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quinta-feira, 28 de abril de 2022

Resenha do livro A Caverna de José Saramago


O escritor português José Saramago (1922-2010), ateu e liberal, autor de mais de 40 títulos e dentre eles inúmeros premiados e reconhecido mundialmente, um dos mais importantes escritores, romancista, contista, teatrólogo e poeta, utiliza uma linguagem oral que a torna diferenciada. “A Caverna” nasceu de um questionamento enquanto estava sozinho em um restaurante, foi arrebatado pelo seguinte: “E se fôssemos todos cegos?“. A conclusão do escritor é que estamos de fato cegos em vários sentidos, seja em relação a temas absurdos que se tornam banais, como a aceitação da violência física e verbal, extremismo e polaridade política, preconceitos, falsidades, descasos, indiferença e alienação.

Segundo Saramago, nunca fomos tão alienados quanto neste mundo midiático em que vivemos, por exercer um forte poder na formação de opiniões. O escritor faz uma comparação com o Mito da Caverna, do filósofo grego Platão, em que os indivíduos olham sombras e as confundem com a realidade. Da mesma forma, estamos na frente de televisões, computadores e celulares acreditando que estamos lidando com a realidade, muito do que surge e salta aos nossos olhos são falácias, fake news, mensagens deturpadas e moldadas com segundas intenções, muito vem como mensagens subliminares que sequer damo-nos conta da abdução, aos descuidados são meras sombras aparentemente inofensivas com seu colorido, imagens e sonorização hipnóticos direcionando a opinião e o comportamento da sociedade.

 

Vídeo com entrevista: José Saramago – O mito da caverna

https://www.youtube.com/watch?v=zGmV9A-XQgo&t=75s

https://youtu.be/zGmV9A-XQgo?t=115

 

Um dos fatores para acreditar nessa comparação é que frequentemente as notícias e informações que recebemos pela TV e internet são falsas ou tendenciosas, a situação torna-se ainda pior quando se constata que apenas as notícias extraordinárias recebem atenção, enquanto aquilo que é simples e corriqueiro (mas pode ser valioso e verdadeiro) é deixado de lado, deixado de lado pelos noticiários ou por nós mesmo que banalizamos e passamos a aceitar o inaceitável como normal, Saramago conclui, de forma pessimista, que não sabemos mais o que somos ou o que é a realidade, afinal que mundo é este que vivemos, como cegos não conseguimos mais ver a realidade.

Os pequenos detalhes cotidianos, a despeito de todo nosso avanço tecnológico, agora são imperceptíveis. O resultado final disso tudo é que não conseguimos mais estar, com nossa alma e nossa atenção, em lugar algum, antes sabíamos que abrir o mar vermelho era algo que só Deus podia fazer, com Spielberg e recentemente o metaverso, nada mais é impossível, houve uma inversão da realidade que deveria ser mais interessante passa-se para viver no metaverso que é a sombra das sombras.

A Caverna carrega uma gama de simbologias facilmente apreensível desnudando o lado socialista do autor tais como, a opressão de um sistema capitalista centralizador dominante, a burocratização das relações humanas em nome do sistema, a destruição das tradições pela evolução devoradora da tecnologia e industrialização, a robotização humana em prol da produção e consumo.

O enredo do romance concentra-se em um breve período de tempo, algumas semanas, na vida de um velho oleiro, Cipriano Algor, (ainda preso as antigas e obsoletas práticas de olaria), e alguns seres próximos a ele: a filha (Marta), o marido dela (Marçal) segurança do “Centro”, uma vizinha (Isaura) que lhe faz sentir o amor e ver na sua simplicidade e praticidade uma quebra de paradigma de igualdade de gênero, e o cachorro Achado. Ao contrário dos livros mais recentes do autor, nesse o andamento é lento e arrastado por querer fornecer detalhadas descrições do trabalho com o barro para a feitura primeiramente de utensílios domésticos e, em seguida, de bonecos artesanais, noutros momentos discorre acerca das facetas de seu cão aprofundando-se no mundo, comportamento e psicologia canina, seu relacionamento com seu dono, nada escapa ao olhar poético do autor.

O ganho de vida do oleiro está na produção de peças artesanais produzidas em sua olaria e vendidas para o “Centro” que parece um imenso shopping, seu único comprador, com a industrialização o plástico se tornou mais interessante para o consumidor e com isto as peças de louça deixaram de ser compradas culminando na perda de imediata de seu ganho de vida, diante do problema sua filha sugeriu que fabricassem bonecos para decoração a serem vendidos para o “Centro”. Em paralelo o seu genro (Marçal) que é segurança no “Centro” aguarda uma promoção para passar a ser segurança residente e assim levar para morar com ele no “Centro” a esposa e o sogro.

