Outro dia, caminhando sem pressa no centro da cidade, percebi quantas vezes desviamos o olhar — dos desconhecidos, das vitrines, de nós mesmos refletidos em uma vidraça. Vivemos como quem anda em campo minado: tentando adivinhar onde os olhos dos outros irão pousar. A sensação é estranha, quase física, como se existisse uma trama invisível nos puxando ou repelindo. É difícil escapar. Mesmo quem diz não se importar, já confessou, ainda que em silêncio: ser visto tem um peso. E ser ignorado, também.
A
filosofia pode nos ajudar a ir além dessa sensação incômoda e observar o que,
afinal, significa estar sob os olhos dos outros — e, mais ainda, como os olhos
dos outros esculpem quem pensamos ser.
O
espelho que anda pelas ruas
Jean-Paul
Sartre dizia que "o inferno são os outros". Muita gente interpreta
essa frase como uma acusação raivosa — mas há algo mais sutil por trás. Para
Sartre, o olhar alheio nos rouba. Ao ser visto, deixamos de ser apenas sujeitos
de nossas próprias ações: viramos objeto para o olhar do outro. Algo se
solidifica: somos "isso" que o outro vê. E, de repente, nossas
possibilidades parecem mais limitadas.
Quando
alguém nos observa, não é apenas uma troca de olhares. É um batismo: nascemos,
ali, sob a definição que o outro projeta. Um elogio nos levanta; um olhar de
desdém nos dobra por dentro. Às vezes, sem querer, caminhamos na vida tentando
corresponder ou reagir a olhares que nem estão mais presentes.
O
peso e a invenção
Mas
há outro lado. Talvez os olhos dos outros também sejam uma chance de invenção.
Se cada olhar nos define de um jeito, somos, no fundo, múltiplos. Não fixos,
não definitivos. Os olhos dos outros não são apenas uma prisão: são um
território de criação.
A
criança que canta sem medo na frente da avó, mas se cala diante de estranhos,
entende isso de forma intuitiva. Somos uma peça em mutação, moldada pela luz
que nos atinge. A pergunta é: qual luz queremos absorver?
O
filósofo brasileiro Vilém Flusser propunha pensar o ser humano como um projeto,
e não como um dado. O olhar alheio, nesse sentido, seria como o vento para a
pipa: algo que pode nos derrubar ou nos erguer — dependendo de como ajustamos
as cordas. Não é o vento que determina o voo. Somos nós.
E
se olhássemos diferente?
Por
fim, vale virar a mesa: como nossos próprios olhos moldam os outros? Será que a
maneira como olhamos alguém não sela também um destino possível para ele? O
olhar que acolhe, que reconhece, que instiga, pode ser a força que falta para o
outro encontrar algo que ainda não sabia que existia.
No
fim das contas, estamos todos andando pelas ruas, procurando não apenas sermos
vistos, mas vistos de uma forma que nos permita ser. Um dia talvez aprendamos a
olhar uns para os outros com olhos que libertam — e não que aprisionam.
Até
lá, seguimos praticando: um olhar de cada vez.