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quarta-feira, 23 de abril de 2025

Borboletas no cérebro

Um ensaio filosófico sobre pensamentos que voam, pousam, desaparecem – e às vezes nos transformam.

Outro dia, no meio de uma conversa boba sobre o que comer no jantar, senti uma ideia bater asa dentro da cabeça. Não era nada articulado. Era como aquela sensação de estar quase lembrando o nome de alguém. Um lampejo, um movimento súbito, como se algo se agitasse lá dentro — e fosse embora antes que eu pudesse segurar. Fiquei parado. “Borboletas no cérebro”, pensei. E assim fiquei, rindo sozinho da imagem.

Borboletas no cérebro: uma metáfora? Um diagnóstico poético? Talvez uma teoria mental que faltava. Acontece com frequência. Estamos vivendo algo banal — lavando louça, esperando o elevador, escovando os dentes — e de repente blip, um pensamento que parece não vir de nós mesmos. Como se uma parte do universo invadisse o nosso crânio com suas próprias intenções. É o pensamento que não obedece ao comando, o que chega por capricho, como se dissesse: "Não é você quem me pensa, sou eu que venho te visitar".

A leveza do pensamento involuntário

Nietzsche, lá em Além do Bem e do Mal, diz que os pensamentos vêm quando eles querem, e não quando nós queremos. E ele vai além: “É uma falsificação pensar que somos os que pensam. O pensamento nos atravessa”. Se é assim, então talvez o cérebro seja mesmo um jardim — e os pensamentos, borboletas que vêm de fora, param um pouco e depois seguem voo.

Isso muda tudo. Porque estamos acostumados a ver a mente como um comando central. Um lugar de controle. Mas e se a maior parte do que nos faz ser quem somos vem de movimentos delicados, acidentais e imprevisíveis? E se somos mais casa de passagem do que donos da razão?

O risco de prender as asas

Há quem tente organizar tudo. Domesticar cada borboleta como se fosse planilha. Rotina, método, produtividade, café às 6h43. Claro, é útil. Mas nesse controle, há um risco: espantar o que é leve. Borboletas não pousam em motores barulhentos. Pensamentos profundos também não florescem entre barulhos e obrigações repetitivas.

Às vezes, precisamos de silêncio, sombra, ou até tédio, para que algo raro nos visite. Não é à toa que muita gente tem ideias boas no banho, ou ao olhar pela janela do ônibus. Outro dia quando estava deitado quase acordando, naquela momento vieram pensamentos, vieram ideias com problemas e em seguida veio a solução, olha só que coisa louca, pois é o que chamam de incubação criativa. Então entendi, quando o mundo perde o foco e a cabeça pode vagar — aí sim, as asas batem.

Pensamento ou transformação?

Nem toda borboleta é só enfeite. Algumas vêm, pousam, abrem as asas, e deixam traços. Um pensamento pode mudar o curso de uma vida. Pode ser o estalo de alguém que decide largar tudo e ir morar no mato. Pode ser a lembrança de uma avó, que reaparece com cheiro de bolo e silêncio reconfortante. Pode ser uma frase lida sem querer, que reorganiza tudo por dentro.

Essas borboletas não são só visitantes. Elas depositam ovos. E desses ovos, nascem outras coisas: novas visões, decisões, renascimentos. A vida é menos um projeto e mais uma metamorfose em cadeia.

O voo que nos escapa

Claro, há borboletas que nunca conseguimos nomear. Ideias que só sentimos, mas nunca conseguimos dizer. Elas passam, nos tocam, mas não deixam palavra. Talvez a arte, a poesia, a música, tenham surgido para tentar capturar o que o pensamento puro não consegue.

Lembro sem certeza, que o poeta francês Paul Valéry teria dito que “o cérebro é uma borboleta. Não é o coração que ama, é a imaginação”. Talvez tudo se misture: o pensar, o sentir, o imaginar — e sejam, no fundo, apenas formas de voar.

No fim das contas, viver talvez seja isso: ter borboletas no cérebro e, mesmo sem entender todas elas, abrir espaço para que venham, pousando sobre nossas dúvidas, nossas perguntas sem resposta, e até sobre o silêncio. Porque o que voa, mesmo quando vai embora, às vezes nos transforma. E deixa no ar um rastro leve, mas impossível de esquecer.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Falsas Lembranças

As falsas lembranças são um fenômeno fascinante e, ao mesmo tempo, um tanto perturbador. Imagine se você lembrasse vividamente de um evento que nunca aconteceu? Isso pode parecer tirado de um enredo de filme de ficção científica, mas, na verdade, é uma ocorrência relativamente comum na vida cotidiana.

