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sexta-feira, 11 de julho de 2025

Dilemas Modernos

O impasse de estar vivo hoje

Vivemos tempos que nos oferecem mais possibilidades do que nunca — e, paradoxalmente, mais angústias. Os dilemas modernos não são apenas problemas a serem resolvidos, mas conflitos entre valores igualmente válidos que se chocam no dia a dia. É como escolher entre duas verdades, sabendo que qualquer escolha trará perda.

Um exemplo simples: vida profissional ou qualidade de vida? Queremos crescer, ser reconhecidos, conquistar uma estabilidade. Mas isso quase sempre exige horas a mais no trabalho, menos tempo com os filhos, menos horas de sono, menos vida. Trabalhar menos parece irresponsável. Trabalhar demais parece insano. E o dilema se mantém.

Ou ainda: liberdade de expressão ou respeito ao outro? As redes sociais viraram uma arena em que dizer o que se pensa é confundido com dizer o que se quer, de qualquer forma. Mas até onde vai a liberdade? E quando ela começa a ferir? Defender o direito de falar não significa esquecer a responsabilidade do que se diz. Um dilema que escapa das regras formais e entra no campo ético.

Há também o dilema entre conexão e solidão. Temos mil formas de nos comunicar, mas muitos não sabem mais ficar a sós. Estamos conectados o tempo todo, mas nos sentimos sozinhos. Queremos estar juntos, mas a presença física virou quase um luxo. É difícil dizer o que é melhor: estar com todos ao mesmo tempo ou estar plenamente com um só?

Outro dilema silencioso: autenticidade ou aceitação social? Ser quem se é pode significar ser deixado de lado, não se encaixar, ser estranho. Fingir, adaptar, performar — tudo isso traz recompensas sociais. Mas a que custo? A originalidade virou marketing, a vulnerabilidade, conteúdo. Há quem nunca saiba se está vivendo ou sendo visto vivendo.

O filósofo Zygmunt Bauman dizia que os dilemas modernos são líquidos: mudam de forma, escorrem por entre os dedos, não se fixam. Por isso, não são resolvidos, mas administrados. Cabe a cada um de nós descobrir quais perdas estamos dispostos a aceitar para sustentar o que consideramos importante.

Porque, no fundo, todo dilema é uma escolha que exige coragem. Coragem de viver com a dúvida, com o risco e com a consciência de que não há resposta perfeita — só caminhos possíveis.

E quando perguntam “tá tudo bem?” e a gente engole o mundo

Tem dias em que a pergunta “tá tudo bem?” soa quase como um deboche do universo. Porque não tá. Porque nada parece fazer sentido. Porque você acorda, respira fundo, vai, mas tudo pesa. E ainda assim, você responde: “tudo bem”.

Por educação, por cansaço, por não querer explicar. Ou porque a verdade, nua e crua, não cabe num bom dia apressado. Dizer “tá tudo bem” virou um código social: ninguém espera uma confissão. Mas, por dentro, há uma avalanche. Às vezes, a gente só quer que alguém segure o nosso olhar por um segundo a mais, pra perceber o que não foi dito.

É aí que, de forma estranha, Nietzsche começa a fazer sentido. Ele que parecia tão extremo, tão sombrio, tão desconfortável. Mas que escreveu: “aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”. Em dias de silêncio interno, de sentido escorregando pelos dedos, a gente entende a importância de um “porquê”. E o que machuca é justamente a falta dele.

Responder com sinceridade é coragem. Mas também é risco. Porque nem todo mundo sabe escutar uma verdade crua no meio da rotina. Às vezes a gente tenta e recebe um “ih, fase ruim, né?”, como se fosse algo leve. A verdade, para ser dita, precisa encontrar quem esteja disposto a carregá-la com a gente, mesmo que por um momento.

Mas guardar tudo também cobra seu preço. Fica no corpo. Vira dor nas costas, falta de ar, insônia. A alma vai se entortando na tentativa de parecer reta.

Talvez o meio do caminho seja aprender a dizer: “não tá tudo bem, mas tô tentando”. É simples, honesto, e ainda assim respeita o próprio tempo de elaboração. Porque nem sempre temos as palavras certas, mas às vezes só precisamos da permissão para não estar bem.

E se Nietzsche faz sentido quando tudo parece sem sentido, é porque ele também passou por esses abismos. E de lá tirou uma coisa importante: o fundo do poço às vezes revela estrelas que a superfície esconde.

domingo, 6 de julho de 2025

Heráclito e a Dialética


Heráclito de Éfeso, pensador do século VI a.C., é frequentemente lembrado pela máxima “tudo flui” (pánta rheî), indicando que tudo está em constante transformação. A partir desse princípio, podemos entender que Heráclito ofereceu uma das sementes mais antigas daquilo que viria a ser, séculos depois, desenvolvido como dialética.

O conflito como motor da realidade

Heráclito dizia que a guerra (pólemos) é o pai de todas as coisas. Ele enxergava o mundo como um campo de tensões entre opostos — quente e frio, seco e úmido, dia e noite. Mas, diferente da mera oposição binária, esses contrários coexistem e se transformam um no outro. O que é quente esfria, o que é seco umedece. Há uma unidade no conflito, uma harmonia oculta nas tensões — o que ele chamou de harmonia dissonante (harmonia aphanes).

Essa visão antecipa a estrutura fundamental da dialética: o confronto entre opostos que não se anulam, mas se implicam. A tensão entre tese e antítese, por exemplo, é justamente o que move a síntese — uma ideia que será plenamente sistematizada apenas com Hegel, dois milênios depois.

Heráclito e o vir-a-ser

Enquanto Parmênides defendia que o ser é uno e imutável, Heráclito sustentava que a essência do real é o devir. Você não entra duas vezes no mesmo rio, pois tanto o rio quanto você estão mudando. Essa visão coloca o movimento e a transformação no centro da realidade — e, por extensão, também do pensamento.

