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domingo, 13 de julho de 2025

Todo mundo quem?

Um ensaio sobre a multidão invisível

Todo mundo disse que não era uma boa ideia. Todo mundo compartilhou aquele vídeo. Todo mundo pensa assim. Todo mundo sabe disso. Mas quem é esse tal de todo mundo? A gente cresce ouvindo que "todo mundo faz", e com isso, sem perceber, essa entidade anônima vai ganhando uma autoridade quase divina no nosso cotidiano. Como se fosse um conselho de sábios invisíveis que opinam sobre o certo e o errado, o bom e o mau, o que se deve vestir, comer, pensar, postar, sentir.

Mas se pararmos um segundo para perguntar — com a seriedade de uma criança que acabou de descobrir que Papai Noel é o pai usando algodão — quem exatamente é esse todo mundo, a coisa começa a desmoronar. Porque ninguém sabe ao certo. “Todo mundo” nunca se apresenta com CPF, nem com rosto, nem com argumento. Ele age como uma nuvem densa de opiniões acumuladas, que paira sobre nós com o peso da norma.

O anonimato do consenso

Na filosofia social, essa figura pode ser associada ao que o pensador alemão Martin Heidegger chamou de o impessoal — o das Man em alemão. Segundo ele, vivemos muitas vezes no modo de ser do “se faz”, “se pensa”, “se diz”, como se nossas ações fossem conduzidas por um agente neutro e coletivo. Heidegger não está falando de uma pessoa específica, mas de um modo de existência em que deixamos de ser singulares para ser apenas mais um na massa que segue o fluxo. O “todo mundo” é o das Man agindo: ele vive em nós quando não somos nós mesmos.

É nesse espaço indistinto que mora o conforto da aprovação. A sensação de estar alinhado com o que “se espera” nos poupa do risco de errar sozinhos. Por isso tanta gente se agarra a esse ente abstrato: porque pensar diferente, querer diferente ou até ser diferente pode significar sair da sombra segura do todo mundo e encarar a própria solidão.

Todo mundo não cabe em todo mundo

O problema é que esse “todo mundo” costuma excluir mais do que incluir. Ele silencia quem discorda, quem se expressa fora do padrão, quem vive na margem. Quando dizemos “todo mundo está fazendo”, muitas vezes estamos repetindo o que um grupo muito específico, geralmente privilegiado ou mais visível, está fazendo. O resto — a maioria silenciosa, invisível ou ignorada — fica de fora da equação.

Em termos sociológicos, podemos pensar com Pierre Bourdieu, que nos lembra como as práticas sociais carregam distinções. Aquilo que parece ser “universal” geralmente é o gosto de um grupo dominante apresentado como se fosse natural. Então, o "todo mundo" é, muitas vezes, uma ficção construída a partir da norma dominante. O que é todo mundo na zona sul de Porto Alegre pode não ser ninguém no sertão da Bahia.

Desobedecer o todo

Talvez a pergunta mais filosófica seja: precisamos mesmo de um “todo mundo”? Claro, somos seres sociais, desejamos pertencimento, somos construídos pela linguagem do outro. Mas há uma diferença entre viver em relação e viver em submissão. Seguir o “todo mundo” por medo de errar é uma forma sutil de servidão.

A desobediência criativa — como propunha Michel Foucault — pode ser uma forma de existência mais autêntica. É no momento em que duvidamos da voz que fala em nome de todos, que a nossa voz começa a tomar forma. E se ninguém mais estiver dizendo o que você está dizendo, talvez seja exatamente por isso que você precise dizer.

Conclusão desconfortável:

Então, da próxima vez que alguém disser “todo mundo pensa assim”, pergunte com gentileza filosófica: todo mundo quem? Talvez essa pergunta simples já comece a desatar o nó de muitas certezas. E quem sabe, no silêncio entre uma resposta e outra, você encontre um espaço de liberdade — pequeno, mas genuíno — para pensar o que ninguém está pensando ainda. E nesse instante, você deixará de ser “todo mundo” para ser, enfim, alguém.

sábado, 12 de julho de 2025

Priming

A sugestão invisível do ser



Estava sorvendo meu mate quente entre as mãos e, sem perceber, já estava me sentindo mais aberto à conversa. Algo no calor, no vapor subindo, na pausa do gesto, parecia me convidar ao acolhimento. Logo pensei, não é só costume ou tradição — é como se o corpo, ao sentir o calor, se lembrasse de como é bom confiar. E é aí que me veio a história do priming: aquele efeito curioso em que estímulos sutis moldam nossos pensamentos e atitudes, mesmo sem a gente notar. Como um mate que, antes de esquentar por dentro, aquece por fora e muda o jeito que olhamos o outro.