Vamos começar com um exemplo do dia a dia: você tem certeza de que estacionou o carro em uma rua específica. Quando volta, o carro não está lá. O primeiro pensamento pode ser que foi roubado, mas depois de alguma confusão e caminhada, você encontra o carro estacionado em uma rua diferente. Você poderia jurar que tinha estacionado na primeira rua, mas a realidade era outra. Essa é uma situação clássica de falsa lembrança.

As falsas lembranças podem ser causadas por vários fatores, como sugestões externas, a associação de eventos similares ou até mesmo a simples construção de uma narrativa lógica pelo nosso cérebro. Nossa mente é uma narradora excelente, mas às vezes ela preenche lacunas com detalhes que fazem sentido, mesmo que não sejam verdadeiros.

Na psicologia, esse fenômeno foi amplamente estudado e demonstrado por meio de experimentos. Por exemplo, Elizabeth Loftus, uma psicóloga cognitiva, conduziu uma série de estudos sobre a memória e mostrou como é fácil plantar falsas lembranças em indivíduos. Em um famoso experimento, participantes foram levados a acreditar que, quando crianças, se perderam em um shopping center, mesmo que isso nunca tivesse acontecido.

Mas por que isso acontece? Parte da resposta está na forma como nossa memória funciona. Nossa memória não é uma gravação perfeita dos eventos que vivenciamos; é mais como um quebra-cabeça que nosso cérebro monta a cada vez que recordamos de algo. Cada vez que nos lembramos de um evento, estamos, na verdade, reconstruindo-o, e é nesse processo de reconstrução que as distorções e falsas lembranças podem se infiltrar.

Além disso, nossas emoções e expectativas também desempenham um papel crucial. Se estamos emocionalmente envolvidos ou particularmente esperançosos ou ansiosos sobre algo, nossa memória pode ser colorida por essas emoções. É por isso que testemunhos oculares, por exemplo, podem ser tão falíveis. Uma pessoa pode estar absolutamente convencida de que viu algo, mas suas emoções e o estresse do momento podem ter distorcido sua percepção e memória.

Na filosofia, esse fenômeno levanta questões interessantes sobre a natureza da realidade e da verdade. Se nossas memórias podem ser tão facilmente manipuladas ou distorcidas, o que isso diz sobre a nossa percepção da realidade? Será que alguma vez podemos confiar completamente em nossas lembranças? Isso ecoa o pensamento de filósofos como René Descartes, que questionava a certeza do conhecimento baseado na percepção sensorial.

Voltemos ao cotidiano. Imagine uma conversa entre amigos relembrando uma viagem que fizeram juntos. Cada um pode ter uma versão ligeiramente diferente dos eventos. Um amigo pode lembrar-se de um jantar fantástico em um restaurante específico, enquanto outro jura que esse jantar aconteceu em um local completamente diferente. Quem está certo? Talvez ambos estejam, em seus próprios contextos de memória.

A beleza e a complexidade das falsas lembranças nos mostram que a memória é, ao mesmo tempo, uma dádiva e uma construção. Ela nos permite reviver momentos preciosos e aprender com o passado, mas também nos lembra da fragilidade e da maleabilidade da nossa percepção. Em última análise, isso pode nos ensinar a ser mais humildes e cuidadosos com as nossas certezas, reconhecendo que o que lembramos pode não ser sempre o que realmente aconteceu. 

Link: 

https://www.jusbrasil.com.br/noticias/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-entrevista-com-elizabeth-f-loftus/188132449


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Malas de Viagem

Imagine por um momento que as malas de viagem são mais do que simples recipientes para roupas e itens essenciais. Vamos adotar um olhar filosófico sobre esses companheiros de viagem e explorar o que mais elas carregam além do material. Elas são, de fato, transportadoras de histórias e experiências, cada uma contendo um universo único de significado e aventura.

Na superfície, uma mala pode parecer apenas um objeto inanimado, mas dentro dela reside um mundo de possibilidades. Considere uma mala que acompanha um estudante universitário em sua primeira viagem de estudo no exterior. Ela carrega não apenas roupas e livros, mas também sonhos, expectativas e um senso de descoberta. Ela é um símbolo de coragem e crescimento, uma testemunha silenciosa da jornada do estudante para a autoconsciência e amadurecimento.

Agora, pense em uma família que está se preparando para suas férias anuais. Cada membro da família tem sua própria mala, repleta de lembranças de viagens passadas e expectativas para a viagem atual. Essas malas não são apenas recipientes de roupas e brinquedos; elas são vasos que carregam o amor, a alegria e a conexão que a família compartilha enquanto exploram novos lugares juntos.