A dialética heraclitiana, mesmo sem esse nome, é uma lógica do vir-a-ser. Não há repouso, não há identidade fixa. Tudo é processo, e a verdade não é um ponto imóvel, mas um caminho em constante atualização.

A influência posterior

Platão, embora mais alinhado com Parmênides em sua teoria das ideias, herdou de Heráclito a sensibilidade para o mundo sensível como domínio da mutação e da aparência — algo a ser superado para alcançar o mundo inteligível. Já os estóicos, séculos depois, vão reinterpretar Heráclito como o filósofo do Logos cósmico, a razão que organiza a mudança.

Mas é com Hegel que a relação entre Heráclito e a dialética se torna explícita. Hegel declarou:

“Não há nenhuma proposição de Heráclito que eu não tenha adotado em minha lógica.”

Heráclito, portanto, é um antecessor da dialética não só por dizer que tudo muda, mas por afirmar que essa mudança é estruturada, racional e paradoxal. Ele viu na contradição não um erro, mas uma verdade profunda do real.

domingo, 29 de junho de 2025

Novas Subjetividades

Acorda, toma café, põe o óculos de realidade virtual, entra numa sala com outras pessoas que também estão em casa, sozinhas — mas todas juntas, com corpos escolhidos, vozes filtradas, rostos recriados. É uma reunião de trabalho? Uma conversa entre amigos? Um jogo? Ou tudo isso ao mesmo tempo?

Vivemos um tempo curioso: o corpo está aqui, mas o "eu" parece expandido — ou, talvez, fragmentado. A realidade virtual (RV) não é apenas uma tecnologia: é um novo campo de experiência do eu, um laboratório de subjetividades.

Dia destes estava ouvindo nossa filósofa Marilena Chauí falando sobre o tema, realmente temos de pensar a respeito, ela alerta para este mundo novo que já faz parte de nossas vidas.

Mas afinal o que é subjetividade?

Subjetividade é o conjunto de experiências internas e singulares que compõem o modo como alguém percebe o mundo, a si mesmo e os outros. É uma construção histórica, social e afetiva — não nasce pronta, mas se forma a partir de vivências, relações, discursos e tecnologias.

Como explica Michel Foucault, o sujeito não é um ponto fixo de origem, mas o efeito de práticas discursivas e sociais. Já para Maurice Merleau-Ponty, a subjetividade está encarnada: não somos pura mente ou consciência, mas um corpo-sujeito que percebe e age no mundo.

Portanto, falar de subjetividade é falar da maneira como nos tornamos alguém, como experienciamos o que somos — e como isso pode mudar.

Quando o sujeito se descentra

A subjetividade moderna, desde Descartes, se ancorava em um "eu penso, logo existo" — racional, centrado, individual. Com Freud, esse "eu" começou a tremer: há desejos inconscientes, pulsões, zonas obscuras. Com a pós-modernidade, o sujeito se liquefaz, como apontou Zygmunt Bauman, e agora, com a realidade virtual, ele talvez se disperse em identidades múltiplas, performáticas e temporárias.

O sujeito não é mais uno: ele é "loginável", programável, personalizável.

Num ambiente virtual, alguém pode viver como um guerreiro viking, um gato falante ou um avatar neutro, sem gênero definido. E, às vezes, se sente mais verdadeiro assim. O "real" deixa de ser o critério da autenticidade. Como já dizia Jean Baudrillard, o simulacro ultrapassa o original — o virtual se torna mais significativo do que o real.

Cotidianos que nos escapam pelas telas

Quantas vezes você entrou numa sala virtual para uma reunião e sentiu que o ambiente — os olhares, os gestos, o tempo — não seguia mais as mesmas regras da vida física? Ali, a subjetividade é outra: somos falas, expressões faciais artificiais, reações digitadas. E mesmo assim, sentimos. Rimos. Ficamos tensos. Temos vergonha. A subjetividade se adapta.

Exemplo: uma criança de nove anos, tímida na escola, descobre-se desinibida num jogo em RV. Ela cria um personagem falante, criativo e ousado. Seus pais a observam e se perguntam: "é ela mesma ou uma outra pessoa?"

O corpo como memória virtual

Mesmo quando a realidade é virtual, o corpo reage. O coração acelera. A mão sua. Os músculos se contraem. A filosofia do corpo, como nos lembra Maurice Merleau-Ponty, insiste: não temos um corpo — somos um corpo. E esse corpo, mesmo imerso em bits e avatares, continua sendo nosso ponto de contato com o mundo.

Mas agora é um corpo intermediado, reconfigurado — que sente, mas não se mostra por inteiro. A nova subjetividade é um jogo entre o que se quer mostrar e o que se deseja esconder.

A subjetividade como performance

A filósofa Judith Butler trouxe a ideia de que a identidade é performativa — ou seja, ela se constrói na repetição de atos. Na RV, isso é ainda mais literal. A cada login, a cada escolha de avatar, a cada gesto encenado num mundo virtual, o sujeito se constitui. Não por essência, mas por performance em rede.

Somos aquilo que repetimos: o modo como clicamos, falamos, gesticulamos — mesmo no ambiente simulado.

E afinal, quem somos?

O que muda com tudo isso? Talvez não sejamos mais sujeitos estáveis, como se acreditava. Somos experiências conectadas, em constante mutação, criando realidades internas e externas ao mesmo tempo. A realidade virtual não cria só um outro mundo — ela recria o eu.

O filósofo brasileiro José Gil, ao falar sobre o corpo e a imagem, nos lembra que a subjetividade não está presa ao corpo, mas se expande em zonas de visibilidade e presença. Com a RV, ganhamos novas zonas. Novos rostos. Novas máscaras. E, talvez, novos espelhos.

