Quando ser visto se torna uma prisão
Há
quem diga que a maior liberdade do nosso tempo é poder ser quem somos, do jeito
que quisermos, para quem quiser ver. Mas por trás desse ideal de autenticidade,
há um cansaço crescente. A socióloga Eva Illouz nos ajuda a entender por quê:
vivemos uma era em que mostrar-se não é mais opção, é exigência. A exposição
virou regra. E isso, longe de libertar, aprisiona.
Pense
em situações banais do dia a dia. Você sai com os amigos, tira uma foto e
hesita: posta ou não posta? Se posta, precisa parecer feliz, espontâneo,
bonito. Se não posta, parece que não viveu. O momento só vale se for mostrado.
Já não se trata de guardar lembranças, mas de fabricar provas públicas de
existência.
Illouz,
socióloga que se dedica a estudar as emoções no mundo contemporâneo, chama
atenção para esse paradoxo. Em O Amor nos Tempos do Capitalismo, ela
mostra como a intimidade deixou de ser sagrada e virou mercadoria emocional.
Falamos de sentimentos em público, nos expomos em redes, e aprendemos que isso
é sinal de maturidade emocional. Mas, como ela mesma diz, “essa fala virou
norma, e não mais escolha”. Não expor-se hoje parece um ato de resistência – ou
de estranhamento social.
Isso
se reflete também nas dores do amor. Em Por que o amor dói, Illouz
afirma que a dor afetiva contemporânea é agravada por um mercado de relações
onde tudo é substituível e comparável. As redes sociais funcionam como vitrines
de vidas emocionais idealizadas. A exposição do outro – o ex, a ex – nos obriga
a confrontar nossa insuficiência. Não se trata apenas de perder alguém, mas de
ver esse alguém seguir com outro – e sorrindo em fotos com filtro.
Byung-Chul
Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, chama isso de “sociedade da
transparência”. Tudo precisa ser mostrado, compartilhado, comentado. A
privacidade passou a ser quase uma suspeita: quem não se mostra está escondendo
algo. Mas essa lógica elimina o mistério, o silêncio, o tempo de elaboração
interior. Para Han, a transparência, que parecia ética, virou forma de
controle.
A
psicóloga americana Sherry Turkle acrescenta mais um ponto: estamos “sozinhos,
juntos”. Ou seja, cercados de contatos, mas desconectados da profundidade. A
exposição digital simula intimidade, mas nos rouba a presença real. A todo
instante, projetamos uma imagem, uma versão de nós mesmos. Sentimos, como diz
Eva Illouz, para os outros. A dor, o amor, a alegria, tudo precisa
passar por um enquadramento visual, uma legenda que diga: “olha quem eu sou”.
E
se não quisermos ser vistos? E se o momento pede recolhimento, silêncio,
desordem? Aí mora a tirania: não se trata de sermos impedidos de falar, mas de
sermos obrigados a mostrar. O direito ao anonimato emocional, à privacidade
afetiva, ao sofrimento mudo – esse direito está em extinção.
Nas
filas de espera, nos velórios, nos primeiros encontros, tudo parece pedir um
registro. Já não se vive apenas com os outros, mas para os outros. E
quando se vive assim, resta pouco espaço para a verdade íntima, aquela que não
cabe em legenda, nem em filtro.
Talvez
o desafio do nosso tempo seja reaprender a desaparecer. A permitir-se
viver algo sem publicar. A sentir sem moldar o sentimento para o olhar externo.
A recuperar o silêncio como uma forma de linguagem.
Eva
Illouz não diz que devemos abandonar as redes, mas nos convida a pensar: o que
ainda resta de nós quando ninguém está olhando?