E o que dizer da mala de um aventureiro solitário, pronto para explorar o mundo sozinho? Dentro dela, não há apenas itens práticos como uma barraca e equipamento de camping, mas também uma sede insaciável por experiências novas e desconhecidas. Essa mala é uma extensão da alma do viajante, refletindo sua busca incessante por significado e aventura em um mundo vasto e maravilhoso.

Até mesmo uma simples mala de negócios pode carregar mais do que apenas ternos e laptops. Para um profissional viajante, ela é um símbolo de ambição, perseverança e a busca pela excelência. Ela contém não apenas documentos e contratos, mas também a dedicação e a determinação necessárias para alcançar o sucesso em um mundo competitivo e em constante mudança.

E o que acontece quando uma mala se perde? É como se uma parte da nossa história desaparecesse junto com ela. As lembranças preciosas, os itens sentimentais, tudo perdido em um instante. Mas talvez essa seja a natureza das malas de viagem - elas nos lembram da impermanência da vida e da efemeridade das coisas materiais. Elas nos ensinam a valorizar o momento presente e a apreciar as experiências que a vida nos oferece.

Agora vejamos, nestes tempos sombrios em que as enchentes e a destruição de estradas nos deixam presos em nossos lares, as malas de viagem assumem um significado ainda mais profundo. Elas se tornam testemunhas mudas de nossa frustração e ansiedade, símbolos de um desejo insaciável por liberdade e aventura que parece estar fora de alcance.

Pense nas malas empoeiradas nos sótãos e porões de nossas casas, esperando pacientemente por sua próxima jornada. Elas são como sentinelas silenciosas de tempos melhores, lembrando-nos de que, apesar da imobilidade atual, o mundo lá fora continua a existir, repleto de maravilhas e experiências esperando para serem descobertas.

Mas enquanto estamos impedidos de viajar, talvez seja hora de reavaliar o papel das malas em nossas vidas. Elas não são apenas veículos para escapar da realidade, mas também receptáculos para nossas esperanças, sonhos e aspirações. Dentro delas, guardamos não apenas roupas e pertences, mas também memórias preciosas de viagens passadas e expectativas para o futuro.

Entretanto, mesmo quando nossas malas permanecem fechadas e negligenciadas, elas continuam a nos lembrar da importância da jornada. Elas nos lembram de que a vida é uma aventura imprevisível, cheia de altos e baixos, desafios e recompensas. E mesmo quando enfrentamos obstáculos intransponíveis, como as enchentes e a destruição das estradas, há uma certa beleza na jornada em si, uma oportunidade de crescimento e autoconhecimento que transcende as fronteiras físicas.

Então, enquanto esperamos pacientemente pelo dia em que poderemos mais uma vez pegar nossas malas e partir em busca de novas aventuras, vamos lembrar que a verdadeira jornada está dentro de nós. Ela está nos momentos que compartilhamos com aqueles que amamos, nas pequenas alegrias do dia a dia, e nas lições que aprendemos ao longo do caminho.

E quando finalmente retomarmos nossas viagens, que nossas malas se tornem mais do que apenas recipientes para nossos pertences. Que elas se tornem símbolos de esperança, resiliência e determinação, lembrando-nos de que, não importa o quão escura a tempestade possa parecer, sempre há luz no fim do túnel, esperando para nos guiar em direção a novos horizontes.

Então, quando você estiver fazendo as malas para uma viagem, lembre-se de olhar além do material. Reconheça o verdadeiro significado por trás das malas de viagem - elas são mais do que simples recipientes; são testemunhas silenciosas de nossas jornadas, guardiãs de nossas histórias e companheiras de aventuras.


terça-feira, 26 de setembro de 2023

O Sussurro das Folhas da Figueira: Uma lembrança de vida



Existe uma antiga figueira no pátio de uma pequena casa amarela, cujas raízes se entrelaçam com os segredos mais profundos da terra, é uma figueira centenária, ela foi testemunha da dor e sofrimento de muitos seres humanos escravizados e maltratados, também foi testemunha da alegria de famílias que viveram e ainda vivem sob sua sombra e proteção, o tempo passou e as marcas do tempo que flui ficaram, ainda majestosa a bela senhora permanece até hoje serena e firme. Seus galhos se estendem em todas as direções, criando uma imponente e acolhedora sombra. As folhas da figueira são como pequenas mensageiras do divino, contando histórias de uma conexão mais profunda entre os mundos, histórias que afagam nosso coração e outras que nos lembram da tristeza de tempos que gostaríamos que não tivesse existido.