Em tempo: talvez estejamos todos nos tornando um pouco mais plurais, um pouco menos fixos. O mundo virtual não é um escape da realidade — é uma realidade a mais, onde a subjetividade se torna múltipla, instável, e, quem sabe, mais verdadeira em sua própria inconstância.


sábado, 21 de junho de 2025

Estrutura da Realidade

Há dias em que tudo parece sólido: o café na xícara, o som do ônibus na esquina, a mão que segura o celular. Há outros em que a realidade se desfaz um pouco — uma notícia inesperada, uma lembrança que não se encaixa mais, uma emoção sem nome. É como se o mundo tivesse camadas, mas nem todas estivessem sempre acessíveis. E então surge a pergunta: do que é feita, afinal, a realidade? Há uma estrutura que a sustenta, ou vivemos apenas dentro de um acordo coletivo, renovado a cada manhã?

Este ensaio filosófico quer pensar de forma inovadora sobre a estrutura da realidade, partindo do cotidiano, mas cruzando com visões de filósofos antigos e contemporâneos — de Platão a Quine, de Kant a Viveiros de Castro — para explorar se existe um esqueleto da realidade ou se ela muda de roupa conforme o olhar.

I. A realidade como construção e sustentação

Muitos pensadores já se perguntaram se a realidade é algo objetivo, como uma parede de concreto, ou subjetiva, como a impressão que temos dela. Platão foi um dos primeiros a propor uma estrutura invisível: o mundo das Ideias. Para ele, o que vemos são apenas sombras — a realidade verdadeira está em outro plano, eterno e imutável. A mesa sobre a qual escrevo seria, no fundo, uma cópia imperfeita da "Ideia de mesa". A estrutura da realidade, então, seria metafísica, mais sólida que a matéria.

Já Kant inverteu esse jogo. Para ele, o que vemos do mundo está condicionado pelas estruturas da mente humana. Espaço e tempo, por exemplo, não são coisas que existem "lá fora", mas formas com que organizamos as experiências. A realidade se estrutura por dentro, e não por fora.

No dia a dia, isso aparece quando duas pessoas lembram de um mesmo fato de formas diferentes — não porque estão mentindo, mas porque suas estruturas internas (memória, emoção, linguagem) moldam o real.

II. A realidade como tecido coletivo

Se para Platão a realidade está num plano superior e para Kant ela depende da mente, para autores contemporâneos como Nelson Goodman e Willard Quine a realidade é, na verdade, uma construção linguística e científica. Goodman chega a dizer que "fazer mundos" é o que fazemos o tempo todo: cada ciência, cada arte, cada linguagem cria um tipo diferente de realidade.

Isso tem consequências práticas. Pense na diferença entre como um agricultor indígena e um agrônomo europeu enxergam a mesma floresta. Não é apenas uma diferença de opinião: eles vivem em realidades estruturadas de forma distinta. É nesse ponto que Eduardo Viveiros de Castro traz uma proposta radical: não se trata de diferentes culturas interpretando uma mesma natureza, mas de diferentes naturezas produzidas por cosmologias próprias. A estrutura da realidade, nesse sentido, é plural.

Esse pensamento ressoa com o que os físicos contemporâneos começam a admitir: a realidade talvez não tenha uma estrutura única e definitiva, mas seja múltipla, interdependente, fluida. O próprio tempo, segundo a física quântica, pode ser apenas uma convenção útil, e não um "andaime" do universo.

III. A realidade como algo a ser vivido (e não apenas compreendido)

Há também uma abordagem ética ou existencial da realidade. Simone de Beauvoir, por exemplo, propõe que não basta pensar o real — é preciso habitá-lo, assumi-lo, transformá-lo. A estrutura da realidade não está apenas nos conceitos, mas na forma como vivemos nossas liberdades e limites.

Nesse espírito, o filósofo indiano J. Krishnamurti disse: “Você vê o que é verdadeiro não com o pensamento, mas com o olhar direto.” Para ele, a realidade se mostra quando o observador se desfaz de suas projeções. A estrutura da realidade estaria, paradoxalmente, em seu esvaziamento — quando deixamos de impor estruturas, e vemos o que é.

IV. E se a realidade for um palco desmontável?

Uma ideia inovadora seria pensar a realidade como um palco desmontável, onde os cenários são montados conforme a peça do momento. As leis físicas, os vínculos sociais, as emoções — tudo isso seriam cenários que funcionam enquanto funcionam. Quando algo falha — um colapso emocional, uma catástrofe natural, uma mudança cultural — o palco se desmonta e precisa ser remontado de outro jeito. Não há estrutura última: há uma constante remontagem da realidade, feita de andaimes móveis, por mãos visíveis e invisíveis.

Entre o que sustenta e o que desmancha

A estrutura da realidade talvez não seja um edifício com alicerces eternos, mas uma rede viva, em constante teia. Parte dela é biológica, parte social, parte simbólica, parte afetiva. Há momentos em que parece firme, e outros em que tudo balança. Como disse Merleau-Ponty, “o mundo não é o que penso, mas o que vivo”. E viver, nesse sentido, é um exercício contínuo de atravessar estruturas — algumas sólidas, outras mais como véus.

Talvez, então, o mais filosófico não seja descobrir a estrutura última da realidade, mas aprender a dançar entre suas formas, entendendo que o real se revela menos como um mapa, e mais como um ritmo.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

Espelho Lógico

“E se a máquina estivesse pensando em mim?” — sobre cafés, lógica e o nascimento da IA

Outro dia, sentei em um café, como quem só quer um intervalo entre dois e-mails urgentes. Na mesa ao lado, uma moça digitava freneticamente, provavelmente lutando com um chatbot do banco. O atendente se confundiu no pedido: café descafeinado com expresso extra. Vai entender. E foi nesse momento banal que a pergunta me cutucou:

Será que essa máquina está pensando em mim?

Não o robô do banco, claro. Mas o algoritmo do aplicativo, o sistema que ajusta a playlist, a IA que "adivinha" meu humor. E, mais do que isso: quando foi que demos à máquina esse tipo de poder? A resposta, por incrível que pareça, começa com filosofia.

