Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador monstro. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador monstro. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Leviatã e o Poder

Quando o monstro nos representa

 

Há dias em que basta assistir a uma sessão do parlamento ou a uma reunião de condomínio para que a gente entenda por que alguém, em algum momento da história, pensou ser melhor concentrar o poder nas mãos de um único soberano do que deixar todo mundo decidir tudo junto. Em meio ao caos cotidiano, à gritaria dos interesses e à vontade desencontrada das pessoas, surge a pergunta: quem vai nos proteger de nós mesmos? Foi com esse dilema que Thomas Hobbes criou a imagem do Leviatã, uma espécie de monstro político formado pela soma de todos nós.

 

O monstro necessário

O nome vem de uma criatura bíblica, um ser gigantesco das profundezas, incontrolável, assustador. Mas Hobbes não o invoca para aterrorizar — ao contrário, para proteger. Em seu livro Leviatã (1651), ele defende que, sem um poder soberano que concentre as decisões, a humanidade mergulha no estado de natureza, onde todos vivem em guerra contra todos. Ali, segundo ele, a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.

Hobbes parte de um princípio pessimista, mas realista: os seres humanos são movidos pelo medo, pela autopreservação e pelo desejo de poder. Nesse cenário, um contrato social é necessário — um pacto em que todos abrem mão de parte de sua liberdade em troca de segurança. E o Leviatã, o soberano absoluto, é quem garante a ordem e o cumprimento desse pacto. Ele não é eleito para ser simpático, mas para impedir que o mundo vire um campo de batalha de interesses.

 

O Leviatã nos dias de hoje

O problema é que, ao longo da história, o Leviatã cresceu. Em vez de ser apenas um protetor contra o caos, muitas vezes se tornou um opressor. O que era para proteger, passou a sufocar. E o que era para unir, passou a dividir. A crítica contemporânea aponta: quando o Estado concentra demais, torna-se também o autor da violência — e não seu antídoto. Pensadores como Michel Foucault vão mostrar que o Leviatã moderno não só reprime, mas molda, disciplina, define quem somos. O monstro já não nos protege apenas: ele nos fabrica.

Mas o mais inquietante talvez seja pensar que o Leviatã não é um ser externo. Ele é composto pelos corpos dos cidadãos. Cada decisão nossa, cada medo que temos, cada vez que pedimos mais segurança e menos liberdade, estamos alimentando o monstro. Ele cresce com a nossa delegação. E é aqui que o pensamento de Hobbes se atualiza de forma perturbadora: o Leviatã é o espelho do nosso desejo de ordem — mesmo quando isso nos custa autonomia.

 

Nietzsche, o Leviatã e a vontade de poder

Nietzsche, que rejeitava tanto o Estado quanto qualquer instância que se colocasse como verdade absoluta, provavelmente olharia para o Leviatã com desprezo e ironia. Em Assim falou Zaratustra, ele escreve: “O Estado é o mais frio de todos os monstros frios. Ele mente friamente; e esta é a mentira que escapa de sua boca: 'Eu, o Estado, sou o povo'.” Para Nietzsche, o Leviatã hobbesiano representa a negação da vontade individual, da potência criadora de cada ser humano. É uma máquina de mediocridade, de nivelamento, de obediência.

Se Hobbes acha que o Leviatã é a salvação contra o caos, Nietzsche vê no caos a chance de criação, de superação, de liberdade autêntica. O Leviatã, com sua promessa de segurança, paralisa o impulso vital. Ele evita o pior, sim, mas também impede o melhor.

 

E se o Leviatã estiver dentro de nós?

A grande virada filosófica pode estar em perceber que o Leviatã não é só uma metáfora do Estado. Ele também representa nossa própria tentativa de nos dominar. Criamos regras internas, repressões, identidades rígidas para dar conta do medo que temos de nós mesmos. Talvez o maior Leviatã não seja o governo nem a autoridade externa, mas aquela voz que diz “seja produtivo”, “seja normal”, “obedeça”.