Durante as noites escuras e silenciosas, quando o brilho da lua iluminava timidamente o horizonte, os escravos se reuniam sob a figueira. Ali, compartilhavam histórias de suas jornadas difíceis, de seus sonhos de liberdade e de um futuro onde todos poderiam viver em igualdade. A figueira tornou-se o símbolo de sua resistência e a força que os unia na luta pela liberdade.

Cada folha, cada ramo e cada raiz da figueira pareciam carregar a história daqueles que buscavam a libertação. A árvore era como uma testemunha silenciosa de suas lutas, uma presença eterna que ecoava sua determinação e coragem. As folhas eram os sussurros daqueles que ousaram sonhar com um mundo melhor, um mundo onde todos fossem livres e felizes.

Com o passar do tempo as pessoas daquela comunidade viam a figueira como uma velha senhora testemunha de muitas histórias de vida, veneravam a figueira como sagrada. Diziam que suas folhas eram portadoras de ensinamentos antigos, transmitindo a sabedoria dos tempos primordiais. Em noites calmas, sob o brilho da lua, quando podiam e era permitido os negros sábios do local se reuniam ao redor da figueira para ouvir os sussurros do vento que agitavam suas folhas, entoavam seus cânticos e procuravam lembrar das figueiras de sua terra.

Muitas décadas após momentos tão difíceis vividos por nossos irmãos, certa noite, uma jovem senhora chamada Ória sentiu uma atração irresistível pela figueira. Com o coração cheio de curiosidade e desejo de sabedoria, ela se aproximou da árvore majestosa. Sentou-se sob sua sombra e, com olhos fechados, deixou-se levar pela suave melodia da brisa que fazia as folhas da figueira dançarem.

As folhas começaram a sussurrar histórias de vida e renovação. Contaram sobre os ciclos da natureza, das folhas que nascem, florescem, envelhecem e, por fim, se soltam da árvore para se fundirem novamente com a terra. Era uma lição de aceitação e fluidez, lembrando Ória que a vida é uma constante transformação.

Em seguida, as folhas murmuraram sobre a interconexão de todas as coisas. Elas explicaram que, assim como cada folha contribui para a vitalidade da árvore, cada indivíduo contribui para o equilíbrio e harmonia do universo. Nesse momento, Ória sentiu uma profunda paz interior, compreendendo sua ligação com tudo o que a rodeava.

As folhas também compartilharam ensinamentos sobre gratidão. Elas expressaram a gratidão por receber a luz do sol, as gotas de chuva e os nutrientes da terra. Essa gratidão, explicaram, mantinha a árvore saudável e florescente. Ória refletiu sobre como a gratidão poderia ser uma força transformadora em sua própria vida.

Ao amanhecer, Ória se levantou revigorada, com o coração cheio de inspiração e sabedoria. Ela compreendeu que as folhas da figueira eram mensageiras de uma verdade universal, um lembrete de que, assim como as folhas, estamos todos interligados, em constante mudança e devemos praticar a gratidão em nossas jornadas.

A partir desse dia, Ória passou a viver sua vida com uma nova perspectiva, honrando a sabedoria das folhas da figueira e compartilhando sua luz e conhecimento com todos que cruzavam seu caminho. A figueira, com suas folhas espirituais, tinha guiado mais uma alma em sua jornada em direção à iluminação e à compreensão do universo.

Ória não foi a única a sentir a inexplicável atração pela figueira. Um após o outro, moradores da vila eram irresistivelmente atraídos pelo poder magnético da árvore. Cada um tinha sua própria jornada interior, suas questões e anseios. Mas todos buscavam respostas, conforto e iluminação.

Eu e minha família fomos viver na década de 70 na casinha amarela sob a bênção da figueira. A figueira para nós não era apenas uma árvore, era uma presença espiritual que nos guiava em nossas jornadas individuais, recordo que todos éramos parte de um todo maior, uma teia de vida intrincada que se estendia além do que os olhos podiam ver. E assim, a figueira continua a tocar almas e a transformar vidas, oferecendo suas lições de amor e sabedoria a todos que a buscavam, em minha lembrança penso em minha mãe que se chamava Ória, era uma médium formidável nos falava sobre as energias antigas que existiam naquele ambiente da figueira onde estava a casinha amarela, nos ensinou a respeitar a história do lugar e nos contou algumas histórias de quem tinha vivido ali.

A casa amarela não existe mais, mas a figueira permanece firme, com sua idade e sabedoria, continua a oferecer sombra e inspiração a todos, lembrando de que, sob sua copa, haviam e haverão de encontrar não apenas abrigo físico, mas também a força para enfrentar desafios e lutar por um futuro mais igualitário e justo. Era e é um testemunho vivo de que a liberdade e a esperança sempre podem crescer, mesmo nas situações mais sombrias que todos nós vivemos.