A IA nasceu num berço de ideias, não de chips

Antes de qualquer computador acender uma luzinha, havia um punhado de filósofos quebrando a cabeça com perguntas estranhas. Aristóteles, por exemplo, já brincava com a ideia de raciocínio automático: “Se todos os homens são mortais e Sócrates é homem... então Sócrates é mortal.” Isso parece uma linha de código, não?

Lá no século XIX, George Boole criou um sistema de lógica binária (sim, o mesmo 0 e 1 dos computadores) para expressar pensamentos humanos. Ele achava que o raciocínio podia ser uma equação. Veja só: ele não estava programando, mas filosofando com números.

E quando Alan Turing, em 1950, propôs que se uma máquina conseguisse conversar com um humano sem que ele percebesse a diferença... talvez ela estivesse pensando — ele estava mais próximo de Platão do que da IBM.

O barista da realidade

A vida cotidiana agora se mistura com isso tudo. O atendente do café anota meu pedido numa tela que já sabe, por estatística, o que um cara de camiseta preta vai querer numa segunda-feira. O GPS prevê que vou passar pela padaria só porque é sexta. A IA parece me conhecer mais do que eu.

Mas... quem programou essas previsões? Quem decidiu que eu sou previsível?

A resposta, de novo, é filosófica: somos nós que criamos modelos do pensamento humano para tentar duplicá-lo. Em outras palavras: filosofamos sobre como pensamos, transformamos isso em lógica, e a lógica virou software.

Um espelho de silício

O mais curioso é que, ao tentarmos fazer a máquina pensar, fomos forçados a refletir sobre o que significa “pensar” de verdade.

Se ela finge sentir, ela sente?

Se ela erra, ela decide?

Se ela me emociona... ela me entende?

John Searle, um filósofo, disse que uma IA pode simular entender chinês, sem saber chinês. Ou seja, pode parecer inteligente sem ser. Mas será que isso também não vale para alguns humanos em reuniões de Zoom?

E o pensamento continua

Enquanto a IA aprende a escrever poemas, responder mensagens e corrigir sua pontuação — ela carrega no peito um coração filosófico disfarçado de código. Todo algoritmo nasceu de um pensamento sobre o pensamento. Toda previsão foi antes uma pergunta.

No fim, talvez a pergunta mais filosófica seja esta:

“Será que, ao ensinar a máquina a pensar, não estamos apenas tentando nos entender melhor?”

“A máquina me respondeu, mas... e se fosse eu?” — sobre ética, algoritmos e culpas invisíveis

Outro dia, um amigo me contou que foi recusado para uma vaga de emprego por um “sistema automático de triagem”. Ele nem chegou a conversar com um ser humano. A IA olhou o currículo, julgou com olhos invisíveis e disse: “não.”

Ele não ficou bravo com a empresa. Nem com o computador. Só ficou quieto. E eu pensei: quem é o culpado quando ninguém está presente?

O novo dilema de Pilatos: lavar as mãos com um clique

Vivemos rodeados por decisões automatizadas: o banco nega crédito, o aplicativo te bloqueia, o vídeo que você postou some. Ninguém te explicou, ninguém assinou. A IA apenas “decidiu”. E isso muda tudo.

No passado, quando um porteiro barrava alguém, ele tinha um rosto. Agora, quem nega é um número. E você nem sabe se ele entendeu por que você veio.

É aqui que a filosofia grita:

“Não basta pensar como uma máquina. É preciso pensar sobre a máquina.”

Kant, cookies e responsabilidade

Se Immanuel Kant estivesse hoje no seu notebook, talvez surgisse um alerta:

“Você aceita que os algoritmos decidam sua vida com base em padrões de consumo?”

Kant defendia que a moral está em agir de acordo com um princípio que você aceitaria como universal. Em outras palavras: se eu crio uma IA que escolhe sem empatia, eu aceitaria ser tratado por ela?

Muita gente responde: “Não.”

Mas... assina os termos de uso mesmo assim.

Quando a IA erra, quem corrige?

Imagine: uma IA médica erra o diagnóstico. Um carro autônomo atropela. Um sistema de segurança identifica um rosto errado. Quem se levanta da cadeira para pedir desculpas?

A filosofia chama isso de lacuna moral: uma zona onde a responsabilidade desaparece, porque ninguém foi o autor direto da ação.

Mas os efeitos são reais. A dor é real. E mais assustador: as decisões invisíveis moldam nossas vidas reais.

A ética virou código

Hoje, engenheiros escrevem linhas de código que contêm, na prática, valores morais disfarçados:
– “Quem deve ser priorizado?”

– “O que deve ser censurado?”

– “O que é aceitável mostrar para uma criança?”

– “Como identificar um risco?”

Essas não são perguntas técnicas. São decisões éticas.

Como diria o filósofo brasileiro Marcos Nobre, vivemos um tempo em que os sistemas automatizados são tão potentes que se tornam estruturas invisíveis de poder. E onde há poder... precisa haver filosofia.

E o café segue quente

Volto ao café, dessa vez com o celular na mão. O algoritmo me recomenda uma nova música, um vídeo curto, um texto motivacional.

Mas recuso tudo.

Peço um expresso forte, abro um caderno e escrevo, como se fosse um desabafo silencioso:

“A máquina me respondeu... mas será que eu perguntei certo?”

Talvez o futuro dependa disso: ensinar a IA a pensar bem — mas ensinar a nós mesmos a perguntar melhor.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Silogismos

Quando a Lógica Quer Brincar de Filosofia...então, nas filas do cotidiano há uma fartura de situações interessantes, eis mais uma.

Outro dia, na fila do mercado, ouvi um rapaz dizer com convicção: “Todo mundo que come chocolate fica feliz. Eu comi chocolate. Logo, estou feliz.” E deu algumas risadas! Na hora, achei engraçado. Mas depois, pensando melhor, percebi que ali havia um silogismo meio torto, uma tentativa involuntária de organizar o mundo com lógica. E não é exatamente isso que fazemos o tempo todo? Tentamos entender a vida encaixando coisas em pequenas fórmulas, como se fossem peças de LEGO. Só que nem sempre o castelo que montamos se sustenta.