Por isso, pensar o Leviatã hoje é refletir sobre o equilíbrio entre proteção e liberdade, ordem e potência, segurança e criação. E talvez, mais importante ainda, é perceber que o monstro que nos governa também é feito de nossas escolhas, nossos silêncios e nossas entregas.


domingo, 16 de maio de 2021

O Médico e o Monstro, um livro curto, porem rico por temas da filosofia, psicologia e sociologia

 

Adquiri o livro num sebo, é uma 2ª edição revisada de 1989. É um dos meus livros favoritos, é uma obra atemporal, uma história de terror e ficção, ao mesmo tempo permite boa reflexão, merece ser lido e relido.

O personagem representa a complexidade do ser humano, a estória nos permite vislumbrar a dicotomia existente em cada um de nós em suas diferentes intensidades, é claro que as atitudes de Hyde são deploráveis e devemos rejeitar, mas é necessário ver no extremo a possibilidade para evidenciar o antagonismo. Psicologicamente a transformação e transfiguração de duas personalidades num mesmo corpo, é a luta interna da existência, para que um possa existir o outro precisa ser anulado, mesmo que seja temporariamente.

A experiência da leitura é obviamente diferente para cada leitor, a estória é chocante e horrível, as coisas que causam medo para um não querem dizer que faça para outro, e assim é para cada um de nós.

A liberdade e permanência de cada personalidade pode permitir tomar o espaço do outro eu, algo que está dentro de cada pessoa pode se manifestar, o ser escondido floresce. O verbo “hide” em inglês quer dizer (esconder), o nome do monstro Hyde não é à toa, ele quer dizer aquele que está escondido. Os atos pertinentes aos movimentos de Hyde são apenas a manifestação da dualidade, os atos refletem as vontades obscuras, a estória aborda a dialética dos valores morais de forma assombrosa, indo além do bem e do mal, indo além porque a vida nos ensinou que fazemos escolhas o tempo todo, fazer o bem ou o mal, é uma escolha pessoal de cada um, entendo que fazer isto ou aquilo não se trata do combate do bem e do mal, mas o reflexo da dualidade na possibilidade de escolhas, afinal quando foi que não nos surpreendemos afirmando: como fui capaz de fazer tal coisa.

Sinopse:

A história se passa em Londres, no final do século XIX, (Jekyll e Mr. Hyde) de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886.

Estranho caso do Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, mais conhecido no Brasil como O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Já no ano seguinte, foi adaptado para o teatro. Desde então vem sendo objeto de várias adaptações, para o cinema e outras artes. Esse romance breve – classificado por alguns como novela – tem um pouco de investigação policial, de ficção científica e de romance psicológico. A estratégia de utilizar vários narradores, que só conhecem parte da história, que vai sendo aos poucos desvelada ao leitor, torna a leitura extremamente envolvente. Esse clássico da literatura universal é também uma investigação sobre as zonas do Bem e do Mal que compõem a natureza humana.

Gabriel John Utterson é um advogado que investiga um caso estranho envolvendo Henry Jekyll e Edward Hyde, repentino beneficiário do testamento de Henry. O advogado descobre acontecimentos que resultam na reclusão repentina de Jekyll. O romance que envolve ficção científica, transtornos psicológicos e terror é um grande clássico do gênero.

O médico e o monstro, seria possível sintetizar a parcela de maldade que nos compõe e nos livrar dela, nos tornando seres inteiramente bons? E caso fosse possível, seria desejável? O médico e o monstro narram a história de um homem respeitado, cujas relações com um personagem sórdido, de aparência grotesca, faz com que seus amigos desconfiem de que ele está sendo vítima de chantagem.

Empenhados em ajudá-lo a libertar-se desse suposto explorador, começam a investigar os vínculos entre os dois homens. A psicanálise reafirmaria as ideias propostas no livro, mostrando a presença irrefutável, em cada um de nós, de um Mr. Hyde mau, deformado, inescrupuloso e vingativo, e de um Dr. Jekyll bom, agradável, virtuoso e humano.

Trechos do livro:

“Sou partidário da heresia de Caim”, costumava dizer com um toque de excentricidade, “deixo que meu irmão vá para o inferno da forma que melhor lhe aprouver.” Por pensar assim, muitas vezes era o último conhecido respeitável de homens a caminho da ruína, como também a última boa influência sobre eles. E com relação a tais homens, caso o procurassem em seu escritório, jamais mudava em nada seu comportamento.