Vivemos sob a impressão de que escolhemos. A cada passo, a cada palavra, imaginamos que uma vontade sólida nos guia, que um “eu” pensante, firme e indivisível, decide o rumo da vida. No entanto, a teoria do priming, oriunda da psicologia cognitiva, oferece um espelho desconcertante: talvez não sejamos tão senhores de nossas decisões quanto acreditamos.

Priming é a influência sutil — e muitas vezes inconsciente — de estímulos prévios sobre nossas ações e pensamentos. Ao sermos expostos a uma palavra, imagem ou ideia, reagimos ao mundo de maneira alterada, mesmo sem nos darmos conta disso. A mente responde a sugestões silenciosas. Mas o que esse fenômeno revela filosoficamente?

I. O eu moldável: sujeito ou efeito?

O conceito de sujeito autônomo, herança iluminista, pressupõe uma consciência centrada, capaz de deliberar racionalmente. No entanto, se um simples cartaz com palavras de gentileza aumenta a probabilidade de alguém ser educado, o que resta da liberdade?

O filósofo francês Michel Foucault já desconfiava da ilusão de um sujeito fixo. Para ele, somos atravessados por discursos, moldados por regimes de saber e poder. O priming, nesse contexto, seria a evidência científica de que nossos gestos nascem de gramáticas invisíveis, de redes simbólicas que operam abaixo da superfície da consciência.

II. Liberdade sob influência: a ilusão do espontâneo

Se somos suscetíveis a influências mínimas, o livre-arbítrio seria uma ficção? Não exatamente. O priming não determina, mas inclina. Como uma brisa que desvia levemente o curso de um barco, ele mostra que nossas decisões não surgem no vácuo. Elas são respostas condicionadas por contextos anteriores. A liberdade, então, não é absoluta — é situada, contextual, e talvez até relacional.

A verdadeira pergunta filosófica não é "somos livres?", mas: de que somos feitos? Se memórias, emoções e estímulos moldam nossos gestos, talvez a identidade não seja uma estrutura, mas um campo de forças, um jogo de sugestões internas e externas.

III. Priming como estética do mundo: o invisível que age

Há algo poético no fato de que uma palavra lida em silêncio possa modificar uma atitude. É como se o mundo sussurrasse possibilidades, e nós, atentos ou não, dançássemos ao ritmo de suas sugestões.

Nesse sentido, o priming toca a filosofia de Merleau-Ponty, quando este afirma que o corpo é a abertura ao mundo — não há separação radical entre o sujeito e o ambiente. O corpo percebe, responde, antecipa. Ele não espera a consciência: ele age. O priming, então, é uma forma de estética da existência — o modo como o mundo nos pinta, antes mesmo de sabermos que estamos na tela.

IV. Filosofia do cuidado: cultivar o invisível

Se somos permeáveis ao que nos rodeia, talvez a ética esteja em cuidar do ambiente que nos constitui. Escolher palavras, imagens, sons e silêncios que nos moldem de maneira mais consciente. Assim como a alimentação influencia o corpo, os estímulos moldam o espírito.

A filosofia contemporânea não pode ignorar o priming — não como mais um fenômeno psicológico, mas como uma chave para repensar o que significa ser humano num tempo em que o inconsciente se revela moldável, acessível e, muitas vezes, manipulado.

A liberdade depois do priming

O priming não anula a liberdade; ele a problematiza. Mostra que a autonomia talvez esteja menos em resistir a influências e mais em compreendê-las. Saber que somos atravessados por sinais invisíveis é o primeiro passo para cultivar uma consciência mais ampla e gentil.

O filósofo não é mais apenas o que pensa, mas o que se pergunta: “o que está pensando por mim neste exato momento?”

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Biopolítica e Subjetivação

O corpo que obedece sem saber

Nem sempre o poder grita ordens. Às vezes, ele sussurra no fone de ouvido enquanto você corre na esteira da academia. Outras vezes, está na sua planilha de produtividade, na forma como você se veste para o trabalho, ou na sua preocupação constante em parecer “alguém bem resolvido” nas redes sociais. O poder moderno não manda, forma. Ele molda a alma como quem alisa uma peça de barro. É nessa moldagem que surgem os conceitos de biopolítica e subjetivação.