O silogismo, do modo clássico, é uma forma de raciocínio dedutivo. Aristóteles o formalizou: uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão. Por exemplo:

  • Todo homem é mortal.
  • Sócrates é homem.
  • Logo, Sócrates é mortal.

Simples, elegante, racional. Mas a questão é: a vida cabe nesse tipo de raciocínio? Ou melhor, quantos erros profundos de julgamento nascem justamente de silogismos bem montados, porém com premissas equivocadas?

Todo sucesso é fruto de esforço. João se esforçou. Logo, João terá sucesso.
Essa conclusão, apesar de parecer justa, muitas vezes falha. E é aí que começa a nossa provocação.

Quando a razão tropeça no próprio salto

O filósofo Theodor Adorno dizia que a razão instrumental — aquela que organiza, mede e calcula — pode se transformar em uma armadilha. O silogismo, ferramenta pura da razão, às vezes ignora a textura da realidade. Ele presume uma verdade universal na primeira premissa, e esse é o ponto cego.

Todo político mente. Fulano é político. Logo, Fulano mente.

Essa forma de pensar fecha a porta para a singularidade, para a exceção, para o imprevisto. Vira um jogo lógico com ares de sentença moral.

O perigo da lógica em série

Vivemos tempos em que os silogismos correm soltos nas redes sociais. Há sempre alguém dizendo:
Se você discorda de mim, é porque está mal informado. Você discorda de mim. Logo, está mal informado.

É um tipo de lógica travestida de arrogância. Ela não convida à conversa; ela elimina o outro com uma estrutura que parece racional, mas é emocionalmente autoritária. O silogismo virou meme, virou julgamento sumário, virou algoritmo mental.

A beleza de quebrar o formato

Mas e se usássemos o silogismo para algo mais criativo? Algo mais filosófico? O pensador francês Gaston Bachelard dizia que o conhecimento não avança por continuidade, mas por rupturas. Então, por que não imaginar silogismos paradoxais?

  • Toda certeza cansa.
  • Os sábios são cheios de dúvidas.
  • Logo, os sábios descansam.

Ou este:

  • Quem ama, escuta o silêncio.
  • O silêncio não se explica.
  • Logo, o amor não se explica.

Esses silogismos não são “corretos” no sentido lógico, mas abrem caminhos de reflexão, como se a lógica tivesse aprendido a dançar. Eles nos fazem pensar para além da rigidez da forma, tocando um saber que não cabe em fórmulas: a sabedoria.

O silogismo é um convite à ordem, à clareza. Mas o mundo não é claro nem ordenado. Se por um lado ele nos ajuda a organizar ideias, por outro, pode nos cegar para aquilo que escapa às regras — o poético, o ambíguo, o contraditório.

No fim das contas, talvez o melhor silogismo seja este:

  • Toda lógica tem limites.
  • A vida está além dos limites.
  • Logo, a vida está além da lógica.

E se isso não for lógico, talvez seja exatamente por isso que vale a pena pensar sobre.

terça-feira, 20 de maio de 2025

O Terceiro Homem

Quando a lógica escorrega no próprio sapato...

Recordo que numa aula de lógica, um colega perguntou: "Se tudo o que participa de uma ideia é semelhante a ela, então por que precisamos de mais uma ideia para explicar essa semelhança?". A turma parou. O professor coçou a cabeça. E eu me lembrei de Aristóteles, que já tinha feito essa pergunta dois mil e tantos anos atrás — com um toque de ironia e muita precisão. Era o famoso problema do terceiro homem.

E não, não tem nada a ver com filmes de espionagem nem com identidades secretas. Tem a ver com lógica pura. Ou melhor, com o limite da lógica quando ela tenta explicar o mundo com ideias demais.

A ideia da ideia da ideia...

Vamos supor que você está tentando entender o que é o conceito de "homem". Platão diria: existe um mundo das Formas, onde está a Forma perfeita do Homem. Tudo o que é humano participa dessa Forma. Até aí, beleza.

Mas Aristóteles levanta uma sobrancelha: “Se Sócrates, Platão e Aristóteles são todos homens porque participam da Forma 'Homem', e essa Forma também é semelhante a eles (afinal, é um Homem), então ela também participa de outra Forma superior. E assim por diante.”

Resultado? Para explicar o que é um homem, precisaríamos de uma infinita escadaria de Formas de Homens. Um labirinto lógico. E o conceito de "Homem" nunca chega a lugar nenhum. A lógica implode em si mesma.

Forma x Substância: onde mora a realidade?

Aqui entra a diferença fundamental entre Platão e Aristóteles. Platão acreditava que a realidade verdadeira estava nas Formas, essas ideias puras, perfeitas, imutáveis — que vivem num tipo de “céu” metafísico. As coisas que vemos aqui são apenas sombras imperfeitas dessas ideias eternas.

Já Aristóteles dava um passo diferente: ele dizia que o que existe de verdade é o que está aqui, composto de matéria e forma. E que não precisamos de uma Forma separada para entender o que uma coisa é — a forma está na própria coisa, como a receita está no próprio bolo, não numa padaria celestial.

Portanto, para Platão, buscamos a explicação do "Homem" em outra dimensão, no mundo das ideias. Para Aristóteles, olhamos para o ser humano real e vemos ali a substância: corpo (matéria) e alma (forma) juntos, inseparáveis.

A crítica do Terceiro Homem é, no fundo, uma defesa aristotélica de que as explicações não devem se afastar demais do mundo que pisamos.

O Terceiro no cotidiano: quando a explicação vira vício

Essa ideia pode parecer distante, mas ela aparece o tempo todo no dia a dia. Já viu alguém que precisa sempre de mais uma justificativa para tudo? Você diz: "Isso é errado". A pessoa pergunta: "Por quê?" Você responde: "Porque prejudica os outros". E ela: "E por que isso é ruim?" — e assim vai, como uma criança que sempre pergunta "por quê" até a paciência acabar.

