As trincas por onde a luz entra...
Outro
dia, numa conversa entre amigos, alguém disse: “Isso é só uma suposição
tua.” E aquilo ficou ressoando na minha cabeça. Suposição... essa palavra
meio desvalorizada, tratada como inimiga da certeza. Mas e se as suposições
fossem justamente o oposto do que pensamos? E se elas fossem não falhas, mas
fendas? Não erros, mas aberturas? Comecei a olhar para elas como quem examina
as rachaduras de uma parede antiga — não para consertá-las, mas para ver que
talvez seja por ali que a luz entra.
No
fundo, toda pergunta começa com uma suposição. Antes de saber algo, é preciso supor
que algo possa ser sabido. E mais: supor que vale a pena saber. Toda busca,
toda dúvida, todo caminho novo que nos tira do automático parte de uma pequena
centelha supositiva — uma faísca que diz: “E se...?”
Nietzsche
dizia que “não há fatos, apenas interpretações”. E o que é uma interpretação,
senão uma suposição cultivada com método, emoção ou intuição? O problema não é
supor. O problema é parar de supor. Quando paramos de fazer suposições,
entramos naquilo que alguns chamam de “convicção”, mas que, muitas vezes, é só
um jeito mais elegante de chamar a rigidez.
A
criança supõe o tempo todo. Ela acha que o armário pode ter um mundo escondido
dentro. Supõe que o gato da vizinha é mágico. Supõe que o amanhã vai ser
diferente. Isso não é ingenuidade — é imaginação operando em alta voltagem. O
adulto, ao contrário, aprende a esmagar as suposições com a pá do “bom senso”.
Mas veja que curioso: é quando o adulto volta a supor, como o artista, o
filósofo ou o cientista, que ele volta a fazer descobertas.
Supor
é uma forma de humildade ativa. É reconhecer que não sabemos, mas suspeitamos.
E é nessa suspeita que o pensamento se move. A suposição não é um erro: é o
risco do pensamento em movimento. Quem só aceita o que está provado já ficou
para trás — porque a verdade, como a luz, muitas vezes chega pelas trincas, não
pela porta da frente.
Em
tempos de certezas gritadas, supor é quase um ato subversivo. Enquanto tudo ao
redor exige opinião formada, discurso pronto, convicção blindada, o supositório
filosófico (não confundir com o remédio!) é um antídoto contra a arrogância do
saber. É ele que permite a pergunta que ainda não sabemos fazer. É ele que nos
abre para o outro, para o novo, para o inesperado.
Suposições
são rachaduras existenciais por onde o inusitado pode escapar do escuro. São
pequenas frestas que mantêm a mente arejada e o espírito curioso. Não se trata
de crer em qualquer coisa, mas de manter o espaço interno em que algo ainda possa
ser crido. Como disse Leonard Cohen, “é pela rachadura que a luz entra”. E,
talvez, seja pela suposição que o real se reinventa.
Aqui
vai um comentário de Merleau-Ponty, filósofo francês da fenomenologia.
Ele escreveu:
"A
verdade não habita no homem interior, nem está só fora dele; ela nasce entre os
homens, como um esforço para comunicar-se."
Ao
pensarmos nisso, percebemos que a suposição é justamente esse “entre”. Não é o
saber que está consolidado dentro de nós, nem a evidência concreta do mundo lá
fora — é o movimento que nasce entre, no espaço ambíguo da
possibilidade. Supor é já se dirigir ao outro, ao mundo, a si mesmo
transformado, em um gesto de escuta. A suposição, nesse sentido, é menos um
erro do que uma abertura para a experiência.
Merleau-Ponty
diria que a suposição carrega em si um corpo — porque ela se dá no mundo
vivido, na carne da experiência. E talvez por isso, supor não é apenas pensar:
é viver com a disposição de quem sabe que a verdade não é um ponto fixo, mas um
campo em construção. Um campo em que cada suposição pode se tornar ponte, e não
obstáculo.
Você
já teve uma ideia atravessada no peito: tudo o que penso saber começou como
suposição.
Não
como certeza, não como dado técnico, nem como fórmula química. Mas como aquele
pensamento bobo que aparece no banho: e se o que disseram não for bem assim?
E se não for isso, e se for outra coisa, e se eu estiver vendo tudo torto — ou
certo demais?
Tem
dia que a realidade parece dura como concreto. Mas aí vem uma suposição e faz
um trinco. Um fiapinho de dúvida, de delírio, de desejo. Pronto: já não estamos
mais no mesmo lugar. Uma suposição é como virar o rosto só um centímetro e
enxergar um canto de mundo que antes estava escondido.
Não,
a suposição não é uma fraqueza. É um poder secreto. Um gesto de desconfiança do
óbvio. Ela é o que resta da infância em nós: a coragem de achar que o
impossível pode estar só dormindo.
Tem
quem viva com cimento no pensamento. Tudo sólido, tudo pronto, tudo guardado em
pastas. Mas aí chega a suposição, esse sopro que bagunça as gavetas, essa
corrente de ar que entra por debaixo da porta e pergunta: tem certeza?
A
suposição é uma visita. Ela não pede licença, mas também não invade. Fica ali
no canto da sala mental, olhando tudo com uma sobrancelha arqueada. Às vezes
vai embora, às vezes fica. Às vezes vira ideia. Outras vezes vira caminho.
Talvez
por isso, Platão desconfiava da imaginação. E Merleau-Ponty — como já te contei
— abraçava a ambiguidade. Ele entendia que a verdade não tem endereço fixo. Ela
dança. E só quem supõe aprende os passos.
“O
mundo não é o que eu penso, mas o que eu vivo.”
— disse ele.
Então, viver é supor. Supor que vale a pena. Supor que vai dar certo. Supor que o outro sente como eu. Supor que amanhã a gente acorda um pouco menos endurecido. Supor que há beleza onde ninguém mais procura. Supor que esse texto faça sentido pra alguém, mesmo que não pra todos.
Porque no fim, a suposição é só isso: um clarão num corredor escuro. Nem luz inteira, nem breu completo. Só o suficiente pra dar o próximo passo.