais, uma emoção sem nome. É como se o mundo tivesse camadas, mas nem todas estivessem sempre acessíveis. E então surge a pergunta: do que é feita, afinal, a realidade? Há uma estrutura que a sustenta, ou vivemos apenas dentro de um acordo coletivo, renovado a cada manhã?
Este
ensaio filosófico quer pensar de forma inovadora sobre a estrutura da
realidade, partindo do cotidiano, mas cruzando com visões de filósofos antigos
e contemporâneos — de Platão a Quine, de Kant a Viveiros de Castro — para
explorar se existe um esqueleto da realidade ou se ela muda de roupa conforme o
olhar.
I.
A realidade como construção e sustentação
Muitos
pensadores já se perguntaram se a realidade é algo objetivo, como uma parede de
concreto, ou subjetiva, como a impressão que temos dela. Platão foi um dos
primeiros a propor uma estrutura invisível: o mundo das Ideias. Para ele, o que
vemos são apenas sombras — a realidade verdadeira está em outro plano, eterno e
imutável. A mesa sobre a qual escrevo seria, no fundo, uma cópia imperfeita da
"Ideia de mesa". A estrutura da realidade, então, seria metafísica,
mais sólida que a matéria.
Já
Kant inverteu esse jogo. Para ele, o que vemos do mundo está condicionado pelas
estruturas da mente humana. Espaço e tempo, por exemplo, não são coisas que
existem "lá fora", mas formas com que organizamos as experiências. A
realidade se estrutura por dentro, e não por fora.
No
dia a dia, isso aparece quando duas pessoas lembram de um mesmo fato de formas
diferentes — não porque estão mentindo, mas porque suas estruturas internas
(memória, emoção, linguagem) moldam o real.
II.
A realidade como tecido coletivo
Se
para Platão a realidade está num plano superior e para Kant ela depende da
mente, para autores contemporâneos como Nelson Goodman e Willard Quine a
realidade é, na verdade, uma construção linguística e científica. Goodman chega
a dizer que "fazer mundos" é o que fazemos o tempo todo: cada
ciência, cada arte, cada linguagem cria um tipo diferente de realidade.
Isso
tem consequências práticas. Pense na diferença entre como um agricultor
indígena e um agrônomo europeu enxergam a mesma floresta. Não é apenas uma
diferença de opinião: eles vivem em realidades estruturadas de forma distinta.
É nesse ponto que Eduardo Viveiros de Castro traz uma proposta radical: não se
trata de diferentes culturas interpretando uma mesma natureza, mas de
diferentes naturezas produzidas por cosmologias próprias. A estrutura da
realidade, nesse sentido, é plural.
Esse
pensamento ressoa com o que os físicos contemporâneos começam a admitir: a
realidade talvez não tenha uma estrutura única e definitiva, mas seja múltipla,
interdependente, fluida. O próprio tempo, segundo a física quântica, pode ser
apenas uma convenção útil, e não um "andaime" do universo.
III.
A realidade como algo a ser vivido (e não apenas compreendido)
Há
também uma abordagem ética ou existencial da realidade. Simone de Beauvoir, por
exemplo, propõe que não basta pensar o real — é preciso habitá-lo, assumi-lo,
transformá-lo. A estrutura da realidade não está apenas nos conceitos, mas na
forma como vivemos nossas liberdades e limites.
Nesse
espírito, o filósofo indiano J. Krishnamurti disse: “Você vê o que é verdadeiro
não com o pensamento, mas com o olhar direto.” Para ele, a realidade se mostra
quando o observador se desfaz de suas projeções. A estrutura da realidade
estaria, paradoxalmente, em seu esvaziamento — quando deixamos de impor
estruturas, e vemos o que é.
IV.
E se a realidade for um palco desmontável?
Uma
ideia inovadora seria pensar a realidade como um palco desmontável, onde os
cenários são montados conforme a peça do momento. As leis físicas, os vínculos
sociais, as emoções — tudo isso seriam cenários que funcionam enquanto
funcionam. Quando algo falha — um colapso emocional, uma catástrofe
natural, uma mudança cultural — o palco se desmonta e precisa ser remontado de
outro jeito. Não há estrutura última: há uma constante remontagem da realidade,
feita de andaimes móveis, por mãos visíveis e invisíveis.
Entre
o que sustenta e o que desmancha
A
estrutura da realidade talvez não seja um edifício com alicerces eternos, mas
uma rede viva, em constante teia. Parte dela é biológica, parte social, parte
simbólica, parte afetiva. Há momentos em que parece firme, e outros em que tudo
balança. Como disse Merleau-Ponty, “o mundo não é o que penso, mas o que vivo”.
E viver, nesse sentido, é um exercício contínuo de atravessar estruturas —
algumas sólidas, outras mais como véus.
Talvez,
então, o mais filosófico não seja descobrir a estrutura última da realidade,
mas aprender a dançar entre suas formas, entendendo que o real se revela menos
como um mapa, e mais como um ritmo.
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