Pesquisar este blog

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Pós-Verdade

Imagina só: você está numa roda de amigos, e alguém, com um tom meio conspiratório, joga no ar uma afirmação completamente fora de órbita, cheia de certeza e pouca evidência, e ainda manda um “eu vi isso na internet!”. Esse tipo de situação é mais comum do que parece e nos coloca diante de um dilema moderno: como distinguir o que é verdade do que é invenção? É aí que a Filosofia da Ciência entra na conversa.

A Filosofia da Ciência sempre foi um campo em busca de entender como construímos conhecimento, o que é verdade científica e quais os critérios para algo ser considerado verdadeiro. No entanto, vivemos hoje num mundo onde a “pós-verdade” – uma ideia de que as emoções e crenças pessoais contam mais do que os fatos objetivos – parece ter se enraizado no modo como recebemos e distribuímos informação. A pergunta é: o que acontece com o valor da verdade científica nesse contexto?

A Verdade Científica e a Construção do Conhecimento

Desde a época de filósofos como Descartes e Bacon, a ciência começou a buscar uma verdade “objetiva” que pudesse ser testada e comprovada. Descartes, com seu método de dúvida, insistia que nada deve ser tomado como verdade até que possa ser rigorosamente provado. Com isso, a ciência foi se estabelecendo como um espaço de busca metódica pela verdade, onde teorias são construídas, testadas e revisadas, e a realidade é algo que se desvela por meio de experimentos e comprovações. Isso não significa que a ciência tenha certezas absolutas – ela, na verdade, progride a partir da possibilidade de estar errada e melhorar teorias.

Para Karl Popper, outro grande nome da Filosofia da Ciência, o critério de demarcação entre ciência e não-ciência é a possibilidade de falsificação. Uma teoria científica, para Popper, deve ser capaz de ser provada errada. Se uma hipótese não pode ser testada ou falsificada, então ela não pertence ao campo da ciência. Esse critério, portanto, reforça a ideia de que a ciência é um processo contínuo de aperfeiçoamento do conhecimento.

O Surgimento da Pós-Verdade

Agora, imagine como esse edifício sólido da ciência lida com o fenômeno da pós-verdade. Em 2016, a palavra “pós-verdade” foi eleita como “Palavra do Ano” pelo Oxford Dictionaries, definindo-a como “relativa ou denotativa de circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças pessoais”. A pós-verdade não nega os fatos, mas os relega a um papel secundário quando comparados às narrativas que servem a interesses específicos ou aos apelos emocionais.

É como se as redes sociais tivessem criado uma “feira livre” de verdades, onde a realidade científica concorre com teorias da conspiração, pseudociência e opiniões subjetivas. Pessoas podem escolher a versão da realidade que melhor se adapta ao que elas querem acreditar. Mas, se a ciência sempre se apoiou em evidências e métodos rigorosos para alcançar a verdade, como lidar com essa tendência de validar “verdades” que ignoram essas premissas?

O Papel da Filosofia da Ciência no Combate à Pós-Verdade

A Filosofia da Ciência pode nos ajudar a entender o valor da verdade científica e o perigo de abrir mão dela. Ao esclarecer o que diferencia ciência de opinião, esse campo da filosofia destaca a importância de critérios como objetividade, verificabilidade e, especialmente, falsificabilidade para fundamentar nossas crenças. Em uma era de pós-verdade, onde o volume de informações falsas é altíssimo, a Filosofia da Ciência atua como uma âncora, relembrando-nos de que o processo científico não é apenas uma questão de opinião, mas de testes rigorosos e comprovações.

O filósofo da ciência Thomas Kuhn trouxe uma contribuição interessante com sua teoria das revoluções científicas. Segundo Kuhn, a ciência progride por meio de paradigmas – formas dominantes de entender o mundo – que, de tempos em tempos, são substituídos por novos paradigmas quando a ciência avança. Isso mostra que o conhecimento científico não é estático; ele é dinâmico e, justamente por ser dinâmico, precisa de um sistema estruturado para garantir que novas ideias sejam rigorosamente testadas antes de serem aceitas. Em tempos de pós-verdade, onde o que é novo às vezes é aceito sem critérios, essa visão de Kuhn nos lembra que revoluções científicas não acontecem sem método.

O Futuro da Verdade Científica

Talvez o maior desafio da ciência atual seja recuperar seu lugar como fonte de verdade confiável num mundo de pós-verdade. A Filosofia da Ciência nos fornece ferramentas e critérios para entender e defender o valor do conhecimento científico. Mas isso exige, de nossa parte, uma postura crítica diante das informações que consumimos e uma valorização da ciência como um processo que, embora imperfeito, busca um entendimento cada vez mais profundo da realidade.

A era da pós-verdade pode até nos confundir, mas a ciência nos lembra que, por mais atraente que uma narrativa pessoal ou emocional possa ser, a busca pela verdade exige disciplina, ceticismo e, acima de tudo, um compromisso com a realidade que vai além das nossas crenças individuais. Em tempos como esses, talvez a lição mais importante seja esta: a verdade pode ser inconveniente, mas ela é essencial.


Nenhum comentário:

Postar um comentário