A busca infinita por uma explicação superior pode levar ao mesmo paradoxo do Terceiro Homem: você nunca chega a uma conclusão sólida, porque está sempre querendo fundamentar o fundamento.

O risco de confiar demais em modelos ideais

O argumento do terceiro homem é uma crítica à obsessão platônica por ideias perfeitas. Aristóteles está dizendo: cuidado com essa mania de criar Formas para explicar tudo. Às vezes, a própria realidade, com suas imperfeições, explica mais do que o ideal.

Na prática? Esperar por um “amor ideal” pode impedir alguém de enxergar a beleza de um afeto real. Procurar a “amizade perfeita” pode cegar para companheiros leais que não cabem na teoria. O terceiro homem é aquele ideal inatingível que aparece toda vez que recusamos aceitar o mundo como ele é.

As vezes o segundo basta

O argumento do terceiro homem mostra que a lógica, se não for bem calibrada, entra em loop. E que talvez seja melhor ficar com o segundo homem mesmo — aquele que está aqui, de carne e osso, sem precisar de uma essência metafísica para existir.

Aristóteles nos lembra que buscar a essência pode ser nobre, mas que a realidade concreta tem sua própria dignidade. Às vezes, é mais sábio parar de criar ideias sobre ideias e simplesmente viver com aquilo que já faz sentido.

Como diria um velho professor de lógica: o problema do terceiro homem começa quando a gente tem vergonha do segundo.

sábado, 10 de maio de 2025

Lupa e Espelho

Um Mate com o Objetivismo e o Subjetivismo...

Outro dia, esperando a água do chimarrão esquentar, me peguei encarando a chaleira. O vapor subia em espirais meio caóticas e pensei: “Será que ele existe assim mesmo ou só está assim porque eu estou vendo desse jeito?”. A chaleira continuou lá, alheia à minha filosofia de cozinha, mas o pensamento ficou. A vida, afinal, parece balançar entre duas grandes vontades: a de que as coisas sejam como são (objetivamente) e a de que sejam como sentimos que são (subjetivamente). Esse é o cabo de guerra silencioso entre objetivismo e subjetivismo.

A razão e o eu: um encontro (nem sempre cordial)

O objetivismo quer o mundo como ele é, sem firulas. A verdade está lá fora, como dizia Arquimedes antes de descobrir a alavanca e a física clássica inteira. Os objetivistas acreditam que há um modo certo de olhar as coisas, um ponto fixo. Já o subjetivismo sussurra outra coisa: que a verdade passa pelo nosso olhar, pelas nossas entranhas emocionais, pela forma como o mundo nos atravessa.

O primeiro problema é que ninguém acorda pela manhã como um puro objetivista. Ninguém diz: “Hoje me sinto objetivamente bem”. A gente diz: “Acordei meio estranho, o tempo tá pesado, parece que o mundo tá fora do lugar”. A verdade, mesmo que externa, parece sempre entrar pela nossa porta interna.

O copo meio cheio (ou meio vazio?) — depende

Vamos a um exemplo doméstico. Você e um amigo assistem ao mesmo filme. Um acha brilhante, o outro acha arrastado. O objetivista tentaria medir o ritmo, analisar a edição, calcular a densidade dramática. O subjetivista diria: “O filme me tocou, e isso basta”. A crítica de cinema vive dessa disputa: quantas estrelas cabem entre o gosto pessoal e os critérios técnicos?

Mas e se os dois tiverem razão? E se a realidade for uma espécie de “camada dupla”, como uma lasanha metafísica — uma camada objetiva de fatos, outra subjetiva de significados?

Nietzsche, o árbitro relutante

Nietzsche, sempre desconfiado das verdades em mármore, nos oferece uma saída ousada: não existe fato sem interpretação. Para ele, o que chamamos de “realidade” é sempre uma construção. Ou seja, até mesmo o objetivismo é uma espécie de subjetivismo disfarçado de jaleco branco.

Mas isso não quer dizer que tudo seja relativo. Nietzsche não é um libertino epistemológico. O que ele quer dizer é que a realidade é uma batalha de interpretações. Algumas vencem, outras murcham. Não porque sejam mais verdadeiras, mas porque são mais fortes, mais convincentes, mais úteis.

A busca de um meio do caminho

Hoje, muitos filósofos preferem falar em intersubjetividade — uma ponte entre o mundo pessoal e o mundo comum. Não é nem o absoluto frio do objetivismo, nem o caos solipsista do subjetivismo. É a ideia de que compartilhamos sentidos, narrativas, significados. A cultura, a linguagem e os valores são construções intersubjetivas: nem estão lá no mundo puro, nem só dentro da nossa cabeça. Estão entre nós.

A chaleira da minha cozinha, por exemplo, é um objeto físico, mas também é o símbolo da pausa, do mate, da memória afetiva. Ela existe em dois mundos: no da física e no do afeto. O subjetivismo a aquece, o objetivismo a estrutura. E nós vivemos no intervalo entre essas duas forças.

Olhar e ser olhado

No fundo, talvez o maior desafio não seja escolher entre objetivismo ou subjetivismo, mas aprender a habitar essa tensão. Como quem vê o reflexo no espelho e, ao mesmo tempo, tenta entender a face que o espelho reflete. A realidade é um pouco como aquela chaleira: ferve quando a gente não está olhando, mas parece querer dizer algo quando nos aproximamos.

