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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Freio do Espanto

Já se perguntou por que paramos para ver um acidente?

Outro dia, indo para o trabalho, o trânsito na avenida principal parou de repente. Não era semáforo, nem blitz, nem buraco na pista. Era um corpo. Estendido no asfalto, cercado de cones, olhares e celulares. Os carros à frente diminuíram a marcha. Alguns motoristas encostaram. Outros apenas reduziram o suficiente para inclinar o pescoço, esticar os olhos, captar o detalhe: o estado da moto, a posição do corpo, se ainda respirava. A cena era silenciosa, embora tudo ao redor continuasse ruidoso. Como se, por alguns metros, entrássemos numa cápsula onde o tempo hesita.

Decidi escrever sobre isso não para julgar o comportamento, mas para pensar com ele. O impulso de olhar um acidente é tão comum quanto incômodo. Ele carrega algo de profundamente humano — e também algo de perigoso. Ao refletir sobre essa cena, me parece que ela revela mais sobre nós do que gostaríamos de admitir: nossos medos, nossos desejos, nossa maneira de lidar com a dor alheia. E escrever é uma forma de transformar esse incômodo em pensamento.

A curiosidade que dói

O primeiro impulso que sentimos diante do inusitado é olhar. Ver para crer. Ver para entender. O acidente interrompe o cotidiano. Ele rasga a rotina com um grito mudo. E nesse corte da normalidade, a curiosidade humana encontra espaço.

Aristóteles dizia, já na Metafísica, que “todos os homens têm, por natureza, o desejo de saber”. Mas esse saber não se limita ao que é nobre ou racional. Também queremos saber o que dói, o que choca, o que assusta. O acidente é uma pergunta aberta: o que houve aqui? — e também: poderia ser comigo?

A dor do outro como espetáculo

Walter Benjamin, filósofo alemão, nos alertava sobre como a modernidade transforma acontecimentos em “experiências empobrecidas”, facilmente consumidas e rapidamente descartadas. A cena do acidente, muitas vezes, é consumida assim: com olhos famintos e coração distraído.

A filósofa Susan Sontag, em Diante da dor dos outros, vai além: ela mostra como as imagens de sofrimento tendem a anestesiar, em vez de mobilizar. Ver demais pode nos fazer sentir menos. Quando o sofrimento se transforma em conteúdo — uma imagem, uma manchete, um story — corremos o risco de esquecer que há alguém real, com nome, vida, vínculos, deitado no asfalto.

E mesmo quem não filma, mas apenas olha, participa de certa maneira desse ritual. É um “olhar suspenso”: ao mesmo tempo solidário e mórbido, aflito e fascinado. Porque olhar é também uma forma de buscar segurança — “ainda não foi comigo” — e, às vezes, uma tentativa estranha de se conectar com o trágico.

Um espelho breve

Há quem diga que, ao ver o acidente, sentimos empatia. Talvez. Mas também é possível que vejamos ali o próprio abismo. A fragilidade do corpo. A imprevisibilidade da vida. O corte na semana, na agenda, na rotina. Olhar para o acidente é, às vezes, como encarar um espelho rachado: vemos o que pode se quebrar em nós.

O pensador francês Georges Didi-Huberman lembra que “ver é, antes de tudo, ser atingido”. E, de fato, não se sai ileso de uma cena dessas — mesmo como espectador. O incômodo permanece. A imagem volta durante o almoço, nos atravessa no banho, ressurge antes de dormir. Há algo no acidente que continua reverberando em silêncio.

Por que refletir sobre isso?

Porque o hábito de olhar o acidente, se não for examinado, pode nos transformar. Pode nos tornar espectadores passivos do sofrimento do outro. Pode fazer com que a dor vire só mais uma parada no caminho, um “conteúdo forte” para contar no trabalho ou comentar no grupo de WhatsApp.

Pensar sobre isso é um jeito de resgatar a humanidade por trás do hábito. De perguntar: o que faço com o que vejo? Olhar pode ser gesto de cuidado, de testemunho, de indignação. Mas também pode ser o contrário. E só refletindo é que aprendemos a distinguir.

