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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O Númeno

Aquilo Que Nunca Tocamos

Outro dia, enquanto tentava abrir um pote de azeitonas com a tampa emperrada, me ocorreu um pensamento estranho: será que o mundo real também tem uma “tampa” que nunca conseguimos abrir? Parece que estamos sempre lidando com a casca das coisas, mas nunca com a coisa em si. Essa ideia, que soa meio maluca, é mais ou menos o que Immanuel Kant chamou de númeno – aquilo que existe independentemente da nossa percepção, mas que nunca conseguimos acessar diretamente.

A Coisa-em-Si e o Nosso Mundo de Aparências

Kant, em sua Crítica da Razão Pura, faz uma distinção crucial entre o fenômeno e o númeno. O fenômeno é o que percebemos – cores, sons, formas, tudo mediado pelos nossos sentidos e pela estrutura da nossa mente. Já o númeno seria a “coisa-em-si”, ou seja, aquilo que existe de fato, mas que nunca podemos conhecer diretamente.

Um exemplo prático: imagine que você está olhando para uma maçã. O que você vê não é a maçã como ela realmente é, mas a versão dela que seus olhos e seu cérebro conseguem interpretar. A cor vermelha não está na maçã, mas na forma como seus olhos captam a luz refletida por ela. O sabor não está na maçã, mas na maneira como suas papilas gustativas reagem às substâncias que a compõem. A maçã em si – sua verdadeira essência – continua um mistério.

Vivemos Num Mundo de Sombras?

Essa ideia não é nova. Platão já sugeria algo semelhante com o Mito da Caverna: vivemos cercados por sombras, acreditando que são a realidade, mas sem ver o que está por trás delas. Kant radicaliza isso ao dizer que nunca poderemos sair da caverna, pois nossa mente não tem acesso direto à realidade última.

Se isso for verdade, significa que a ciência, a filosofia e tudo que construímos está sempre lidando com interpretações da realidade, nunca com a realidade em si. O microscópio mais potente, a equação mais precisa, tudo são apenas formas de organizar aquilo que conseguimos captar.

E o Que Isso Significa Para Nossa Vida?

Se nunca podemos conhecer o mundo tal como ele realmente é, isso nos condena a um eterno erro? Não necessariamente. Kant não era um cético absoluto; ele acreditava que, mesmo sem acesso direto ao númeno, conseguimos criar conhecimento válido dentro do nosso universo de fenômenos.

Isso nos leva a uma reflexão interessante: será que deveríamos nos preocupar tanto em buscar a verdade última? Ou talvez o mais importante seja interpretar o mundo da melhor maneira possível dentro das nossas limitações? Se a tampa do pote nunca vai abrir, talvez o melhor seja aprender a lidar com o vidro e encontrar maneiras de aproveitar as azeitonas que conseguimos enxergar.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Falsas Lembranças

As falsas lembranças são um fenômeno fascinante e, ao mesmo tempo, um tanto perturbador. Imagine se você lembrasse vividamente de um evento que nunca aconteceu? Isso pode parecer tirado de um enredo de filme de ficção científica, mas, na verdade, é uma ocorrência relativamente comum na vida cotidiana.

Vamos começar com um exemplo do dia a dia: você tem certeza de que estacionou o carro em uma rua específica. Quando volta, o carro não está lá. O primeiro pensamento pode ser que foi roubado, mas depois de alguma confusão e caminhada, você encontra o carro estacionado em uma rua diferente. Você poderia jurar que tinha estacionado na primeira rua, mas a realidade era outra. Essa é uma situação clássica de falsa lembrança.

As falsas lembranças podem ser causadas por vários fatores, como sugestões externas, a associação de eventos similares ou até mesmo a simples construção de uma narrativa lógica pelo nosso cérebro. Nossa mente é uma narradora excelente, mas às vezes ela preenche lacunas com detalhes que fazem sentido, mesmo que não sejam verdadeiros.

Na psicologia, esse fenômeno foi amplamente estudado e demonstrado por meio de experimentos. Por exemplo, Elizabeth Loftus, uma psicóloga cognitiva, conduziu uma série de estudos sobre a memória e mostrou como é fácil plantar falsas lembranças em indivíduos. Em um famoso experimento, participantes foram levados a acreditar que, quando crianças, se perderam em um shopping center, mesmo que isso nunca tivesse acontecido.

Mas por que isso acontece? Parte da resposta está na forma como nossa memória funciona. Nossa memória não é uma gravação perfeita dos eventos que vivenciamos; é mais como um quebra-cabeça que nosso cérebro monta a cada vez que recordamos de algo. Cada vez que nos lembramos de um evento, estamos, na verdade, reconstruindo-o, e é nesse processo de reconstrução que as distorções e falsas lembranças podem se infiltrar.

Além disso, nossas emoções e expectativas também desempenham um papel crucial. Se estamos emocionalmente envolvidos ou particularmente esperançosos ou ansiosos sobre algo, nossa memória pode ser colorida por essas emoções. É por isso que testemunhos oculares, por exemplo, podem ser tão falíveis. Uma pessoa pode estar absolutamente convencida de que viu algo, mas suas emoções e o estresse do momento podem ter distorcido sua percepção e memória.

Na filosofia, esse fenômeno levanta questões interessantes sobre a natureza da realidade e da verdade. Se nossas memórias podem ser tão facilmente manipuladas ou distorcidas, o que isso diz sobre a nossa percepção da realidade? Será que alguma vez podemos confiar completamente em nossas lembranças? Isso ecoa o pensamento de filósofos como René Descartes, que questionava a certeza do conhecimento baseado na percepção sensorial.

Voltemos ao cotidiano. Imagine uma conversa entre amigos relembrando uma viagem que fizeram juntos. Cada um pode ter uma versão ligeiramente diferente dos eventos. Um amigo pode lembrar-se de um jantar fantástico em um restaurante específico, enquanto outro jura que esse jantar aconteceu em um local completamente diferente. Quem está certo? Talvez ambos estejam, em seus próprios contextos de memória.

A beleza e a complexidade das falsas lembranças nos mostram que a memória é, ao mesmo tempo, uma dádiva e uma construção. Ela nos permite reviver momentos preciosos e aprender com o passado, mas também nos lembra da fragilidade e da maleabilidade da nossa percepção. Em última análise, isso pode nos ensinar a ser mais humildes e cuidadosos com as nossas certezas, reconhecendo que o que lembramos pode não ser sempre o que realmente aconteceu. 

Link: 

https://www.jusbrasil.com.br/noticias/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-entrevista-com-elizabeth-f-loftus/188132449