O filósofo francês Michel Foucault ajudou a nomear essa mutação. Antigamente, o poder era soberano: o rei mandava, o súdito obedecia — uma lógica clara que se expressava, por exemplo, nas execuções públicas da Idade Média, quando o corpo do condenado era exibido como um aviso e demonstração do poder estatal absoluto. Esse poder era “poder sobre a morte”.

Mas, a partir do século XVIII, algo mudou. O poder passou a se preocupar mais com a vida do que com a morte — com a saúde da população, a disciplina dos corpos, o aumento da produtividade. Isso é a essência da biopolítica. Um exemplo histórico marcante desse movimento foi o surgimento das escolas, hospitais e prisões modernos — instituições que Foucault chamou de “disciplinadoras”. Nas escolas, por exemplo, o tempo dos alunos é rigorosamente dividido, os corpos são orientados a sentar, levantar, andar de uma forma precisa. Esse controle minucioso dos corpos visava formar indivíduos “úteis” para a sociedade industrial nascente.

Pense em como o corpo deve estar “em forma”, como a alimentação deve ser “consciente”, como o tempo precisa ser “bem gerido”. Essas obrigações não vêm de um ditador, mas de um conjunto difuso de normas sociais que fazem parecer que você escolheu tudo isso — mesmo que só esteja se adaptando para sobreviver socialmente.

A isso Foucault chama de subjetivação: o processo pelo qual nos tornamos sujeitos... sujeitos de nós mesmos, moldados por discursos, normas e instituições. Aprendemos a nos olhar com os olhos do poder. O controle, portanto, deixa de ser externo. Ele se torna interno e cotidiano.

Um exemplo histórico muito ilustrativo é a forma como as campanhas de saúde pública, no século XX, passaram a responsabilizar o indivíduo por sua própria saúde — desde a luta contra o tabagismo até o incentivo à prática de exercícios. O cidadão moderno é convidado a ser um “empresário de si mesmo”, como chama o filósofo Michel Foucault, responsável por gerir seu corpo e seu estilo de vida para se manter “produtivo” e “saudável”.

Outro exemplo mais recente e marcante foi a pandemia da COVID-19, quando os governos impuseram medidas que literalmente tocaram o corpo e a rotina das pessoas: uso obrigatório de máscaras, distanciamento social, quarentenas. Essas intervenções sanitárias ilustram a biopolítica em ação, onde o controle da vida coletiva se dá pela regulação detalhada dos comportamentos individuais. E mais: a vigilância digital para rastrear contatos e o controle da circulação mostram como o poder biopolítico evolui para formas de controle cada vez mais sutis e tecnológicas.

Além disso, regimes autoritários do século XX, como o nazismo e o stalinismo, revelam outra face da biopolítica: a biopoder pode assumir a forma de biopoder necropolitico, que decide quem vive e quem morre, e como os corpos são manejados para preservar ou exterminar populações. Nessas situações extremas, o controle da vida alcança sua forma mais cruel, com eugenia, campos de concentração e repressão sistemática.

Veja o caso das redes sociais. O "perfil" virou nossa pequena monarquia: ali somos reis da nossa imagem, mas também súditos do que esperam de nós. Seguimos tendências, performamos felicidade, engajamos com o que é aceitável. A liberdade é vendida como total, mas a moldura é estreita.

O mais curioso é que essa forma de poder não quer apenas obedientes — quer sujeitos ativos, autônomos e produtivos, desde que não saiam do trilho. Ser "livre", nesse jogo, é saber gerir a si mesmo com eficiência. Tornamo-nos, sem perceber, nossos próprios administradores e vigilantes.

Como sair disso? Foucault não propõe uma fuga total, mas o exercício constante da crítica. Segundo ele, a filosofia serve para inquietar os modos de pensar dados como naturais. Subverter, ainda que em pequenos gestos, a normalidade imposta. Ser sujeito, talvez, possa incluir a escolha de não se encaixar completamente.

No fim das contas, o corpo que obedece sem saber ainda pode dançar fora do ritmo — mesmo quando a música do mundo quer que ele siga a batida certa.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Pensar em Três Tempos

Sentado num banco de praça ou vendo o tempo passar da janela de um ônibus, às vezes a gente se pega pensando: como é que a humanidade chegou até aqui? De deuses com raios nas mãos a foguetes em Marte, tem um salto curioso. Essa inquietação foi também a de Auguste Comte, no século XIX. Ele não estava na praça nem no ônibus, mas olhava o mundo com olhos de quem queria encontrar uma lógica no caos da história do pensamento humano.

