Quando o mundo engana com delicadeza
Outro
dia, enquanto sorvia um mate no final da tarde, reparei num pôr do sol absurdo
de bonito. Céu alaranjado, nuvens cor-de-rosa e um leve vento que parecia
dançar com as folhas da árvore ao lado. Por um instante, tudo parou. E logo
depois, tudo voltou: buzinas, pressa, notificações. Foi quando me veio a
pergunta — e se isso tudo fosse só um cenário? E se a beleza, a pressa, o tédio
e até a matéria fossem... encenações?
A
filosofia oriental, especialmente no hinduísmo, tem um conceito encantador para
isso: Maia. Uma palavra pequena para uma ideia enorme — a ilusão do
mundo sensível. Segundo essa visão, tudo o que percebemos com os sentidos é
uma espécie de teatro cósmico. Não que seja “falso”, mas que é incompleto.
O mundo como o vemos seria um véu — bonito, detalhado, realista — que esconde
algo mais verdadeiro por trás.
O
cotidiano por trás da cortina
A
gente vive nesse véu o tempo todo. Na conversa com o colega que sorri, mas por
dentro chora. No “tá tudo bem” que serve de capa para o caos emocional. No
desejo que nos arrasta para comprar um celular novo, como se isso fosse salvar
o dia. A realidade parece sólida, mas talvez seja só espuma.
O
curioso é que até a ciência moderna nos ajuda a duvidar da solidez das
coisas. Os átomos que compõem tudo são, em sua maior parte, espaço vazio. A
matéria é vibração, campo, possibilidade. A física quântica, mesmo sem intenção
mística, nos diz que o que chamamos de real é muito mais estranho do que
pensamos.
E
no fundo, quem nunca viveu aquela sensação de acordar de um sonho que parecia
mais real do que a segunda-feira?
O
ego também é Maia disfarçada
Na
psicologia, principalmente na psicanálise e na psicologia transpessoal, há uma
ideia parecida: o eu que achamos que somos não é quem realmente somos.
Criamos uma persona — o profissional, o engraçado, o tímido, o forte — e
acreditamos nela como se fosse identidade. Mas por trás da máscara, há um outro
ser: mais silencioso, mais profundo, talvez até mais sábio. Só que ele não
grita, não posta stories, não bate ponto.
Viver
sob o véu de Maia, então, é mais do que uma metáfora espiritual: é a nossa
rotina. É reagir a imagens, a sombras, a expectativas. É sofrer por algo que
nem aconteceu, ou desejar algo que, depois de conquistado, vira paisagem.
Rasgando
o véu, mesmo que só um pouco
Mas
às vezes, sem querer, o véu rasga. Um luto, uma queda, um amor profundo. Algo
nos tira do automático. Como se um raio atravessasse a encenação. E por alguns
segundos, vemos — mesmo sem entender — que existe algo maior, mais calmo, mais
verdadeiro por trás do corre.
Os
mestres espirituais dizem que essa verdade se chama Consciência. Aquilo
que observa tudo sem se confundir com nada. Não é a mente, nem o corpo, nem as
emoções — é o que permanece quando tudo isso muda.
Como
se vive sabendo disso?
Não
há uma receita. Mas talvez seja esse o convite: olhar o mundo com
delicadeza, mas sem apego. Apreciar o teatro, sabendo que é teatro. Brincar
de viver, sabendo que há um mistério nos bastidores. Não precisa sair da vida
comum. Só lembrar, de vez em quando, que talvez a realidade seja como aquele
pôr do sol: linda, mas passageira. E que, por trás de tudo isso, há um silêncio
que nunca muda. Talvez ali more o real.
“A
realidade, tal como a percebemos, é apenas uma ilusão — embora uma ilusão
bastante persistente.”
—
Albert Einstein