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sábado, 19 de julho de 2025

Sentido Esquecido


Um ensaio sobre a perda de direção no mundo contemporâneo

Tem dias em que a gente acorda e tudo parece funcionar bem: o café está quente, o celular carrega, as notificações pulam na tela. O dia começa. Mas, lá no fundo, algo parece fora do lugar. Um incômodo leve — como uma pedra no sapato da alma. Está tudo certo… mas nada está bem.

Essa sensação é mais comum do que parece. E não é frescura moderna. É um sintoma. Um indício de que talvez estejamos perdendo algo essencial: o sentido. Não o sentido da vida como pergunta grandiosa e inalcançável, mas o sentido cotidiano, aquele que organiza o que fazemos, escolhemos e amamos.

Vivemos, mas para quê?

A pressa que esvazia

No tempo das redes e da produtividade, ninguém mais tem tempo de perguntar por que está correndo tanto. E mais: nem coragem. Questionar demais dá medo, porque podemos descobrir que estamos vivendo a vida de outro — ou nenhuma em especial.

Estamos ocupados demais para pensar. Produzimos, entregamos, performamos. Como diz Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano que vive na Alemanha, entramos na era da autoexploração voluntária. Somos os algozes e as vítimas de nós mesmos. Trabalhamos como se fôssemos máquinas otimistas que nunca quebram — até quebrarmos.

Essa engrenagem precisa que a gente não pense. Pensar atrapalha o desempenho. E mais perigoso ainda: pensar pode gerar vontade de mudar.

O vazio decorado

A sociedade atual decorou o vazio. Tornou-o instagramável. Disfarçou a falta de sentido com filtros, metas, mantras de autoajuda e recompensas instantâneas. É um vazio bonito, organizado, motivado — mas ainda assim vazio.

Falta algo que conecte nossas ações a uma ideia de valor. Valor, aqui, não é preço. É propósito. Um tipo de alicerce invisível que sustenta os porquês.

Nietzsche já nos alertava: matar Deus (no sentido simbólico, ou seja, perder as referências maiores) não nos torna livres — nos lança no deserto. Um deserto ético, emocional, espiritual. Sem bússola, tudo vira areia.

A volta da filosofia prática

Diante disso, uma proposta ousada: trazer a filosofia de volta para o cotidiano. E não como luxo acadêmico, mas como instrumento de sobrevivência. Perguntas como “o que é uma vida boa?”, “o que me move?” ou “o que vale a pena?” precisam voltar para a mesa do café, para os corredores do trabalho, para os grupos de WhatsApp.

Precisamos reaprender a pensar. E pensar junto. Porque o sentido não nasce do ego isolado — ele floresce no encontro: com o outro, com o mundo, com algo maior do que a própria agenda pessoal.

Um novo começo

Não se trata de negar a técnica, nem fugir da modernidade. Mas de recuperar o humano dentro do mundo técnico. De voltar a valorizar o invisível: o cuidado, o silêncio, a amizade, o tempo lento.

O “sentido esquecido” não está perdido para sempre. Está apenas soterrado — sob metas, algoritmos e distrações. Recuperá-lo exige uma pequena coragem: parar. E perguntar. Só isso já é revolucionário.

Talvez a pergunta mais urgente do nosso tempo não seja “o que vamos fazer com o mundo?”, mas “o que o mundo está fazendo com a gente?”. E se a resposta for desconfortável, ótimo. Porque é do desconforto que nasce o verdadeiro pensamento.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Animais Históricos


Outro dia, ao passar por uma antiga praça da cidade, fiquei observando um velho monumento que mal chamava atenção. As letras esculpidas estavam gastas, o bronze tinha virado verde, e poucos paravam para olhar. Pensei em como esse pedaço de pedra e metal, aparentemente sem vida, carrega camadas de histórias que moldaram o mundo que conhecemos. E aí veio a reflexão: somos animais históricos. Não apenas porque deixamos rastros no tempo, mas porque nossa própria existência é marcada pela memória, pelos erros e pelos acertos de quem veio antes.

O que nos diferencia dos outros animais é justamente essa capacidade de olhar para trás, aprender com o passado e imaginar futuros. Mas será que fazemos isso bem? Muitas vezes, nos comportamos como se estivéssemos presos a um eterno presente, ignorando a densidade histórica que nos constitui. É fácil esquecer que o café que tomamos, a roupa que vestimos e as palavras que falamos carregam o peso (e a leveza) de séculos de interações humanas.

O peso da história em nossos ombros

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu sobre o conceito de "peso histórico" em sua obra Considerações Extemporâneas. Ele nos alerta para os perigos de tanto lembrar quanto esquecer o passado. De um lado, há o risco de ficarmos paralisados, vivendo como se tudo já tivesse sido decidido, como se não houvesse espaço para a novidade. De outro, a amnésia histórica nos condena a repetir os mesmos erros, como alguém que tenta atravessar um labirinto sem prestar atenção ao caminho já percorrido.

Somos, então, como equilibristas. Precisamos aprender a carregar a história sem que ela nos esmague, encontrando maneiras de reinventá-la para que não sejamos prisioneiros dela.

A história nas pequenas coisas

Mas a história não está apenas nos grandes eventos ou nos livros escolares. Ela vive nos detalhes do cotidiano. Quando uma avó ensina uma receita para a neta, há história ali. Quando alguém decide preservar uma língua indígena ou um costume familiar, está se conectando a algo maior. Até mesmo na forma como narramos nossas vidas, criando linhas do tempo pessoais, estamos reafirmando nossa natureza histórica.

Pense, por exemplo, em uma amizade. Toda relação tem um "histórico", momentos que definem os caminhos e as curvas que ela toma. Sem essa dimensão do tempo, tudo seria vazio, superficial. Somos históricos porque, mesmo quando não percebemos, estamos construindo narrativas, tecendo significados que só fazem sentido dentro de uma linha do tempo.

A responsabilidade de sermos históricos

Ser animal histórico também é assumir uma responsabilidade. Cada escolha que fazemos deixa marcas. Nosso impacto no meio ambiente, nossas decisões políticas, a forma como educamos as próximas gerações — tudo isso molda o futuro. Por isso, é essencial termos uma relação consciente com o passado.

O filósofo brasileiro Leandro Konder dizia que a história não é algo que simplesmente nos acontece, mas algo que também criamos, a cada dia, com nossas ações e omissões. Somos protagonistas e, ao mesmo tempo, herdeiros de tudo o que já foi feito.

Transformar história em consciência

Sermos animais históricos é, antes de tudo, sermos seres de memória, imaginação e transformação. Carregamos a história no corpo, nas palavras e nas escolhas. A grande questão é: o que estamos fazendo com isso? Estamos apenas repetindo roteiros antigos ou criando novas narrativas?

Enquanto refletia sobre o velho monumento na praça, percebi que ele não era apenas um pedaço de passado esquecido. Ele era um convite a lembrar, a reinterpretar e a seguir em frente com mais consciência. Talvez, no fundo, seja isso que significa ser um animal histórico: sermos os guardiões e os escritores de uma história que nunca termina.