Já se perguntou por que paramos para ver um acidente?
Outro
dia, indo para o trabalho, o trânsito na avenida principal parou de repente.
Não era semáforo, nem blitz, nem buraco na pista. Era um corpo. Estendido no
asfalto, cercado de cones, olhares e celulares. Os carros à frente diminuíram a
marcha. Alguns motoristas encostaram. Outros apenas reduziram o suficiente para
inclinar o pescoço, esticar os olhos, captar o detalhe: o estado da moto, a
posição do corpo, se ainda respirava. A cena era silenciosa, embora tudo ao
redor continuasse ruidoso. Como se, por alguns metros, entrássemos numa cápsula
onde o tempo hesita.
Decidi
escrever sobre isso não para julgar o comportamento, mas para pensar com ele. O
impulso de olhar um acidente é tão comum quanto incômodo. Ele carrega algo de
profundamente humano — e também algo de perigoso. Ao refletir sobre essa cena,
me parece que ela revela mais sobre nós do que gostaríamos de admitir: nossos
medos, nossos desejos, nossa maneira de lidar com a dor alheia. E escrever é
uma forma de transformar esse incômodo em pensamento.
A
curiosidade que dói
O
primeiro impulso que sentimos diante do inusitado é olhar. Ver para crer. Ver
para entender. O acidente interrompe o cotidiano. Ele rasga a rotina com um
grito mudo. E nesse corte da normalidade, a curiosidade humana encontra espaço.
Aristóteles
dizia, já na Metafísica, que “todos os homens têm, por natureza, o
desejo de saber”. Mas esse saber não se limita ao que é nobre ou racional.
Também queremos saber o que dói, o que choca, o que assusta. O acidente é uma
pergunta aberta: o que houve aqui? — e também: poderia ser comigo?
A
dor do outro como espetáculo
Walter
Benjamin, filósofo alemão, nos alertava sobre como a modernidade transforma
acontecimentos em “experiências empobrecidas”, facilmente consumidas e
rapidamente descartadas. A cena do acidente, muitas vezes, é consumida assim:
com olhos famintos e coração distraído.
A
filósofa Susan Sontag, em Diante da dor dos outros, vai além: ela mostra
como as imagens de sofrimento tendem a anestesiar, em vez de mobilizar. Ver
demais pode nos fazer sentir menos. Quando o sofrimento se transforma em
conteúdo — uma imagem, uma manchete, um story — corremos o risco de esquecer
que há alguém real, com nome, vida, vínculos, deitado no asfalto.
E
mesmo quem não filma, mas apenas olha, participa de certa maneira desse ritual.
É um “olhar suspenso”: ao mesmo tempo solidário e mórbido, aflito e fascinado.
Porque olhar é também uma forma de buscar segurança — “ainda não foi comigo” —
e, às vezes, uma tentativa estranha de se conectar com o trágico.
Um
espelho breve
Há
quem diga que, ao ver o acidente, sentimos empatia. Talvez. Mas também é
possível que vejamos ali o próprio abismo. A fragilidade do corpo. A
imprevisibilidade da vida. O corte na semana, na agenda, na rotina. Olhar para
o acidente é, às vezes, como encarar um espelho rachado: vemos o que pode se
quebrar em nós.
O
pensador francês Georges Didi-Huberman lembra que “ver é, antes de tudo, ser
atingido”. E, de fato, não se sai ileso de uma cena dessas — mesmo como
espectador. O incômodo permanece. A imagem volta durante o almoço, nos
atravessa no banho, ressurge antes de dormir. Há algo no acidente que continua
reverberando em silêncio.
Por
que refletir sobre isso?
Porque
o hábito de olhar o acidente, se não for examinado, pode nos transformar. Pode
nos tornar espectadores passivos do sofrimento do outro. Pode fazer com que a
dor vire só mais uma parada no caminho, um “conteúdo forte” para contar no
trabalho ou comentar no grupo de WhatsApp.
Pensar
sobre isso é um jeito de resgatar a humanidade por trás do hábito. De
perguntar: o que faço com o que vejo? Olhar pode ser gesto de cuidado, de
testemunho, de indignação. Mas também pode ser o contrário. E só refletindo é
que aprendemos a distinguir.
No
fundo, talvez seja isso: quando o trânsito para por causa de um acidente, não é
só o carro que freia. É a alma que hesita. E esse instante — esse breve espanto
— merece ser olhado com mais atenção do que a cena na pista.