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segunda-feira, 2 de junho de 2025

Os Sofistas Voltaram

E Somos Todos um Pouco Como Eles

Durante muito tempo, bastava dizer "sofista" para que se evocasse uma imagem de alguém dissimulado, manipulador, que torce as palavras como quem torce um pano de chão sujo. A imagem construída por Platão colou na história como um rótulo definitivo. E, no entanto, basta observar o nosso tempo para perceber que os sofistas não só voltaram — como foram perdoados e reabilitados. Mais ainda: somos todos, de certo modo, seus herdeiros.

Em um mundo onde discursos constroem realidades, a retórica voltou a ocupar o centro da vida pública. Quem domina a linguagem, molda a percepção do outro. Num simples post de rede social, ao escolher um adjetivo com precisão cirúrgica, ao inverter a ordem de uma frase, ao criar um “meme de opinião”, fazemos o que os sofistas faziam: argumentamos para influenciar.

Mas a inovação aqui é outra: talvez hoje compreendamos melhor a posição dos sofistas não porque tenhamos ficado mais cínicos, mas porque amadurecemos o entendimento sobre a verdade. A verdade, no século XXI, não é mais um bloco de mármore em cima do qual se constrói um templo. Ela se parece mais com uma nuvem: está ali, tem forma, tem substância, mas se move, se desfaz, se recompõe.

Protágoras, com seu famoso fragmento — “O homem é a medida de todas as coisas: das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são” — soa escandalosamente atual. Ele está presente em discussões sobre identidades, em debates de narrativas históricas, em conversas sobre diversidade de percepção e ponto de vista. Ao invés de perguntar "qual é a verdade?", talvez hoje perguntemos "para quem essa verdade faz sentido?".

Górgias, com sua ousadia filosófica no tratado Sobre o Não-Ser, diz: “Se algo existe, não pode ser compreendido pelo homem. E se pode ser compreendido, não pode ser comunicado.” Ele antecipa os dilemas modernos da linguagem: será que dizemos o que sentimos, ou só empilhamos palavras que nunca alcançam o outro? Sua reflexão toca naquilo que hoje inquieta educadores, comunicadores e poetas — o abismo entre intenção e recepção.

Essa crítica à estabilidade da linguagem nos leva ao ponto seguinte: o impacto dos sofistas na educação contemporânea.

Os sofistas foram os primeiros a ensinar por dinheiro — mas isso não os torna mercadores da verdade, como pensava Platão. Pelo contrário, eles fundaram uma forma prática e dialógica de ensino. Não buscavam transmitir dogmas, mas desenvolver habilidades de argumentação, análise e pensamento crítico. Em outras palavras, promoviam uma educação voltada para a vida pública e o exercício da cidadania.

Quando um professor hoje estimula seus alunos a pensar por si mesmos, a debater com respeito, a sustentar ideias diferentes diante de colegas — está retomando o espírito sofístico. Quando se valoriza a argumentação mais do que a memorização, o raciocínio mais do que a resposta certa, o erro como parte do aprendizado — estamos no terreno fértil que os sofistas prepararam.

Até mesmo metodologias modernas como a sala de aula invertida ou a aprendizagem baseada em projetos caminham com eles: colocam o estudante no centro, convidam ao discurso, estimulam o confronto de pontos de vista. O professor deixa de ser um detentor de verdades e se torna um mediador, um facilitador de caminhos — bem ao estilo de um sofista como Hípias, que transitava entre saberes diversos e se orgulhava de poder falar sobre tudo, do cosmos às sandálias que ele mesmo fazia.

Nietzsche, um crítico feroz da moral absoluta, foi um dos primeiros a reabilitar os sofistas, dizendo que talvez eles fossem mais honestos que Sócrates — porque admitiam que toda verdade é um jogo de forças. E talvez isso nos toque hoje, porque vivemos não em um mundo de certezas sólidas, mas de múltiplas convicções frágeis.

Na prática, o vendedor que encanta o cliente, a criança que convence os pais a deixá-la dormir mais um pouco, o advogado que defende o indefensável, o militante que cria slogans precisos e até o influenciador que encaixa a palavra certa no momento certo — todos são, de algum modo, filhos do espírito sofístico.

É claro que há risco no excesso de sofística — como há risco em toda ferramenta poderosa. Um discurso vazio, mas bonito, pode enganar, iludir, manipular. Mas talvez o erro dos antigos tenha sido imaginar que só havia dois caminhos: o da verdade eterna ou o da mentira. Hoje sabemos que há também o campo das versões, das perspectivas, do diálogo entre verdades.

Como observou a filósofa brasileira Marilena Chauí, em sua obra Convite à Filosofia, “os sofistas introduziram a ideia de que a verdade depende da maneira como é dita e por quem é dita — e que o discurso não é neutro.” Essa percepção, longe de enfraquecer o pensamento, nos obriga a ser mais atentos, mais éticos, mais responsáveis com o que dizemos e ouvimos.