Talvez filosofar seja isso: aquecer a água do pensamento até que o vapor forme perguntas. E então, entre a razão objetiva e o sentimento subjetivo, servir um mate morno com a dúvida no lugar do açúcar.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Véu de Maia


 Quando o mundo engana com delicadeza

Outro dia, enquanto sorvia um mate no final da tarde, reparei num pôr do sol absurdo de bonito. Céu alaranjado, nuvens cor-de-rosa e um leve vento que parecia dançar com as folhas da árvore ao lado. Por um instante, tudo parou. E logo depois, tudo voltou: buzinas, pressa, notificações. Foi quando me veio a pergunta — e se isso tudo fosse só um cenário? E se a beleza, a pressa, o tédio e até a matéria fossem... encenações?

A filosofia oriental, especialmente no hinduísmo, tem um conceito encantador para isso: Maia. Uma palavra pequena para uma ideia enorme — a ilusão do mundo sensível. Segundo essa visão, tudo o que percebemos com os sentidos é uma espécie de teatro cósmico. Não que seja “falso”, mas que é incompleto. O mundo como o vemos seria um véu — bonito, detalhado, realista — que esconde algo mais verdadeiro por trás.

O cotidiano por trás da cortina

A gente vive nesse véu o tempo todo. Na conversa com o colega que sorri, mas por dentro chora. No “tá tudo bem” que serve de capa para o caos emocional. No desejo que nos arrasta para comprar um celular novo, como se isso fosse salvar o dia. A realidade parece sólida, mas talvez seja só espuma.

O curioso é que até a ciência moderna nos ajuda a duvidar da solidez das coisas. Os átomos que compõem tudo são, em sua maior parte, espaço vazio. A matéria é vibração, campo, possibilidade. A física quântica, mesmo sem intenção mística, nos diz que o que chamamos de real é muito mais estranho do que pensamos.

E no fundo, quem nunca viveu aquela sensação de acordar de um sonho que parecia mais real do que a segunda-feira?

O ego também é Maia disfarçada

Na psicologia, principalmente na psicanálise e na psicologia transpessoal, há uma ideia parecida: o eu que achamos que somos não é quem realmente somos. Criamos uma persona — o profissional, o engraçado, o tímido, o forte — e acreditamos nela como se fosse identidade. Mas por trás da máscara, há um outro ser: mais silencioso, mais profundo, talvez até mais sábio. Só que ele não grita, não posta stories, não bate ponto.

Viver sob o véu de Maia, então, é mais do que uma metáfora espiritual: é a nossa rotina. É reagir a imagens, a sombras, a expectativas. É sofrer por algo que nem aconteceu, ou desejar algo que, depois de conquistado, vira paisagem.

Rasgando o véu, mesmo que só um pouco

Mas às vezes, sem querer, o véu rasga. Um luto, uma queda, um amor profundo. Algo nos tira do automático. Como se um raio atravessasse a encenação. E por alguns segundos, vemos — mesmo sem entender — que existe algo maior, mais calmo, mais verdadeiro por trás do corre.

Os mestres espirituais dizem que essa verdade se chama Consciência. Aquilo que observa tudo sem se confundir com nada. Não é a mente, nem o corpo, nem as emoções — é o que permanece quando tudo isso muda.

Como se vive sabendo disso?

Não há uma receita. Mas talvez seja esse o convite: olhar o mundo com delicadeza, mas sem apego. Apreciar o teatro, sabendo que é teatro. Brincar de viver, sabendo que há um mistério nos bastidores. Não precisa sair da vida comum. Só lembrar, de vez em quando, que talvez a realidade seja como aquele pôr do sol: linda, mas passageira. E que, por trás de tudo isso, há um silêncio que nunca muda. Talvez ali more o real.

“A realidade, tal como a percebemos, é apenas uma ilusão — embora uma ilusão bastante persistente.”

Albert Einstein

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Percepção de Empédocles



Outro dia, me peguei observando o reflexo da rua numa poça d’água. Tinha sol, mas também ventava frio. As pessoas passavam apressadas, e eu, meio à toa, pensei: será que o que vejo é mesmo o que está lá fora? Ou é só um reflexo — não só na água, mas na mente? E aí me veio à cabeça um nome que quase ninguém cita numa conversa de bar: Empédocles.

A percepção como mistura dos elementos

Empédocles, o filósofo pré-socrático de Agrigento, talvez não ganhe o mesmo destaque que Sócrates ou Platão, mas ele teve uma sacada genial: tudo que existe é feito de quatro raízes — terra, água, ar e fogo — misturadas pelo Amor e separadas pelo Ódio. Agora, se ele pensava assim sobre o mundo físico, por que não pensar a percepção humana também como uma mistura dessas raízes?

Não percebemos com "os olhos" apenas, mas com a composição inteira do nosso ser. Empédocles dizia que "o semelhante conhece o semelhante", ou seja, só percebemos aquilo que já existe em nós. A terra em mim reconhece a terra do mundo. A água em mim se emociona com o rio. O fogo em mim vibra com a paixão. O ar em mim sonha com as nuvens.

Perceber é participar

Para Empédocles, não existe uma separação entre sujeito e objeto como a filosofia moderna adora discutir. Não somos uma câmera registrando o mundo. Somos parte do mundo. Ver, sentir, cheirar, ouvir — tudo isso é um encontro entre o que há dentro e fora de nós. Quando eu sinto o calor do sol na pele, não é só o sol me tocando — é também meu fogo interno reconhecendo um parente distante.

E é aqui que a coisa fica bonita: se percepção é mistura, então ela é fluida, mutável, dançante. Ninguém vê o mesmo pôr do sol duas vezes, nem mesmo a mesma pessoa. O que sentimos do mundo depende do que está mais forte em nós naquele momento — se é a água, talvez estejamos mais sensíveis. Se é a terra, mais contidos. Se o ar predomina, queremos voar. Se o fogo domina, queimamos por dentro e tudo ao redor parece mais intenso.

A ilusão da objetividade

A modernidade construiu a ideia de uma percepção objetiva, como se pudéssemos desligar nossa alma e virar instrumentos neutros. Mas Empédocles desmontaria isso com facilidade. Para ele, não existe olhar sem mistura. Até o ódio altera a percepção — ele separa os elementos, cria rupturas, endurece o que poderia fluir.

