Imagina só: você está numa roda de amigos, e alguém, com um tom meio conspiratório, joga no ar uma afirmação completamente fora de órbita, cheia de certeza e pouca evidência, e ainda manda um “eu vi isso na internet!”. Esse tipo de situação é mais comum do que parece e nos coloca diante de um dilema moderno: como distinguir o que é verdade do que é invenção? É aí que a Filosofia da Ciência entra na conversa.
A Filosofia da Ciência sempre foi um campo em busca
de entender como construímos conhecimento, o que é verdade científica e quais
os critérios para algo ser considerado verdadeiro. No entanto, vivemos hoje num
mundo onde a “pós-verdade” – uma ideia de que as emoções e crenças pessoais
contam mais do que os fatos objetivos – parece ter se enraizado no modo como
recebemos e distribuímos informação. A pergunta é: o que acontece com o valor
da verdade científica nesse contexto?
A Verdade Científica e a Construção do Conhecimento
Desde a época de filósofos como Descartes e Bacon,
a ciência começou a buscar uma verdade “objetiva” que pudesse ser testada e
comprovada. Descartes, com seu método de dúvida, insistia que nada deve ser
tomado como verdade até que possa ser rigorosamente provado. Com isso, a
ciência foi se estabelecendo como um espaço de busca metódica pela verdade,
onde teorias são construídas, testadas e revisadas, e a realidade é algo que se
desvela por meio de experimentos e comprovações. Isso não significa que a ciência
tenha certezas absolutas – ela, na verdade, progride a partir da possibilidade
de estar errada e melhorar teorias.
Para Karl Popper, outro grande nome da Filosofia da
Ciência, o critério de demarcação entre ciência e não-ciência é a possibilidade
de falsificação. Uma teoria científica, para Popper, deve ser capaz de ser
provada errada. Se uma hipótese não pode ser testada ou falsificada, então ela
não pertence ao campo da ciência. Esse critério, portanto, reforça a ideia de
que a ciência é um processo contínuo de aperfeiçoamento do conhecimento.
O Surgimento da Pós-Verdade
Agora, imagine como esse edifício sólido da ciência
lida com o fenômeno da pós-verdade. Em 2016, a palavra “pós-verdade” foi eleita
como “Palavra do Ano” pelo Oxford Dictionaries, definindo-a como “relativa ou
denotativa de circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes
na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças
pessoais”. A pós-verdade não nega os fatos, mas os relega a um papel secundário
quando comparados às narrativas que servem a interesses específicos ou aos
apelos emocionais.
É como se as redes sociais tivessem criado uma
“feira livre” de verdades, onde a realidade científica concorre com teorias da
conspiração, pseudociência e opiniões subjetivas. Pessoas podem escolher a
versão da realidade que melhor se adapta ao que elas querem acreditar. Mas, se
a ciência sempre se apoiou em evidências e métodos rigorosos para alcançar a
verdade, como lidar com essa tendência de validar “verdades” que ignoram essas
premissas?
O Papel da Filosofia da Ciência no Combate à
Pós-Verdade
A Filosofia da Ciência pode nos ajudar a entender o
valor da verdade científica e o perigo de abrir mão dela. Ao esclarecer o que
diferencia ciência de opinião, esse campo da filosofia destaca a importância de
critérios como objetividade, verificabilidade e, especialmente,
falsificabilidade para fundamentar nossas crenças. Em uma era de pós-verdade,
onde o volume de informações falsas é altíssimo, a Filosofia da Ciência atua
como uma âncora, relembrando-nos de que o processo científico não é apenas uma questão
de opinião, mas de testes rigorosos e comprovações.
O filósofo da ciência Thomas Kuhn trouxe uma
contribuição interessante com sua teoria das revoluções científicas. Segundo
Kuhn, a ciência progride por meio de paradigmas – formas dominantes de entender
o mundo – que, de tempos em tempos, são substituídos por novos paradigmas
quando a ciência avança. Isso mostra que o conhecimento científico não é
estático; ele é dinâmico e, justamente por ser dinâmico, precisa de um sistema
estruturado para garantir que novas ideias sejam rigorosamente testadas antes
de serem aceitas. Em tempos de pós-verdade, onde o que é novo às vezes é aceito
sem critérios, essa visão de Kuhn nos lembra que revoluções científicas não
acontecem sem método.
O Futuro da Verdade Científica
Talvez o maior desafio da ciência atual seja
recuperar seu lugar como fonte de verdade confiável num mundo de pós-verdade. A
Filosofia da Ciência nos fornece ferramentas e critérios para entender e
defender o valor do conhecimento científico. Mas isso exige, de nossa parte,
uma postura crítica diante das informações que consumimos e uma valorização da
ciência como um processo que, embora imperfeito, busca um entendimento cada vez
mais profundo da realidade.
A era da pós-verdade pode até nos confundir, mas a
ciência nos lembra que, por mais atraente que uma narrativa pessoal ou
emocional possa ser, a busca pela verdade exige disciplina, ceticismo e, acima
de tudo, um compromisso com a realidade que vai além das nossas crenças
individuais. Em tempos como esses, talvez a lição mais importante seja esta: a
verdade pode ser inconveniente, mas ela é essencial.
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