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segunda-feira, 12 de maio de 2025

Suposições

As trincas por onde a luz entra...

Outro dia, numa conversa entre amigos, alguém disse: “Isso é só uma suposição tua.” E aquilo ficou ressoando na minha cabeça. Suposição... essa palavra meio desvalorizada, tratada como inimiga da certeza. Mas e se as suposições fossem justamente o oposto do que pensamos? E se elas fossem não falhas, mas fendas? Não erros, mas aberturas? Comecei a olhar para elas como quem examina as rachaduras de uma parede antiga — não para consertá-las, mas para ver que talvez seja por ali que a luz entra.

No fundo, toda pergunta começa com uma suposição. Antes de saber algo, é preciso supor que algo possa ser sabido. E mais: supor que vale a pena saber. Toda busca, toda dúvida, todo caminho novo que nos tira do automático parte de uma pequena centelha supositiva — uma faísca que diz: “E se...?”

Nietzsche dizia que “não há fatos, apenas interpretações”. E o que é uma interpretação, senão uma suposição cultivada com método, emoção ou intuição? O problema não é supor. O problema é parar de supor. Quando paramos de fazer suposições, entramos naquilo que alguns chamam de “convicção”, mas que, muitas vezes, é só um jeito mais elegante de chamar a rigidez.

A criança supõe o tempo todo. Ela acha que o armário pode ter um mundo escondido dentro. Supõe que o gato da vizinha é mágico. Supõe que o amanhã vai ser diferente. Isso não é ingenuidade — é imaginação operando em alta voltagem. O adulto, ao contrário, aprende a esmagar as suposições com a pá do “bom senso”. Mas veja que curioso: é quando o adulto volta a supor, como o artista, o filósofo ou o cientista, que ele volta a fazer descobertas.

Supor é uma forma de humildade ativa. É reconhecer que não sabemos, mas suspeitamos. E é nessa suspeita que o pensamento se move. A suposição não é um erro: é o risco do pensamento em movimento. Quem só aceita o que está provado já ficou para trás — porque a verdade, como a luz, muitas vezes chega pelas trincas, não pela porta da frente.

Em tempos de certezas gritadas, supor é quase um ato subversivo. Enquanto tudo ao redor exige opinião formada, discurso pronto, convicção blindada, o supositório filosófico (não confundir com o remédio!) é um antídoto contra a arrogância do saber. É ele que permite a pergunta que ainda não sabemos fazer. É ele que nos abre para o outro, para o novo, para o inesperado.

Suposições são rachaduras existenciais por onde o inusitado pode escapar do escuro. São pequenas frestas que mantêm a mente arejada e o espírito curioso. Não se trata de crer em qualquer coisa, mas de manter o espaço interno em que algo ainda possa ser crido. Como disse Leonard Cohen, “é pela rachadura que a luz entra”. E, talvez, seja pela suposição que o real se reinventa.

Aqui vai um comentário de Merleau-Ponty, filósofo francês da fenomenologia. Ele escreveu:

"A verdade não habita no homem interior, nem está só fora dele; ela nasce entre os homens, como um esforço para comunicar-se."

Ao pensarmos nisso, percebemos que a suposição é justamente esse “entre”. Não é o saber que está consolidado dentro de nós, nem a evidência concreta do mundo lá fora — é o movimento que nasce entre, no espaço ambíguo da possibilidade. Supor é já se dirigir ao outro, ao mundo, a si mesmo transformado, em um gesto de escuta. A suposição, nesse sentido, é menos um erro do que uma abertura para a experiência.

Merleau-Ponty diria que a suposição carrega em si um corpo — porque ela se dá no mundo vivido, na carne da experiência. E talvez por isso, supor não é apenas pensar: é viver com a disposição de quem sabe que a verdade não é um ponto fixo, mas um campo em construção. Um campo em que cada suposição pode se tornar ponte, e não obstáculo.

Você já teve uma ideia atravessada no peito: tudo o que penso saber começou como suposição.

Não como certeza, não como dado técnico, nem como fórmula química. Mas como aquele pensamento bobo que aparece no banho: e se o que disseram não for bem assim? E se não for isso, e se for outra coisa, e se eu estiver vendo tudo torto — ou certo demais?

Tem dia que a realidade parece dura como concreto. Mas aí vem uma suposição e faz um trinco. Um fiapinho de dúvida, de delírio, de desejo. Pronto: já não estamos mais no mesmo lugar. Uma suposição é como virar o rosto só um centímetro e enxergar um canto de mundo que antes estava escondido.

Não, a suposição não é uma fraqueza. É um poder secreto. Um gesto de desconfiança do óbvio. Ela é o que resta da infância em nós: a coragem de achar que o impossível pode estar só dormindo.

Tem quem viva com cimento no pensamento. Tudo sólido, tudo pronto, tudo guardado em pastas. Mas aí chega a suposição, esse sopro que bagunça as gavetas, essa corrente de ar que entra por debaixo da porta e pergunta: tem certeza?

A suposição é uma visita. Ela não pede licença, mas também não invade. Fica ali no canto da sala mental, olhando tudo com uma sobrancelha arqueada. Às vezes vai embora, às vezes fica. Às vezes vira ideia. Outras vezes vira caminho.

Talvez por isso, Platão desconfiava da imaginação. E Merleau-Ponty — como já te contei — abraçava a ambiguidade. Ele entendia que a verdade não tem endereço fixo. Ela dança. E só quem supõe aprende os passos.

“O mundo não é o que eu penso, mas o que eu vivo.” — disse ele.

Então, viver é supor. Supor que vale a pena. Supor que vai dar certo. Supor que o outro sente como eu. Supor que amanhã a gente acorda um pouco menos endurecido. Supor que há beleza onde ninguém mais procura. Supor que esse texto faça sentido pra alguém, mesmo que não pra todos.

Porque no fim, a suposição é só isso: um clarão num corredor escuro. Nem luz inteira, nem breu completo. Só o suficiente pra dar o próximo passo.