Comte propôs uma ideia ousada: a mente humana evolui em três grandes estágios. Quase como se a cabeça da humanidade fosse uma criança, depois adolescente, e então adulta. Mas será mesmo que crescemos tanto assim?

A teoria: os três degraus da escada comtiana

Para Comte, a humanidade atravessa três fases, tanto no plano coletivo quanto individual:

  1. Estágio Teológico – Aqui, o mundo é explicado por vontades sobrenaturais. Um raio cai? Foi Zeus. A chuva demora? É porque os deuses estão zangados. É o tempo da fé e da personalização da natureza.
  2. Estágio Metafísico – Agora os deuses saem de cena, mas não completamente. Eles são substituídos por forças abstratas, como “natureza”, “vontade universal” ou “essência”. Já é um pensamento mais racional, mas ainda não científico.
  3. Estágio Positivo – O auge, segundo Comte. A mente humana finalmente para de buscar causas ocultas e passa a estudar as leis dos fenômenos com base em observação, experimentação e método científico. Nada de “por que”, agora só se pergunta “como funciona?”.

Comte acreditava que só no estágio positivo poderíamos construir uma sociedade verdadeiramente racional, guiada pela ciência e pela ordem. Uma espécie de tecnocracia iluminada, com cientistas e engenheiros como novos sacerdotes do saber.

As rachaduras da escada: críticas à teoria

Mas nem todo mundo subiu essa escada com gosto. Muitos pensadores apontaram que, apesar de elegante, a teoria de Comte tem furos na parede da realidade.

 1. A ilusão do progresso linear

Crítico: Michel Foucault

A ideia de que todos os povos caminham exatamente pelos mesmos degraus ignora a pluralidade das culturas e histórias. Foucault mostrou que o saber não evolui de forma linear, mas se reorganiza por rupturas, descontinuidades e relações de poder. A noção de “progresso inevitável” é uma construção do Ocidente moderno, que impõe sua visão como universal.

 2. O cientificismo como nova religião

Crítico: Friedrich Nietzsche

Comte acreditava tanto na ciência que propôs uma espécie de “Religião da Humanidade”. Nietzsche viu nisso uma substituição de deuses por ídolos modernos: a ciência vira fé, e o “homem racional” vira sacerdote. Para ele, esse tipo de racionalismo é uma forma disfarçada de niilismo — uma tentativa desesperada de dar sentido à existência sem encarar seu vazio trágico.

 3. A ciência não é neutra nem perfeita

Crítico: Thomas Kuhn

Em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn mostrou que a ciência não avança de forma contínua e neutra, mas por meio de rupturas paradigmáticas, disputas internas e influências sociais. A crença comtiana na objetividade pura da ciência foi duramente abalada. A ciência também erra, é política e está sujeita a modas intelectuais.

 4. As três fases não se excluem

Crítico: Clifford Geertz

Geertz, antropólogo interpretativo, mostrou que o pensamento simbólico, religioso e metafísico continua presente mesmo em sociedades tecnologicamente avançadas. Culturas não substituem uma lógica por outra: elas combinam e reinterpretam ideias diversas. Isso derruba a ideia de uma evolução em linha reta. Na vida real, carregamos todos os estágios ao mesmo tempo.

A força e o perigo das classificações

No fundo, a teoria de Comte é uma tentativa de organizar a história da mente humana em uma linha reta, clara, sem desvios. Isso ajuda a pensar, mas pode enganar. A realidade é mais feita de círculos, espirais, voltas e retornos do que de linhas retas.

As ideias de Comte ajudaram a consolidar a sociologia como campo científico — e isso é um mérito imenso. Mas sua teoria, quando tomada como verdade absoluta, escorrega no autoritarismo da razão. Como se quem ainda pensa com os pés no mito ou no mistério fosse um ser inferior, um atraso.

Epílogo: talvez estejamos nos três estágios ao mesmo tempo

Hoje, podemos usar um aplicativo com inteligência artificial e depois fazer uma oração antes de dormir. Estudar física quântica e ainda assim buscar um sentido espiritual para a vida. Talvez o ser humano não “evolua” de forma limpa, mas misture tudo, como quem carrega nas costas a infância, a adolescência e a maturidade — todas juntas, no mesmo corpo, no mesmo tempo.