Um exemplo cotidiano? Quando estamos apaixonados (movidos pelo Amor, segundo Empédocles), o mundo parece mais bonito, as cores mais vivas, até o cheiro do asfalto molhado parece poesia. Mas quando estamos tomados pelo Ódio (ou pelo medo, ou ressentimento), tudo escurece, tudo encolhe.

Ver é ser

A grande sacada de Empédocles talvez seja esta: perceber não é apenas captar, mas também compor. Somos compositores da realidade a cada olhar. A percepção é o lugar onde o mundo e a alma se abraçam — ou se evitam.

Na próxima vez que olhar para uma poça d’água, pense: não é só a rua que está ali refletida. É também você. E sua terra, sua água, seu fogo e seu ar — dançando conforme a música dos elementos que você carrega.

Empédocles talvez não tenha tido Instagram, mas entendia uma coisa que a gente esquece: ver o mundo é sempre ver a si mesmo também.


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Viabilidade Contestada

Quando a Realidade se Recusa a Colaborar

Outro dia, tomando um café forte, escutei alguém dizer: "Isso aí não vai dar certo. Não é viável." A sentença era definitiva, como se a viabilidade fosse um juiz infalível, pronto para arquivar qualquer tentativa ousada. Fiquei pensando: e se a própria ideia de viabilidade fosse um conceito contestável? Afinal, quantas coisas hoje comuns foram, um dia, consideradas impossíveis?

A viabilidade, no discurso cotidiano, parece uma métrica neutra, uma régua que mede se algo pode ou não acontecer. Mas será que ela é realmente objetiva? Ou será que é apenas um reflexo de crenças, interesses e padrões aceitos num determinado tempo e espaço? Quando algo é chamado de inviável, não estamos apenas descrevendo a realidade, mas também reforçando um certo modo de ver o mundo, delimitando o que pode e o que não pode existir.

A Ilusão do Impossível

Se voltarmos no tempo, veremos que muitas das grandes transformações da humanidade nasceram de tentativas de desafiar o senso comum da viabilidade. Voar? Inviável, diziam. Computadores pessoais? Um absurdo. O simples fato de conceber algo novo já implica um enfrentamento com o estabelecido. O status quo precisa se proteger, e a alegação de inviabilidade muitas vezes é uma estratégia de contenção.

Aqui podemos recorrer a Gaston Bachelard, que nos fala sobre os obstáculos epistemológicos – barreiras invisíveis ao pensamento que nos fazem descartar possibilidades antes mesmo de testá-las. Não é que algo seja realmente inviável, mas nossa forma de pensar o impede de ser viável. O medo da ruptura, a inércia da tradição e o conformismo são os verdadeiros carrascos da inovação.

Viabilidade e Poder

Curiosamente, o que é viável e o que não é depende de quem fala. O dinheiro transforma a inviabilidade em detalhe técnico. Grandes corporações conseguem tornar viável o que parecia impensável, simplesmente porque têm recursos para insistir. Isso revela que a viabilidade não é um critério universal, mas um campo de disputa. O que é viável para um pode ser impossível para outro.

A filósofa brasileira Suely Rolnik nos alerta para os mecanismos de subjetivação que moldam nossa percepção do que é possível. Quando absorvemos sem questionar a ideia de inviabilidade, estamos aceitando um modelo de mundo imposto por forças que nem sempre têm nossos interesses em mente. A viabilidade contestada não é apenas um exercício teórico; é um ato de resistência contra os limites arbitrários do possível.

O Que Fazer com a Inviabilidade?

Se toda viabilidade pode ser contestada, então não devemos tomá-la como um veredito definitivo. O que hoje parece impraticável pode ser, na verdade, apenas um sintoma de uma visão restrita da realidade. Questionar a viabilidade não significa ignorar desafios concretos, mas reconhecer que o impossível pode ser apenas uma convenção mal elaborada.

Então, quando alguém lhe disser que algo não é viável, talvez valha a pena perguntar: para quem? E por quê?


domingo, 23 de março de 2025

Palavras que Pensam

Sabe aquela discussão de bar sobre o que realmente significa "liberdade"? Alguém diz que é poder fazer o que quiser, outro rebate que não é bem assim, porque vivemos em sociedade e, bem, regras existem. E então o debate desanda, e cada um continua acreditando na própria definição como se fosse a única possível. O que acontece aí? Um clássico problema da semântica: palavras são janelas para conceitos, mas essas janelas nunca são totalmente transparentes.

A semântica, dentro da filosofia, estuda como atribuímos significados às palavras e como esses significados se relacionam com a realidade. A questão central é: as palavras refletem a realidade ou apenas impõem uma estrutura artificial ao mundo? Wittgenstein, em sua fase tardia, diria que os significados não são fixos, mas dependem dos usos na linguagem cotidiana. Já Frege buscava uma precisão lógica, separando sentido e referência.

Se o significado depende do uso, então o que dizer de conceitos como "justiça", "verdade" ou "felicidade"? São conceitos que parecem universais, mas mudam conforme a cultura, o tempo e a intenção de quem fala. Quando Platão tentou definir "justiça" em "A República", ele precisou construir uma cidade ideal para ilustrar seu ponto. E aí está o dilema da semântica filosófica: definir é sempre interpretar.

E quando a interpretação se torna uma arma? Termos são ressignificados o tempo todo para manipular percepções. Orwell já alertava para isso em "1984", quando o "Ministério da Verdade" era responsável por reescrever a história. No mundo real, palavras como "progresso" e "ordem" podem significar liberdade ou controle, dependendo de quem fala.

Talvez a semântica não seja só um estudo de significados, mas um estudo sobre como pensamos e moldamos a realidade. Se a linguagem é a casa do ser, como dizia Heidegger, então a semântica é a arquitetura dessa casa. O que nos resta é escolher bem as palavras e, principalmente, escutar o que está por trás delas.