E Somos Todos um Pouco Como Eles
Durante
muito tempo, bastava dizer "sofista" para que se evocasse uma imagem
de alguém dissimulado, manipulador, que torce as palavras como quem torce um
pano de chão sujo. A imagem construída por Platão colou na história como um
rótulo definitivo. E, no entanto, basta observar o nosso tempo para perceber
que os sofistas não só voltaram — como foram perdoados e reabilitados. Mais
ainda: somos todos, de certo modo, seus herdeiros.
Em
um mundo onde discursos constroem realidades, a retórica voltou a ocupar o
centro da vida pública. Quem domina a linguagem, molda a percepção do outro.
Num simples post de rede social, ao escolher um adjetivo com precisão
cirúrgica, ao inverter a ordem de uma frase, ao criar um “meme de opinião”,
fazemos o que os sofistas faziam: argumentamos para influenciar.
Mas
a inovação aqui é outra: talvez hoje compreendamos melhor a posição dos
sofistas não porque tenhamos ficado mais cínicos, mas porque amadurecemos o
entendimento sobre a verdade. A verdade, no século XXI, não é mais um bloco de
mármore em cima do qual se constrói um templo. Ela se parece mais com uma
nuvem: está ali, tem forma, tem substância, mas se move, se desfaz, se
recompõe.
Protágoras,
com seu famoso fragmento — “O homem é a medida de todas as coisas: das que
são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são” — soa
escandalosamente atual. Ele está presente em discussões sobre identidades, em
debates de narrativas históricas, em conversas sobre diversidade de percepção e
ponto de vista. Ao invés de perguntar "qual é a verdade?", talvez
hoje perguntemos "para quem essa verdade faz sentido?".
Górgias,
com sua ousadia filosófica no tratado Sobre o Não-Ser, diz: “Se algo
existe, não pode ser compreendido pelo homem. E se pode ser compreendido, não
pode ser comunicado.” Ele antecipa os dilemas modernos da linguagem: será
que dizemos o que sentimos, ou só empilhamos palavras que nunca alcançam o
outro? Sua reflexão toca naquilo que hoje inquieta educadores, comunicadores e
poetas — o abismo entre intenção e recepção.
Essa
crítica à estabilidade da linguagem nos leva ao ponto seguinte: o impacto dos
sofistas na educação contemporânea.
Os
sofistas foram os primeiros a ensinar por dinheiro — mas isso não os torna
mercadores da verdade, como pensava Platão. Pelo contrário, eles fundaram uma
forma prática e dialógica de ensino. Não buscavam transmitir dogmas, mas
desenvolver habilidades de argumentação, análise e pensamento crítico. Em
outras palavras, promoviam uma educação voltada para a vida pública e o
exercício da cidadania.
Quando
um professor hoje estimula seus alunos a pensar por si mesmos, a debater com
respeito, a sustentar ideias diferentes diante de colegas — está retomando o
espírito sofístico. Quando se valoriza a argumentação mais do que a
memorização, o raciocínio mais do que a resposta certa, o erro como parte do
aprendizado — estamos no terreno fértil que os sofistas prepararam.
Até
mesmo metodologias modernas como a sala de aula invertida ou a aprendizagem
baseada em projetos caminham com eles: colocam o estudante no centro,
convidam ao discurso, estimulam o confronto de pontos de vista. O professor
deixa de ser um detentor de verdades e se torna um mediador, um facilitador de
caminhos — bem ao estilo de um sofista como Hípias, que transitava entre
saberes diversos e se orgulhava de poder falar sobre tudo, do cosmos às
sandálias que ele mesmo fazia.
Nietzsche,
um crítico feroz da moral absoluta, foi um dos primeiros a reabilitar os
sofistas, dizendo que talvez eles fossem mais honestos que Sócrates — porque
admitiam que toda verdade é um jogo de forças. E talvez isso nos toque hoje,
porque vivemos não em um mundo de certezas sólidas, mas de múltiplas convicções
frágeis.
Na
prática, o vendedor que encanta o cliente, a criança que convence os pais a
deixá-la dormir mais um pouco, o advogado que defende o indefensável, o
militante que cria slogans precisos e até o influenciador que encaixa a palavra
certa no momento certo — todos são, de algum modo, filhos do espírito
sofístico.
É
claro que há risco no excesso de sofística — como há risco em toda ferramenta
poderosa. Um discurso vazio, mas bonito, pode enganar, iludir, manipular. Mas
talvez o erro dos antigos tenha sido imaginar que só havia dois caminhos: o da
verdade eterna ou o da mentira. Hoje sabemos que há também o campo das versões,
das perspectivas, do diálogo entre verdades.
Como
observou a filósofa brasileira Marilena Chauí, em sua obra Convite à
Filosofia, “os sofistas introduziram a ideia de que a verdade depende da
maneira como é dita e por quem é dita — e que o discurso não é neutro.” Essa
percepção, longe de enfraquecer o pensamento, nos obriga a ser mais atentos,
mais éticos, mais responsáveis com o que dizemos e ouvimos.
No
fim das contas, não é que os sofistas tenham voltado. É que nunca foram embora.
E talvez esteja na hora de reconhecê-los não como vilões do pensamento, mas
como seus engenheiros — que sabiam, desde o início, que o mundo é feito de
palavras, e que as palavras são o que temos para dar forma ao mundo.