No fundo, talvez seja isso: quando o trânsito para por causa de um acidente, não é só o carro que freia. É a alma que hesita. E esse instante — esse breve espanto — merece ser olhado com mais atenção do que a cena na pista.


domingo, 20 de abril de 2025

Sublime e Belo

 

Quando o feio arrepia e o bonito não basta

Outro dia, no meio de um engarrafamento, o céu ficou de um roxo esverdeado, com nuvens espessas e rasgadas, como se algo do além estivesse prestes a acontecer. As buzinas não importavam mais. Durante aqueles segundos, o mundo parou. Não porque era belo, mas porque era intenso. Aquilo era o sublime, me dei conta depois. Uma força quase violenta, que nos tira o chão e faz o coração se comportar como se estivesse diante do fim – ou de Deus.

A estética, esse ramo da filosofia que trata da sensibilidade, sempre teve uma quedinha por classificar o mundo em bonito e feio. Mas entre essas categorias, há uma fenda antiga, um abismo onde o pensamento cai e treme: é o sublime.

O belo: harmonia que conforta

O belo, segundo a tradição clássica, é aquilo que agrada sem surpresa. Tem simetria, proporção, medida. Aristóteles e Platão já discutiam o belo como um reflexo da ordem ideal. O rosto simétrico, a música com acordes esperados, a paisagem bucólica com vaquinhas no campo. O belo reconcilia, organiza, dá um certo alívio à existência. A arte bela é aquela que a gente consegue pôr numa moldura e pendurar na sala.

Kant diria que o belo é o que agrada universalmente sem conceito. Ou seja, você não precisa explicar por que uma flor é bonita – você simplesmente sente. E nesse sentir há uma paz, uma suspensão temporária do conflito interno. O belo nos lembra que há uma lógica possível para a vida.

O sublime: quando o sensível nos excede

Mas aí vem o sublime, esse intruso na festa do belo. Kant também falou dele, mas com outro tom. O sublime não é o que agrada, é o que abala. Montanhas gigantescas, tempestades em alto-mar, uma catedral gótica com vitrais que parecem estourar o teto. O sublime é o que excede a nossa capacidade de apreensão imediata. É o sentimento de pequenez diante de algo que nos atravessa.

E antes de Kant, quem deu um empurrão definitivo nessa distinção foi Edmund Burke, no seu tratado "Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo" (1757). Para Burke, o belo está ligado ao amor, à delicadeza e à harmonia. Já o sublime está ligado ao medo – principalmente o medo do poder, da dor e da morte. Mas é um medo que encanta. O sublime, segundo ele, surge quando somos tomados por uma sensação de ameaça distante, segura o bastante para que a gente sinta prazer no pavor. Burke foi ousado ao afirmar que o que realmente nos arrebata não é o que nos agrada, mas o que nos amedronta e nos deixa sem palavras.

O sublime moderno: cinema, ruínas e explosões

Hoje, o sublime se esconde onde menos se espera. Um filme como 2001: Uma Odisseia no Espaço nos lança nessa vertigem estética. Há momentos em que não entendemos nada e, ainda assim, ficamos hipnotizados. A explosão de uma estrela em imagens da NASA, um terremoto, ou mesmo uma cena de rua capturada por um fotógrafo anônimo – tudo isso pode carregar uma força sublime.

As ruínas de uma cidade abandonada também são sublimes: mostram que o tempo vence, que o que achamos sólido é frágil. Há algo de sublime também no silêncio diante da morte, naquela angústia sem resposta. O sublime nos obriga a sair do script.

Filosofia e vida: por que precisamos dos dois?

A estética do sublime nos salva da normose – essa doença do normal que anestesia a alma. Já o belo nos oferece o necessário descanso depois do abalo. Uma vida apenas bela se torna entediante; uma vida apenas sublime seria insuportável.

Nietzsche, embora não usasse esses termos com frequência, provavelmente simpatizaria mais com o sublime. Ele falava da necessidade do caos para gerar uma estrela dançante. Já Simone Weil, em outro registro, diria que o sofrimento (e, com ele, o sublime) nos coloca em contato com o real – aquele que não pode ser decorado com florzinhas.

Então, no fim das contas, talvez a vida seja isso: um passeio entre o espanto e o encanto. Entre o que nos reconforta e o que nos desestabiliza. O sublime nos lembra da grandeza que nos escapa; o belo, da beleza que nos habita. E entre um e outro, vamos vivendo – e tentando entender por que o céu às vezes fica roxo e a gente chora sem saber o motivo.