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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Biopolítica e Subjetivação

O corpo que obedece sem saber

Nem sempre o poder grita ordens. Às vezes, ele sussurra no fone de ouvido enquanto você corre na esteira da academia. Outras vezes, está na sua planilha de produtividade, na forma como você se veste para o trabalho, ou na sua preocupação constante em parecer “alguém bem resolvido” nas redes sociais. O poder moderno não manda, forma. Ele molda a alma como quem alisa uma peça de barro. É nessa moldagem que surgem os conceitos de biopolítica e subjetivação.

O filósofo francês Michel Foucault ajudou a nomear essa mutação. Antigamente, o poder era soberano: o rei mandava, o súdito obedecia — uma lógica clara que se expressava, por exemplo, nas execuções públicas da Idade Média, quando o corpo do condenado era exibido como um aviso e demonstração do poder estatal absoluto. Esse poder era “poder sobre a morte”.

Mas, a partir do século XVIII, algo mudou. O poder passou a se preocupar mais com a vida do que com a morte — com a saúde da população, a disciplina dos corpos, o aumento da produtividade. Isso é a essência da biopolítica. Um exemplo histórico marcante desse movimento foi o surgimento das escolas, hospitais e prisões modernos — instituições que Foucault chamou de “disciplinadoras”. Nas escolas, por exemplo, o tempo dos alunos é rigorosamente dividido, os corpos são orientados a sentar, levantar, andar de uma forma precisa. Esse controle minucioso dos corpos visava formar indivíduos “úteis” para a sociedade industrial nascente.

Pense em como o corpo deve estar “em forma”, como a alimentação deve ser “consciente”, como o tempo precisa ser “bem gerido”. Essas obrigações não vêm de um ditador, mas de um conjunto difuso de normas sociais que fazem parecer que você escolheu tudo isso — mesmo que só esteja se adaptando para sobreviver socialmente.

A isso Foucault chama de subjetivação: o processo pelo qual nos tornamos sujeitos... sujeitos de nós mesmos, moldados por discursos, normas e instituições. Aprendemos a nos olhar com os olhos do poder. O controle, portanto, deixa de ser externo. Ele se torna interno e cotidiano.

Um exemplo histórico muito ilustrativo é a forma como as campanhas de saúde pública, no século XX, passaram a responsabilizar o indivíduo por sua própria saúde — desde a luta contra o tabagismo até o incentivo à prática de exercícios. O cidadão moderno é convidado a ser um “empresário de si mesmo”, como chama o filósofo Michel Foucault, responsável por gerir seu corpo e seu estilo de vida para se manter “produtivo” e “saudável”.

Outro exemplo mais recente e marcante foi a pandemia da COVID-19, quando os governos impuseram medidas que literalmente tocaram o corpo e a rotina das pessoas: uso obrigatório de máscaras, distanciamento social, quarentenas. Essas intervenções sanitárias ilustram a biopolítica em ação, onde o controle da vida coletiva se dá pela regulação detalhada dos comportamentos individuais. E mais: a vigilância digital para rastrear contatos e o controle da circulação mostram como o poder biopolítico evolui para formas de controle cada vez mais sutis e tecnológicas.

Além disso, regimes autoritários do século XX, como o nazismo e o stalinismo, revelam outra face da biopolítica: a biopoder pode assumir a forma de biopoder necropolitico, que decide quem vive e quem morre, e como os corpos são manejados para preservar ou exterminar populações. Nessas situações extremas, o controle da vida alcança sua forma mais cruel, com eugenia, campos de concentração e repressão sistemática.

Veja o caso das redes sociais. O "perfil" virou nossa pequena monarquia: ali somos reis da nossa imagem, mas também súditos do que esperam de nós. Seguimos tendências, performamos felicidade, engajamos com o que é aceitável. A liberdade é vendida como total, mas a moldura é estreita.

O mais curioso é que essa forma de poder não quer apenas obedientes — quer sujeitos ativos, autônomos e produtivos, desde que não saiam do trilho. Ser "livre", nesse jogo, é saber gerir a si mesmo com eficiência. Tornamo-nos, sem perceber, nossos próprios administradores e vigilantes.

Como sair disso? Foucault não propõe uma fuga total, mas o exercício constante da crítica. Segundo ele, a filosofia serve para inquietar os modos de pensar dados como naturais. Subverter, ainda que em pequenos gestos, a normalidade imposta. Ser sujeito, talvez, possa incluir a escolha de não se encaixar completamente.

No fim das contas, o corpo que obedece sem saber ainda pode dançar fora do ritmo — mesmo quando a música do mundo quer que ele siga a batida certa.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Viabilidade Contestada

Quando a Realidade se Recusa a Colaborar

Outro dia, tomando um café forte, escutei alguém dizer: "Isso aí não vai dar certo. Não é viável." A sentença era definitiva, como se a viabilidade fosse um juiz infalível, pronto para arquivar qualquer tentativa ousada. Fiquei pensando: e se a própria ideia de viabilidade fosse um conceito contestável? Afinal, quantas coisas hoje comuns foram, um dia, consideradas impossíveis?

A viabilidade, no discurso cotidiano, parece uma métrica neutra, uma régua que mede se algo pode ou não acontecer. Mas será que ela é realmente objetiva? Ou será que é apenas um reflexo de crenças, interesses e padrões aceitos num determinado tempo e espaço? Quando algo é chamado de inviável, não estamos apenas descrevendo a realidade, mas também reforçando um certo modo de ver o mundo, delimitando o que pode e o que não pode existir.

A Ilusão do Impossível

Se voltarmos no tempo, veremos que muitas das grandes transformações da humanidade nasceram de tentativas de desafiar o senso comum da viabilidade. Voar? Inviável, diziam. Computadores pessoais? Um absurdo. O simples fato de conceber algo novo já implica um enfrentamento com o estabelecido. O status quo precisa se proteger, e a alegação de inviabilidade muitas vezes é uma estratégia de contenção.

Aqui podemos recorrer a Gaston Bachelard, que nos fala sobre os obstáculos epistemológicos – barreiras invisíveis ao pensamento que nos fazem descartar possibilidades antes mesmo de testá-las. Não é que algo seja realmente inviável, mas nossa forma de pensar o impede de ser viável. O medo da ruptura, a inércia da tradição e o conformismo são os verdadeiros carrascos da inovação.

Viabilidade e Poder

Curiosamente, o que é viável e o que não é depende de quem fala. O dinheiro transforma a inviabilidade em detalhe técnico. Grandes corporações conseguem tornar viável o que parecia impensável, simplesmente porque têm recursos para insistir. Isso revela que a viabilidade não é um critério universal, mas um campo de disputa. O que é viável para um pode ser impossível para outro.

A filósofa brasileira Suely Rolnik nos alerta para os mecanismos de subjetivação que moldam nossa percepção do que é possível. Quando absorvemos sem questionar a ideia de inviabilidade, estamos aceitando um modelo de mundo imposto por forças que nem sempre têm nossos interesses em mente. A viabilidade contestada não é apenas um exercício teórico; é um ato de resistência contra os limites arbitrários do possível.

O Que Fazer com a Inviabilidade?

Se toda viabilidade pode ser contestada, então não devemos tomá-la como um veredito definitivo. O que hoje parece impraticável pode ser, na verdade, apenas um sintoma de uma visão restrita da realidade. Questionar a viabilidade não significa ignorar desafios concretos, mas reconhecer que o impossível pode ser apenas uma convenção mal elaborada.

Então, quando alguém lhe disser que algo não é viável, talvez valha a pena perguntar: para quem? E por quê?