Quando o excesso de sinceridade se torna um fardo
Alceste,
o protagonista de O Misantropo (1666), é um personagem encantadoramente
incômodo. Criado por Molière no coração do teatro clássico francês,
Alceste é aquele que se recusa a jogar o jogo social. Detesta a hipocrisia,
despreza a bajulação, abomina os sorrisos falsos e os elogios vazios. Mas, ao
mesmo tempo, é alguém que sofre por amar uma sociedade da qual não consegue
participar de verdade.
É
fácil simpatizar com Alceste nos primeiros atos: ele diz a verdade na cara dos
outros, questiona a superficialidade das relações, resiste ao teatro social que
todos parecem encenar com gosto. Quem nunca quis fazer o mesmo, em algum jantar
enfadonho ou reunião cheia de fingimentos?
Mas
conforme a peça avança, percebemos que há algo de trágico em sua rigidez.
Alceste não tolera as imperfeições humanas — nem nos outros, nem em si mesmo. E
é aí que sua misantropia deixa de ser uma crítica ao mundo e se transforma num
muro. Um muro alto, onde ele se isola em nome da verdade, mas acaba sozinho.
Porque, no fundo, a sinceridade total, sem compaixão ou medida, também pode
ferir como a mentira.
O
paradoxo mais bonito da peça é que Alceste se apaixona justamente por Célimène,
uma jovem espirituosa, irônica e... totalmente inserida no jogo social que ele
despreza. Ela representa tudo o que ele diz odiar, mas também tudo o que ele
deseja e não consegue ser. Essa tensão amorosa entre dois modos opostos de
estar no mundo revela a profundidade do texto de Molière: não se trata apenas
de um moralismo sobre ser sincero ou falso, mas sobre a dificuldade de viver
entre os outros.
Molière,
como bom comediógrafo, faz graça da tragédia humana. Mas por trás das risadas
está a pergunta: é possível viver em sociedade sem ceder, sem fingir, sem fazer
concessões? E mais — vale a pena?
Alceste
diria que não. Que é melhor ir embora, viver longe do mundo. Mas a peça não o
recompensa por isso. Ele termina só, talvez fiel a si mesmo, mas vencido pela
sua própria intransigência. E Célimène? Fica, leve, entre as palavras, os
risos, as máscaras — talvez mais livre do que ele.
O
Misantropo continua atual porque todos, em algum momento, somos
um pouco Alceste: cansados do fingimento, desejando um mundo mais autêntico.
Mas também somos, às vezes, Célimène: rindo, jogando, tentando sobreviver no
teatro da vida. E talvez seja aí, entre a honestidade e a performance, que se
esconda a arte de conviver.
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