Quando o jeito de ser vira lei
Já
parou para pensar por que, em certos grupos, um jeito de falar, vestir, agir ou
até mesmo pensar parece “natural”, enquanto outros modos são vistos como
estranhos ou errados? Por que certas ideias, valores e estilos de vida dominam
a cena social, como se fossem a única forma “correta” de existir?
É
aqui que entram dois conceitos poderosos — éthos e hegemonia — que, juntos,
explicam como o poder se infiltra no cotidiano, moldando não só nossas
instituições, mas a própria alma das comunidades.
Éthos
vem do grego e significa algo como “caráter” ou “modo de ser”. Não é apenas um
traço individual, mas o espírito coletivo que orienta o comportamento e as
crenças dentro de um grupo. É o pano de fundo que faz com que certas atitudes
pareçam “normais” ou até “virtuosas” para quem está dentro daquele universo.
Já
hegemonia é uma ideia central na obra do pensador italiano Antonio Gramsci.
Para ele, a hegemonia não é apenas dominação por força, mas o domínio cultural
e ideológico — quando uma classe ou grupo social consegue fazer com que sua
visão de mundo seja aceita como universal e legítima. Essa hegemonia se espalha
pelo éthos coletivo, naturalizando o poder e ocultando as relações de opressão
que o sustentam.
Na
prática, pense nas escolas, na mídia, nas redes sociais. Elas ajudam a
construir o éthos dominante: a “forma correta” de ser cidadão, consumidor,
trabalhador, jovem, mulher ou homem. O que Gramsci mostra é que o poder não
depende só da repressão, mas da capacidade de convencer as pessoas a “querer o
que é necessário” para manter a ordem vigente.
Essa
dinâmica aparece claramente nas narrativas sobre meritocracia, por exemplo — a
ideia de que quem trabalha duro sobe na vida e merece seu lugar. Quem não
consegue, supostamente, falhou por incompetência própria. Essa crença está tão
entranhada no éthos social que poucas vezes é questionada, mesmo que esconda
desigualdades estruturais.
O
éthos hegemonicamente construído também pode ditar padrões de beleza,
comportamento e até mesmo linguagem, criando grupos de exclusão e
marginalização. Quem foge desses padrões pode ser visto como “fora do lugar”,
“anormal” ou “rebelde”. Mas, justamente aí reside a possibilidade da
transformação social: contestar o éthos dominante é um passo para
desestabilizar a hegemonia.
Hoje,
um campo onde o éthos hegemônico aparece de forma cristalina é nas redes
sociais. Plataformas como Instagram e TikTok estabelecem padrões estéticos,
estilos de vida e formas de comunicação que rapidamente se tornam “normais” e
desejáveis. Influenciadores e marcas moldam gostos e comportamentos, fazendo
com que milhões sigam tendências sem perceber que estão reproduzindo um modo de
ser imposto — um éthos digital que valoriza a performance, o consumo e a
aprovação social.
Mas
também surgem resistências: movimentos sociais, como o Black Lives Matter ou os
coletivos LGBTQIA+, desafiam os éthos dominantes ao reivindicar novos modos de
ser e existir que rompem com padrões tradicionais. Eles buscam criar uma
contra-hegemonia, propondo um éthos mais plural, inclusivo e crítico das
desigualdades.
No
ambiente corporativo, o éthos hegemônico é visível nas culturas organizacionais
que valorizam competitividade, produtividade e conformidade. A ideia do
“funcionário ideal” muitas vezes se traduz num padrão de comportamento que
exclui quem não se encaixa, seja por gênero, raça, estilo ou crenças. A
contestação a esses padrões internos pode gerar conflitos, mas também
impulsiona debates sobre diversidade e inclusão — justamente um esforço para
alterar o éthos dominante e, com isso, a hegemonia cultural dentro das
empresas.
Gramsci
acreditava que os grupos subalternos precisavam criar sua própria
“contra-hegemonia” — uma nova cultura e um novo éthos que questionem o status
quo e ampliem o sentido de liberdade e justiça. Essa luta é constante, feita
nas pequenas batalhas diárias de percepção, linguagem e comportamento.
Por
isso, pensar em éthos e hegemonia é olhar para o poder não só como algo que
impõe de fora, mas que vive e se reproduz dentro de cada um de nós. É um
convite para refletir sobre quais modos de ser estamos adotando e por quê — e
se eles realmente nos pertencem ou foram impostos.
No
fim das contas, o éthos é o palco onde a hegemonia dança — e só compreendendo
essa dança é que podemos escolher se queremos ser os dançarinos oficiais ou
inventar uma nova coreografia.