E quem sabe seja justamente essa contradição que nos torna... humanos.


terça-feira, 17 de junho de 2025

Ser Excêntrico

...é ser fora do eixo?

Que palavra boa, essa: excêntrico. Literalmente, do grego ekkentros, quer dizer “fora do centro”. E talvez isso já diga quase tudo.

Ser excêntrico é não girar no eixo dos outros. É não se preocupar se o bonde segue para a direita enquanto você caminha para a esquerda assobiando uma música esquecida. É usar uma boina vermelha num mundo de bonés pretos, comer bergamota no cinema, chamar a atenção sem querer ou querendo muito — pouco importa.

Excêntrico é aquele vizinho que cria galinhas no apartamento e lhes dá nomes de filósofos. É a colega de trabalho que prefere escrever seus relatórios à mão, com caneta tinteiro, no meio da era digital. É o tio que guarda canecas rachadas porque “a imperfeição tem charme”.

Mas o excêntrico não é necessariamente um extravagante. Nem sempre salta aos olhos. Às vezes é só alguém que recusa o script silenciosamente: não usa redes sociais, não liga para séries do momento, não troca o celular há cinco anos. E vive bem assim.

A sociedade moderna adora sugerir que há um “centro” de comportamento: comprar isso, vestir aquilo, sonhar com aquilo outro. Mas o excêntrico é um lembrete vivo de que esse centro é apenas uma construção — e pode ser abandonado sem culpa.

O filósofo francês Michel Foucault diria que o excêntrico encarna a “diferença” que resiste às normalizações do poder. Ele lembra que a vida pode ser outra coisa — um desvio alegre, um ruído num coro afinado demais.

No fundo, toda criança é um pouco excêntrica. Ela inventa brincadeiras sem sentido, fala sozinha com objetos, mistura real e imaginário sem pedir licença. Só depois é que ensinamos a ela que há um "centro" — horários, modos, jeitos, expectativas.

Talvez ser excêntrico, no fundo, seja uma forma de não esquecer essa infância secreta que mora em todo mundo.

E quem sabe o mundo precise de mais excêntricos — esses seres estranhos que não levam tão a sério o que deveria ser levado muito a sério.


terça-feira, 13 de maio de 2025

Alternativa a Obediência

Nem sim, nem não — mas outra coisa

Recordo que certo dia, no trabalho, meu chefe me pediu algo que, no fundo, não fazia o menor sentido. Não era absurdo, não era imoral, apenas… vazio. Um protocolo. Uma dessas ordens que vêm por vício, não por necessidade. Aquela coisa que você obedece por inércia ou desobedece por birra.

Eu quase fui pelo sim. E depois, quase fui pelo não.

Mas parei.

Fiquei em silêncio por três segundos — o que, no ritmo da empresa, é uma eternidade — e disse: “Me explica por que isso é importante?”

Ele piscou. Não esperava. Talvez nem ele soubesse por quê. E foi aí que percebi: obedecer seria passar por cima de mim. Desobedecer seria passar por cima dele. Mas perguntar foi passar por dentro da situação.

Existe um caminho entre o “sim, senhor” e o “não vou fazer”.

É o caminho de quem decide com consciência. De quem não se curva nem se rebela, mas se coloca.

A terceira via tem cara de pergunta

Ela não levanta a voz, mas também não abaixa a cabeça.

Ela pergunta, considera, pensa, reavalia. Às vezes chega ao “sim”, outras ao “não”, mas o que importa é como chegou lá.

Na família, por exemplo. Você já foi chamado para um almoço onde não queria ir? Não porque odeia a comida, mas porque a conversa te esgota, o ambiente te aperta, você sente que está lá só para cumprir tabela?

A obediência vai por educação. A desobediência inventa uma desculpa.

A terceira via liga antes e diz: “Queria te ver de verdade, sem pressa. Que tal um café só nós dois na quarta?”

Repare: não é fuga. É criação.

Fazer o que se deve — mas porque se escolhe

O filósofo francês Michel Foucault falava disso quando propunha o “cuidado de si”. Para ele, liberdade não é fazer tudo o que se quer. É cultivar uma escuta interior tão afiada que você se torna capaz de decidir — e não apenas reagir. A obediência age por medo. A desobediência por impulso. A terceira via, por consciência.