Saramago, habilmente trata dos conflitos pessoais e profissionais e fugazes lampejos de iluminação e esperança, alegrias, angustias e as vezes o desespero de não ter a frente perspectivas, seu trabalho que é seu único meu de subsistência ameaçado de extinção e o fantasma de ter de viver às custas do genro.

Apenas nos trechos finais -quando surge a "caverna" que dá título ao livro- a narrativa se acelera, para culminar em uma das conclusões mais bem resolvidas da obra do autor, a família já morando no “Centro” passa a se sentir angustiada pelo sentido de aprisionamento vivendo nas sombras do mundo e realidades produzidas a semelhança do mundo exterior, movido por sua curiosidade o oleiro consegue entrar na caverna descoberta no subsolo do centro e lá o que vê é a cena descrita por Platão no mito da caverna o resgata daquele mundo de sombras levando-o e aos demais em seu tempo a sair do Centro e retomar as rédeas da vida.

É um livro superinteressante, proporciona uma leitura que faz um paralelo de reflexão acerca das formas e modos culturais adotados por nossa sociedade cada vez mais dependente das ideias e ideais propostos pela mídia paga pelos poderosos processos de industrialização e capitalismo voltados para o consumo pelo consumo.

 

Fonte:

Saramago, José. 1922-2010. A caverna - 2ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2017

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Resenha do livro A Cor Purpura de Alice Walker

A primeira vez que tive contato com esta história foi a muitos anos atrás quando assisti ao filme “A Cor Púrpura” de Steven Spielberg, um dos filmes mais aclamados nos anos 80, estrelado por Whoopie Goldberg, Danny Glover e Oprah Winfrey, foi inspirado no livro de Alice Walker, muitos anos depois li o livro pela primeira vez e a poucos dias reli o livro, a história é tocante e ao mesmo tempo violenta, mostra a realidade de muitas mulheres abusadas em seu ambiente familiar, independentemente da cor da pele, infelizmente a história se repete anos após ano como uma praga mesmo com a existência da importantíssima Lei da Maria da Penha estabelecendo limites e penalidades dirigidos aos monstros que habitam muitos lares, a questão é saber se o monstro por ser monstro ciente da lei o impediria de fazer o que faz, mas ai já é outro papo. Voltemos ao livro.

 

Tanto o filme como o livro, ambos conseguem emocionar quem vê ou lê, quem lê tem a vantagem da imaginação, a história terá um colorido particular, a sensibilidade de cada um dará profundidade a luta uma constante e recorrente, seja ela física, moral ou espiritual.

Ao mesmo tempo a história é portadora de ternura, de amor e de personagens que demonstram sua capacidade de reinvenção e, sobretudo, de muito afeto, a vida de cada personagem está entrelaçada, tendo as mulheres personalidades de superação e luta, lutando cada uma a sua maneira evoluindo à medida que a vida vai lhes proporcionando vivencias e experiências que as tornaram resilientes e maduras.

 

Em 2016, o selo José Olympio republicou “A cor púrpura” de Alice Walker – um livro que marcou época quando foi publicado originalmente, na década de 80. A história foi ambientada no sul dos Estados Unidos antes da Segunda Guerra (e antes do movimento pelos direitos civis), a obra nos apresenta a vida das pessoas negras que viviam no limbo entre a escravidão e a liberdade, um povo sem terra e sem pátria, seja na África, onde nasceram e de onde vieram, seja nos Estados Unidos, onde eram considerados cidadãos de segunda classe, situação que para nós brasileiros é fato histórico bastante conhecido, infelizmente ainda há o repugnante preconceito racial.

 

A história possui pontos cruciais que a elevam de algo simples e triste a uma análise de uma época onde explicitam o feminismo intrínseco, o racismo histórico, questionamento sobre religião, gênero e o papel das mulheres na sociedade, é um retrato que traz à baila muitos aspectos até hoje alvos de lutas sociais.

 

“Celie, fala a verdade, você alguma vez encontrou Deus na igreja? Eu nunca. Eu só encontrei um bando de gente esperando ele aparecer. Se alguma vez eu senti Deus na igreja foi o Deus queu já tinha levado comigo. E eu acho que todo o pessoal também. Eles vão pra igreja para repartir Deus, não para achar Deus.”