No fim das contas, não é que os sofistas tenham voltado. É que nunca foram embora. E talvez esteja na hora de reconhecê-los não como vilões do pensamento, mas como seus engenheiros — que sabiam, desde o início, que o mundo é feito de palavras, e que as palavras são o que temos para dar forma ao mundo.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Heróis e Vilões

 

No mundo de hoje, estamos rodeados por uma profusão de heróis e vilões, mas nem sempre são aqueles dos contos de fadas ou das histórias em quadrinhos. Na verdade, muitas vezes, esses personagens não são claramente definidos, e o que é considerado heroico por alguns pode ser visto como vilanesco por outros. A verdade é que todos nós carregamos um pouco dos dois dentro de nós, e é o equilíbrio sutil entre essas forças que molda nossas interações cotidianas, nem sempre do bem, nem sempre do mal.

Vamos começar com uma situação comum: o trânsito caótico das grandes cidades. Você está preso em um engarrafamento, atrasado para uma reunião importante, quando alguém corta a fila de carros e se aproveita de uma brecha para avançar. Você pode considerar esse motorista um vilão, alguém que desrespeita as regras e prejudica os outros. Mas e se essa pessoa estiver correndo para chegar ao hospital porque um ente querido está em perigo? De repente, a situação se torna mais complexa, e o que parecia ser um ato egoísta pode ser interpretado como um ato de desespero, quase heróico.

Essas nuances morais são uma parte fundamental do cotidiano, e muitas vezes nos vemos tentando equilibrar nossas próprias inclinações entre o certo e o errado. Podemos não enfrentar supervilões mascarados, mas lidamos com dilemas éticos constantemente. Por exemplo, você já se viu em uma situação em que precisa decidir entre fazer o que é melhor para você ou ajudar alguém que está precisando? Talvez seja oferecer seu assento no transporte público a alguém que parece cansado, ou talvez seja decidir entre seguir em frente com seus próprios planos ou dedicar seu tempo e recursos a uma causa maior.

Para fundamentar essas reflexões, podemos recorrer a pensadores que exploraram a natureza humana e a moralidade ao longo da história. Aristóteles, por exemplo, falou sobre a virtude como um meio termo entre dois extremos, sugerindo que a coragem está no ponto intermediário entre a covardia e a imprudência. Da mesma forma, o filósofo chinês Confúcio enfatizou a importância da empatia e da compaixão nas interações humanas, destacando que devemos tratar os outros como gostaríamos de ser tratados.

Essas ideias nos lembram que ser um herói ou um vilão muitas vezes depende do contexto e das motivações por trás de nossas ações. Não somos perfeitos, e é normal cometer erros ou agir de forma egoísta de vez em quando. No entanto, o verdadeiro desafio está em reconhecer essas falhas e buscar constantemente ser a melhor versão de nós mesmos, contribuindo para um mundo onde o equilíbrio entre o bem e o mal seja alcançado não por grandes atos heroicos, mas sim pelas pequenas escolhas que fazemos todos os dias.

O que diria Kant a respeito das verdadeiras intenções por trás das ações aparentemente heróicas?

Immanuel Kant, um dos filósofos mais influentes da tradição ocidental, certamente traria uma perspectiva interessante para essa discussão sobre atos e suas intenções verdadeiras. Para Kant, o que determina a moralidade de uma ação não é apenas o resultado ou as circunstâncias externas, mas sim a intenção por trás dela.

Segundo a ética kantiana, uma ação é moralmente correta se for realizada por dever e motivada pelo respeito ao imperativo categórico, que é o princípio moral fundamental. Esse imperativo categórico nos diz para agir de tal forma que possamos querer que nossa máxima de ação se torne uma lei universal. Em outras palavras, devemos agir de acordo com princípios que poderiam ser aplicados de forma consistente a todos os seres racionais.

Ao aplicar o pensamento de Kant às situações cotidianas que mencionamos anteriormente, ele enfatizaria a importância da intenção por trás das ações. Por exemplo, retornando ao exemplo do trânsito, Kant argumentaria que, mesmo que alguém esteja agindo de forma aparentemente altruística ao cortar a fila para chegar ao hospital, a moralidade da ação dependeria da intenção por trás dela. Se a pessoa estiver agindo puramente por um sentido de dever e respeito pelo valor da vida humana, sua ação seria considerada moralmente correta, mesmo que isso signifique violar uma norma de trânsito.

Por outro lado, se a pessoa estiver cortando a fila apenas para evitar o atraso em uma reunião sem uma verdadeira emergência, sua ação seria considerada moralmente questionável, pois não estaria agindo de acordo com um princípio que pudesse ser universalizado.

Kant nos lembra da importância de considerar não apenas as consequências externas de nossas ações, mas também as intenções por trás delas. Essa abordagem nos incentiva a refletir sobre nossos próprios motivos e a buscar agir de acordo com princípios éticos universais, mesmo nas situações mais complexas do cotidiano.