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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Vida Abstrata

Tem situações na vida em que quero tomar uma ação imediata e mais dura, mas ao mesmo tempo consigo me conter e agir racionalmente interrompendo o imediatismo, agindo de maneira coerente, eis que me fez pensar neste outro eu, numa segunda vida paralela e abstrata. A segunda vida do homem, essa vida abstrata que habita o interior de nossas mentes, revela um lado curioso da natureza humana. Enquanto nos movemos através da realidade, reagindo às frustrações cotidianas, às alegrias e às ansiedades com intensidade, essa outra vida opera em um tempo paralelo, quase como um mecanismo de compensação. Ela é tranquila, deliberada e distante, como se fosse um observador frio das turbulências externas.

Imaginemos um dia comum: o trânsito engarrafado, a discussão com um colega de trabalho ou um mal-entendido com um amigo. No calor do momento, esses eventos parecem maiores do que são, absorvem nossa energia e definem nossa disposição. Somos reféns das emoções imediatas, da adrenalina do agora. No entanto, algumas horas ou dias depois, esse cenário começa a se desintegrar em nossa mente, perdendo o impacto inicial. Aquilo que parecia grave e urgente ganha uma nova tonalidade: a da irrelevância.

Esse é o espaço onde a segunda vida do homem ganha força. Lá, com um olhar de espectador, ele se distancia emocionalmente e racionaliza aquilo que antes o prendia. O trânsito? Apenas parte do funcionamento do sistema. A discussão? Um detalhe que não define a relação completa com o colega. Nesse processo, a vida externa é revisada sob uma nova luz, menos emocional e mais reflexiva. Aqui, o homem percebe que é possível reagir de forma diferente a esses eventos — ou, pelo menos, a partir dessa segunda vida, ele deseja que pudesse reagir assim na vida real. Pois é, quantas vezes com o passar do tempo nos arrependemos, então cabe tentar consertar a situação e nossa atitude para não ser mais intempestiva.

Essa separação entre o homem imediato, que responde aos estímulos à flor da pele, e o homem abstrato, que reavalia e julga suas próprias ações de forma serena, cria uma dicotomia interessante. Um vive, o outro observa. Um sofre as emoções, o outro as analisa à distância, como se o primeiro fosse o ator em uma peça teatral e o segundo, o crítico sentado na plateia. Isso gera um ciclo contínuo: viver, sentir, refletir e, eventualmente, aprender.

No entanto, há também algo mais profundo. Esse espectador interior não apenas julga as ações, mas também projeta uma visão idealizada de como deveríamos ter nos comportado. Ele nos questiona sobre o que realmente importa. A vida externa, com suas constantes demandas e ruídos, muitas vezes nos desconecta do que é essencial. No entanto, quando olhamos para esses eventos com calma, o espectador dentro de nós encontra um ponto de harmonia, onde não há pressa nem pressão para reagir. Apenas existe a contemplação pura.

Essa segunda vida, ao mesmo tempo que oferece serenidade, pode também carregar um certo desencanto. Quando o calor das emoções se dissipa, o que resta? Muitas vezes, o que era irritante parece trivial, e o que era excitante se revela vazio. As coisas perdem o brilho. É como se, na abstração, o mundo se tornasse "frio, sem graça e distante". Isso reflete uma consciência crescente de que a vida, em sua essência, pode ser uma construção de momentos que, ao serem revistos, não possuem a importância que lhes atribuímos.

Há uma sensação de libertação e, ao mesmo tempo, de perda. Libertação, porque essa segunda vida nos permite escapar das amarras emocionais do momento presente e vê-las com uma clareza maior. Perda, porque o distanciamento excessivo pode nos descolar da vitalidade do aqui e agora, nos deixando apenas como observadores da nossa própria existência.

O filósofo Søren Kierkegaard, em suas reflexões sobre a existência, falava sobre a tensão entre a vida estética e a vida ética. Na vida estética, o indivíduo busca as emoções e os prazeres imediatos, enquanto na vida ética, ele reflete sobre as consequências de suas ações e busca uma vida mais profunda e significativa. Essa segunda vida que descrevemos se assemelha à transição entre esses dois modos de viver. Ao rever nossas ações e emoções, estamos, de certa forma, saindo da estética para entrar no campo da ética, onde podemos tomar decisões mais conscientes.

Essa segunda vida, portanto, não é apenas um reflexo frio e distante da primeira, mas também uma ferramenta poderosa de transformação. Ao observarmos com calma o que nos incomodou ou encantou, podemos entender melhor quem somos e, com isso, moldar nossas futuras reações.


terça-feira, 11 de junho de 2024

Unilateralidade Abstrata

Vamos encarar a realidade: todos nós, em algum momento, caímos na armadilha da unilateralidade abstrata. É como aquele amigo que só consegue ver a própria perspectiva em uma discussão acalorada, ou o colega de trabalho que insiste em impor suas ideias sem nem ao menos considerar as opiniões dos outros. A unilateralidade abstrata está em toda parte, e muitas vezes nem percebemos que estamos presos nela.

Imagine esta situação comum: você está em uma discussão política com um amigo. Vocês têm opiniões divergentes sobre um determinado assunto, digamos, a legalização da maconha. Você está firmemente convencido de que a maconha deveria ser legalizada, argumentando sobre os benefícios medicinais e a liberdade individual. Seu amigo, por outro lado, está igualmente convencido de que a maconha deve permanecer ilegal, preocupado com os potenciais danos à saúde pública e ao tecido social. A discussão esquenta, e logo vocês estão apenas gritando um com o outro, cada um tentando impor sua visão de mundo. Aqui está a unilateralidade abstrata em ação: ambos estão tão imersos em suas próprias convicções que se recusam a considerar os argumentos do outro lado.

Como observado pelo filósofo francês Albert Camus, "A intolerância é a primeira manifestação de uma falta de fé no próprio ponto de vista que se defende". Nesta discussão sobre a legalização da maconha, tanto você quanto seu amigo estão demonstrando uma falta de fé na própria força de seus argumentos, optando por ignorar qualquer perspectiva que não se alinhe com a sua própria.

Outro exemplo comum de unilateralidade abstrata pode ser encontrado em relacionamentos interpessoais. Quantas vezes nos pegamos culpando nosso parceiro por problemas em nosso relacionamento sem sequer considerar nosso próprio papel nesses problemas? Talvez estejamos tão focados em nossos próprios sentimentos e necessidades que negligenciamos completamente as preocupações e perspectivas da outra pessoa. Estamos tão obcecados com nossa própria narrativa que não conseguimos ver além dela.

Como observado pelo psicólogo Carl Rogers, "Quando me aceito como eu sou, então posso mudar". Esta citação ressalta a importância de reconhecer e aceitar nossa própria unilateralidade abstrata antes de podermos começar a mudar nossas atitudes e comportamentos. Somente quando reconhecemos que estamos presos em nossas próprias perspectivas limitadas é que podemos começar a abrir nossas mentes para novas ideias e pontos de vista.

Em resumo, a unilateralidade abstrata é uma armadilha comum na qual todos nós caímos de vez em quando. Seja em discussões políticas acaloradas ou em relacionamentos interpessoais tensos, é fácil ficar preso em nossas próprias narrativas e ignorar o outro lado da moeda. No entanto, ao reconhecermos nossa própria unilateralidade e estarmos dispostos a considerar outras perspectivas, podemos começar a nos libertar dessa armadilha e a cultivar uma maior empatia e compreensão em nossas interações com os outros.