 

O livro é um compilado de várias cartas, a maioria escrita por Celie. Celie a personagem principal endereça as cartas, no começo, para o “Querido Deus” – a única “pessoa” que ela acredita que a escutaria, escreve a Ele somente para desabafar, não pede clemencia, inclusive diz que Ele, “talvez estivesse dormindo” por não ver tudo o que estava acontecendo. É nessas cartas e em suas próprias palavras mal escritas (já que ela é semianalfabeta e escreve com dificuldade) que descobrimos que a vida de Celie, desde muito cedo, foi de tristeza e sofrimento, no decorrer da trama vai se construindo uma forte empatia com a anfitriã e muita aversão as situações de sofrimento que envolve aquelas mulheres. Celie é a mais velha entre vários irmãos, órfã de mãe, ela é constantemente estuprada pelo pai e engravida duas vezes. As duas crianças desaparecem e ela acredita que o pai matou o filho e deu a menina para alguém.

 

Celie na tentativa de proteger a irmã mais nova, sofreu constantes abusos sexuais do pai, quando sua mãe morre, o pai decide tirá-la terminantemente de casa, na tentativa de afastá-la da irmã mais nova, Nessie, dando-a em casamento para Albert, um fazendeiro da região que também cortejava sua irmã, que decide fugir em busca de uma vida diferente.

 

Celie é obrigada pelo pai a casar com o seu vizinho fazendeiro Albert, ele é um homem violento e bate nela para que ela “o obedeça”, a trata como um animal desobediente. Isso acontece até aparecer a amante que irá morar com eles, Shug Avery – uma cantora de má reputação que fica doente. O marido de Celie, Albert, é apaixonado por Shug e eles tiveram um caso e três filhos antes dele ser forçado pelo pai a casar com uma “moça de família” que é Celie. Ele traz Shug Avery para casa para que possa cuidar dela.

 

Celie tem dificuldade de reagir a esta nova situação, entre os abusos do pai e os maus tratos do marido, ela afunda na depressão, concentrada em trabalhar na roça e cuidar dos filhos do primeiro casamento de Albert, segue assim neste sofrimento, suas palavras resumem seu sentimento:

“Mas eu num sei como brigar. Tudo o queu sei fazer é cuntinuar viva.”

A situação e reação de Celie surpreendentemente começam a mudar com a chegada de Avery Shug, a amante de Albert. No começo, as duas se estranham. Avery diz para Celie que “ela é mesmo feia”, e Celie se sente pouco à vontade em sua insignificância perto da exuberância de Shug, que emana rebeldia, alta autoestima, segurança e decisão, ela representa tudo que Celie não é.

A relação entre as duas se torna mais próxima, inclusive se tornam amigas, uma se apoia na outra, Shug vai contribuir para a reviravolta na vida de Celie, lhe garantindo autonomia e independência, esse caminho tortuoso, torna a leitura mais empolgante a cada passo dado por Celie em direção à autonomia e liberdade, felicidade é outra coisa que levará muito tempo para ela conquistar, pois as marcas em sua vida são muito profundas, vem desde sua infância até a idade adulta.

 

Ela falou, Dona Celie, é melhor você falar baixo. Deus pode escutar você. Deixa ele escutar, eu falei. Se ele alguma vez escutasse uma pobre mulher negra o mundo seria um lugar bem diferente, eu posso garantir.

 

Toda minha vida eu tive que brigar. Eu tive que brigar com meu pai. Tive que brigar com meus irmão. Tive que brigar com meus primo e meus tio. Uma criança mulher num tá sigura numa família de homem. Mas eu nunca pensei que ia ter que brigar na minha própria casa.” (Celie transcrevendo fala de Sofia)

 

Os demais personagens também são importantes contam boas histórias, simbolizando cada um a embates específicos. Em seu entorno, os negros também sofrem preconceito de raça. Aqueles que ousam se levantar, como Sofia, a esposa de um dos filhos de Albert, acabam tendo um destino ainda pior. Sofia, que não aceitou as agressões gratuitas da esposa do prefeito e a agrediu, acabou atrás das grades, em uma prisão de condições subumanas, que quase a mataram, ficando com graves sequelas.

Trata-se de uma leitura cativante e emocionante, o que fica ao final é uma lição de amor, e também uma sensação de mais narrativas de momentos de felicidade na vida Celie, pois é muito tempo narrando sofrimento, no entanto os sofrimentos foram duras lições na vida de Celie, que aprende a amar a si mesma e aos outros, como após o aprendizado tivesse uma segunda chance, numa outra caminhada, até mesmo Albert tem uma segunda chance, quando fica sozinho e tem que aprender, aos trancos e barrancos, como se cuidar.

 

Fonte:

Walker, Alice. A cor púrpura; tradução Betúlia Machado , Maria José Silveira, Peg Bodelson. - 1. ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.