Quando o monstro nos representa
Há
dias em que basta assistir a uma sessão do parlamento ou a uma reunião de
condomínio para que a gente entenda por que alguém, em algum momento da
história, pensou ser melhor concentrar o poder nas mãos de um único soberano do
que deixar todo mundo decidir tudo junto. Em meio ao caos cotidiano, à gritaria
dos interesses e à vontade desencontrada das pessoas, surge a pergunta: quem
vai nos proteger de nós mesmos? Foi com esse dilema que Thomas Hobbes
criou a imagem do Leviatã, uma espécie de monstro político formado pela
soma de todos nós.
O
monstro necessário
O
nome vem de uma criatura bíblica, um ser gigantesco das profundezas,
incontrolável, assustador. Mas Hobbes não o invoca para aterrorizar — ao
contrário, para proteger. Em seu livro Leviatã (1651), ele defende que,
sem um poder soberano que concentre as decisões, a humanidade mergulha no
estado de natureza, onde todos vivem em guerra contra todos. Ali, segundo ele,
a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.
Hobbes
parte de um princípio pessimista, mas realista: os seres humanos são movidos
pelo medo, pela autopreservação e pelo desejo de poder. Nesse cenário, um
contrato social é necessário — um pacto em que todos abrem mão de parte de sua
liberdade em troca de segurança. E o Leviatã, o soberano absoluto, é quem
garante a ordem e o cumprimento desse pacto. Ele não é eleito para ser
simpático, mas para impedir que o mundo vire um campo de batalha de interesses.
O
Leviatã nos dias de hoje
O
problema é que, ao longo da história, o Leviatã cresceu. Em vez de ser apenas
um protetor contra o caos, muitas vezes se tornou um opressor. O que era para
proteger, passou a sufocar. E o que era para unir, passou a dividir. A crítica
contemporânea aponta: quando o Estado concentra demais, torna-se também o autor
da violência — e não seu antídoto. Pensadores como Michel Foucault vão
mostrar que o Leviatã moderno não só reprime, mas molda, disciplina, define
quem somos. O monstro já não nos protege apenas: ele nos fabrica.
Mas
o mais inquietante talvez seja pensar que o Leviatã não é um ser externo. Ele é
composto pelos corpos dos cidadãos. Cada decisão nossa, cada medo que temos,
cada vez que pedimos mais segurança e menos liberdade, estamos alimentando o
monstro. Ele cresce com a nossa delegação. E é aqui que o pensamento de Hobbes
se atualiza de forma perturbadora: o Leviatã é o espelho do nosso desejo de
ordem — mesmo quando isso nos custa autonomia.
Nietzsche,
o Leviatã e a vontade de poder
Nietzsche,
que rejeitava tanto o Estado quanto qualquer instância que se colocasse como
verdade absoluta, provavelmente olharia para o Leviatã com desprezo e ironia.
Em Assim falou Zaratustra, ele escreve: “O Estado é o mais frio de todos
os monstros frios. Ele mente friamente; e esta é a mentira que escapa de sua
boca: 'Eu, o Estado, sou o povo'.” Para Nietzsche, o Leviatã hobbesiano
representa a negação da vontade individual, da potência criadora de cada ser
humano. É uma máquina de mediocridade, de nivelamento, de obediência.
Se
Hobbes acha que o Leviatã é a salvação contra o caos, Nietzsche vê no caos a
chance de criação, de superação, de liberdade autêntica. O Leviatã, com sua
promessa de segurança, paralisa o impulso vital. Ele evita o pior, sim, mas
também impede o melhor.
E
se o Leviatã estiver dentro de nós?
A
grande virada filosófica pode estar em perceber que o Leviatã não é só uma
metáfora do Estado. Ele também representa nossa própria tentativa de nos
dominar. Criamos regras internas, repressões, identidades rígidas para dar
conta do medo que temos de nós mesmos. Talvez o maior Leviatã não seja o
governo nem a autoridade externa, mas aquela voz que diz “seja produtivo”,
“seja normal”, “obedeça”.
Por
isso, pensar o Leviatã hoje é refletir sobre o equilíbrio entre proteção e
liberdade, ordem e potência, segurança e criação. E talvez, mais importante
ainda, é perceber que o monstro que nos governa também é feito de nossas
escolhas, nossos silêncios e nossas entregas.