Quando o feio arrepia e o bonito não basta
Outro
dia, no meio de um engarrafamento, o céu ficou de um roxo esverdeado, com
nuvens espessas e rasgadas, como se algo do além estivesse prestes a acontecer.
As buzinas não importavam mais. Durante aqueles segundos, o mundo parou. Não
porque era belo, mas porque era intenso. Aquilo era o sublime, me dei conta
depois. Uma força quase violenta, que nos tira o chão e faz o coração se
comportar como se estivesse diante do fim – ou de Deus.
A
estética, esse ramo da filosofia que trata da sensibilidade, sempre teve uma
quedinha por classificar o mundo em bonito e feio. Mas entre essas categorias,
há uma fenda antiga, um abismo onde o pensamento cai e treme: é o sublime.
O
belo: harmonia que conforta
O
belo, segundo a tradição clássica, é aquilo que agrada sem surpresa. Tem
simetria, proporção, medida. Aristóteles e Platão já discutiam o belo como um
reflexo da ordem ideal. O rosto simétrico, a música com acordes esperados, a
paisagem bucólica com vaquinhas no campo. O belo reconcilia, organiza, dá um
certo alívio à existência. A arte bela é aquela que a gente consegue pôr numa
moldura e pendurar na sala.
Kant
diria que o belo é o que agrada universalmente sem conceito. Ou seja, você não
precisa explicar por que uma flor é bonita – você simplesmente sente. E nesse
sentir há uma paz, uma suspensão temporária do conflito interno. O belo nos
lembra que há uma lógica possível para a vida.
O
sublime: quando o sensível nos excede
Mas
aí vem o sublime, esse intruso na festa do belo. Kant também falou dele, mas
com outro tom. O sublime não é o que agrada, é o que abala. Montanhas
gigantescas, tempestades em alto-mar, uma catedral gótica com vitrais que
parecem estourar o teto. O sublime é o que excede a nossa capacidade de
apreensão imediata. É o sentimento de pequenez diante de algo que nos
atravessa.
E
antes de Kant, quem deu um empurrão definitivo nessa distinção foi Edmund
Burke, no seu tratado "Investigação filosófica sobre a origem de nossas
ideias do sublime e do belo" (1757). Para Burke, o belo está ligado ao
amor, à delicadeza e à harmonia. Já o sublime está ligado ao medo –
principalmente o medo do poder, da dor e da morte. Mas é um medo que encanta. O
sublime, segundo ele, surge quando somos tomados por uma sensação de ameaça
distante, segura o bastante para que a gente sinta prazer no pavor. Burke foi
ousado ao afirmar que o que realmente nos arrebata não é o que nos agrada, mas
o que nos amedronta e nos deixa sem palavras.
O
sublime moderno: cinema, ruínas e explosões
Hoje,
o sublime se esconde onde menos se espera. Um filme como 2001: Uma Odisseia no
Espaço nos lança nessa vertigem estética. Há momentos em que não entendemos
nada e, ainda assim, ficamos hipnotizados. A explosão de uma estrela em imagens
da NASA, um terremoto, ou mesmo uma cena de rua capturada por um fotógrafo
anônimo – tudo isso pode carregar uma força sublime.
As
ruínas de uma cidade abandonada também são sublimes: mostram que o tempo vence,
que o que achamos sólido é frágil. Há algo de sublime também no silêncio diante
da morte, naquela angústia sem resposta. O sublime nos obriga a sair do script.
Filosofia
e vida: por que precisamos dos dois?
A
estética do sublime nos salva da normose – essa doença do normal que anestesia
a alma. Já o belo nos oferece o necessário descanso depois do abalo. Uma vida
apenas bela se torna entediante; uma vida apenas sublime seria insuportável.
Nietzsche,
embora não usasse esses termos com frequência, provavelmente simpatizaria mais
com o sublime. Ele falava da necessidade do caos para gerar uma estrela
dançante. Já Simone Weil, em outro registro, diria que o sofrimento (e, com
ele, o sublime) nos coloca em contato com o real – aquele que não pode ser
decorado com florzinhas.
Então,
no fim das contas, talvez a vida seja isso: um passeio entre o espanto e o
encanto. Entre o que nos reconforta e o que nos desestabiliza. O sublime nos
lembra da grandeza que nos escapa; o belo, da beleza que nos habita. E entre um
e outro, vamos vivendo – e tentando entender por que o céu às vezes fica roxo e
a gente chora sem saber o motivo.