 

Muitos tinham dificuldade de explicar o que esses dois viam um no outro ou que assunto em comum conseguiam encontrar. Segundo quem os via passeando aos domingos, não trocavam uma palavra, davam a impressão de estar entediados e cumprimentavam com patente alívio algum amigo que aparecesse. Apesar disso, ambos emprestavam grande importância àqueles passeios com os quais coroavam cada semana, descartando outras oportunidades de lazer e até mesmo resistindo a chamados profissionais a fim de garantir que nada os interromperia.

 

Assim, mesmo quando nos é dito que duas pessoas são uma, o testemunho de Jekyll ainda os divide ao negar qualquer responsabilidade pelas ações de Hyde. Tais distinções permitem que Henry Jekyll aja com todo o decoro como membro de sua classe, condenando o comportamento de Hyde, seu oposto e inferior em termos sociais e “antropológicos”. Jekyll, assim como seus amigos, veem Hyde, o monstro criminoso, à luz das teorias sobre o crime e a imoralidade daquela época.

 

O velho, porém, não dá sinal de ter percebido seu perseguidor, contorna-o e continua a andar. “Esse velho — diz o narrador a si mesmo — é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Não adianta segui-lo que não conseguirei saber nada a seu respeito. Há certos segredos que não consentem ser ditos.” O inescrutável, o interior “que não se deixa ler”, o enigma, o puro dentro. A tese de que há no homem algo de inescrutável, de invisível e de indizível antecipa, no contexto ficcional, a inescrutabilidade do inconsciente diante do consciente em Freud. O sr. Hyde era inescrutável para o dr. Jekyll até o momento em que o médico preparou e ingeriu a poção que provocou a emergência do seu monstro interior.

 

Mas continuava amaldiçoado por minha dualidade; e, à medida que o primeiro impulso de minha penitência perdia força, a parte mais baixa de mim, por tanto tempo gratificada e só recentemente acorrentada, começou a rosnar para ser libertada. Não que eu sonhasse em ressuscitar Hyde, essa simples ideia me deixava furioso. Não, estava tentado uma vez mais a brincar com minha consciência em meu próprio corpo; e foi como um pecador secreto comum que por fim cedi aos ataques da tentação.

 

O dr. Jekyll e o sr. Hyde são dois ou um?

Em seu relato final, o dr. Jekyll escreve que “a natureza exigente de minhas aspirações, mais do que qualquer degradação peculiar de caráter […] fez de mim o que sou […] separou dentro mim as províncias do bem e do mal que caracterizam a condição dual do ser humano”.

O autor Robert Louis Stevenson, tendo nascido Robert Lewis Balfour Stevenson, foi um influente novelista, poeta e escritor de roteiros de viagem britânico, nascido na Escócia. Escreveu clássicos como A Ilha do Tesouro, O Médico e o Monstro e As Aventuras de David, A Flecha Negra, entre outros.

Stevenson em sua estória conseguiu abordar com maestria o gênero do terror, consegue fazer o leitor sentir na pele o terror psicológico gerado a partir da consciência da vulnerabilidade da mente humana, as descrições do monstro interno causam desconforto pela possibilidade da manifestação em qualquer pessoa.

O livro ganhou espaço no teatro e no cinema, e obviamente se tornou a melhor metáfora para os casos de dupla personalidade e anormalidade.

Além de ser um tema filosófico, psicológico, o romance também pode servir como pano de fundo e uma forma de crítica social ao contexto histórico em que foi publicado, é uma oportunidade para a Sociologia se debruçar e vislumbrar alguns fenômenos sociais, pois nele passeiam os novos atributos trazidos pela afirmação da industrialização inglesa do século XIX, tais como a distinção das relações sociais à camada do capital, a possibilidade de deliberação das mazelas sociais, e a acentuação dos contrastes entre a disponibilidade de recursos.

Recomendo o livro para qualquer pessoa que esteja procurando um livro curto, ele consegue de certo modo prender o leitor, possui ótima escrita, em geral um livro que vale a pena ser lido e cumpre seu papel de um clássico, afinal como diz Kafka: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.”

Fonte:

STEVENSON. R. L. O médico e o monstro. 2ª edição revista. Tradução José Maria Machado. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 1989