Na prática, ela é menos dramática e mais sutil. É aquela resposta que não se espera. Aquela sugestão que muda o rumo da conversa. Aquela decisão que respeita os outros sem se trair.

Um amigo meu, professor, conta que um aluno dele um dia disse: “Não vou fazer a tarefa.”
Ele respirou e disse: “Tudo bem. Mas me conta o que você faria no lugar.”
E o aluno, meio pego de surpresa, acabou propondo outra forma de aprender — melhor, aliás.

Nem obedeceu nem desobedeceu. Criou.

No fim das contas…

…a terceira via é o lugar onde mora a autenticidade.

Nem passiva, nem agressiva. Apenas viva.

Não se trata de dizer sim ou não. Mas de estar presente o bastante para entender o que a situação realmente pede — e o que você está disposto a oferecer.

É mais fácil seguir ordens. É mais fácil romper com tudo. Difícil mesmo é pensar no meio do caminho. Mas é nesse meio que a liberdade amadurece.

Política: entre o gado e o grito

Vivemos uma época em que a política virou torcida. Ou você bate palma pra tudo que seu time faz, ou vira hater profissional do outro lado. Mas e se a gente não quiser ser nem mascote nem hater?

Um conhecido meu, eleitor engajado, me disse: “Se criticar meu candidato, você está ajudando o inimigo.”

Respondi: “E se eu criticar pra ajudar ele a ser melhor?”

Essa é a terceira via política: aquela que critica sem querer destruir, e que elogia sem idolatrar.

Ela não se baseia na fidelidade cega, nem no cancelamento automático.

Ela existe onde o debate ainda respira, onde pensar vale mais que gritar.

Não é centrão. É centro de gravidade.

Religião: entre o dogma e o deboche

Numa cerimônia religiosa, o padre pediu que todos se ajoelhassem. Um senhor idoso ao meu lado não se ajoelhou, mas também não ficou de pé, desafiador. Ele apenas sentou com reverência, olhos fechados, mãos no peito.

Ele não estava desobedecendo. Estava interpretando com o corpo aquilo que fazia sentido pra ele. Nem fanático, nem debochado. Um tipo raro de fé: silenciosa, adaptada, presente.

A terceira via da espiritualidade não é “sou religioso” nem “sou ateu revoltado”.

É: “Estou buscando, estou ouvindo, estou escolhendo o que me transforma com honestidade.”

Ela entra no templo… e sai com perguntas.

Escola: entre copiar e desafiar

Uma aluna de 13 anos se recusou a fazer a lição de matemática. A professora, paciente, perguntou por quê.

“Porque eu já sei fazer. Posso tentar um desafio mais difícil?”

Não era birra. Era vontade de aprender.

A escola tradicional adestra. A rebeldia anárquica rejeita tudo. A terceira via educa para o discernimento.

É ensinar a perguntar: “Por que estou aprendendo isso?”

E, se a resposta fizer sentido, seguir com interesse próprio, não só por obrigação.

Amor: entre ceder e confrontar

Num relacionamento, às vezes surge aquela encruzilhada: ou eu cedo e me anulo, ou eu me imponho e crio guerra.

Mas existe o outro jeito: conversar antes que a crise vire abismo.

É perguntar: “O que em mim você está tentando mudar?”

E também perguntar a si mesmo: “Estou disposto a mudar isso por mim, ou só por medo de perder?”

A terceira via amorosa é vulnerável, mas firme.

Ela não obedece por carência, nem desobedece por orgulho. Ela constrói acordos que respeitam ambos os lados — inclusive o seu.

Entre a cruz e a espada, invente um banquinho

A vida parece nos empurrar para escolhas binárias: isso ou aquilo. Mas a maturidade começa quando você entende que pode não escolher nenhuma das opções prontas — e ainda assim agir com responsabilidade.

A terceira via é a arte de inventar o próprio jeito de estar no mundo.

Nem servil, nem reativo. Mas criador.

E como disse Fernando Pessoa, num de seus momentos mais lúcidos:

“Navegar é preciso; viver não é preciso.”

Ou seja: viver não é seguir rotas. É estar atento à bússola interior — mesmo quando o mapa só mostra o sim e o não.


sexta-feira, 4 de abril de 2025

Ilusão do Controle

A grande questão atual é: Liberdade ou Algoritmo?

Vivemos na era da hiperconectividade, onde cada decisão que tomamos parece estar impregnada por uma sensação de escolha autônoma e consciente. No entanto, um olhar mais atento sobre nossa relação com a tecnologia revela um paradoxo inquietante: estamos realmente exercendo nossa liberdade ou somos apenas peças movidas por um tabuleiro algorítmico que antecipa, orienta e molda nossas escolhas?

A filosofia do controle sempre esteve no cerne das discussões sobre a liberdade. Desde os tempos de Platão, com sua caverna metafórica, até Michel Foucault e suas reflexões sobre o biopoder e a sociedade disciplinar, a humanidade tem questionado até que ponto suas ações são genuinamente autônomas. Na contemporaneidade, esse dilema assume um novo contorno: a inteligência artificial e os algoritmos das redes sociais tornaram-se arquitetos invisíveis da nossa realidade cotidiana.

A personalização dos conteúdos que consumimos é um exemplo claro desse fenômeno. O que parece ser uma facilidade — a curadoria automática que nos entrega músicas, notícias e produtos sob medida —, também restringe nossa exposição a diferentes perspectivas. O conceito de "bolhas de informação", popularizado por Eli Pariser, evidencia como os algoritmos nos enclausuram em um ecossistema onde nossas próprias preferências passadas determinam nosso futuro. Assim, não escolhemos verdadeiramente — apenas seguimos um caminho previamente pavimentado por padrões de consumo e comportamento que os sistemas identificam e reforçam.

Zygmunt Bauman, ao falar da modernidade líquida, destacou como as estruturas sociais tornaram-se voláteis e imprevisíveis. No entanto, a lógica algorítmica desafia essa fluidez ao transformar nossas interações em previsões estatísticas altamente confiáveis. Assim, o livre arbítrio se torna questionável: se tudo o que escolhemos é, na verdade, o resultado de sugestões e predições baseadas em nosso histórico digital, ainda podemos falar em liberdade?

A resposta a essa indagação não é simples. Foucault nos lembra que toda forma de poder também abre brechas para a resistência. Se, por um lado, somos influenciados por uma arquitetura invisível de dados, por outro, podemos cultivar uma consciência crítica e buscar ativamente a diversidade de informação. Em outras palavras, reconhecer a existência dos algoritmos e seus impactos sobre nossas decisões já é um primeiro passo para recuperar parte do controle sobre nossa própria subjetividade.

Em um mundo onde a ilusão de autonomia é meticulosamente mantida por um sistema de dados, talvez a verdadeira liberdade esteja na capacidade de questionar, de escapar — mesmo que temporariamente — da previsibilidade algorítmica e experimentar o inesperado. A próxima vez que você der play em uma música recomendada, ler uma notícia sugerida ou comprar um produto indicado, pergunte-se: foi você quem escolheu ou foi o algoritmo que escolheu por você?


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Paranoia

Entre a Cautela e o Delírio

Outro dia, ouvi alguém cochichando em um café. Automaticamente, meu cérebro lançou uma hipótese: estavam falando de mim. Claro que não estavam, mas, por um instante, a paranoia fez seu trabalho – aquele impulso irracional de achar que tudo gira ao nosso redor. Todos já sentimos algo parecido, uma ligeira desconfiança que se infiltra sem convite, transformando coincidências em complôs. Mas o que realmente define a paranoia? E até que ponto ela é um desvio ou apenas uma extensão exagerada de um mecanismo natural da mente?

A paranoia é, essencialmente, uma percepção distorcida da realidade, em que eventos casuais são interpretados como parte de uma conspiração contra o sujeito. Mas se olharmos de perto, há um espectro amplo de paranoia: desde uma desconfiança cotidiana até delírios persecutórios graves. O filósofo Michel Foucault, em sua análise do poder e das instituições, nos lembra que o olhar vigilante do outro pode moldar a nossa subjetividade. Será, então, que a paranoia também nasce de um mundo que constantemente nos observa e avalia?

De certa forma, a paranoia pode ser vista como um mecanismo de sobrevivência. O ser humano evoluiu para detectar padrões e ameaças no ambiente, antecipando perigos. No entanto, quando essa habilidade se torna hipertrofiada, enxergamos armadilhas onde há apenas coincidências. Jean-Paul Sartre descrevia algo parecido ao falar sobre "o olhar do outro" em sua filosofia existencialista: a consciência de que somos vistos nos coloca em um estado de alerta constante, como se estivéssemos sempre sob julgamento.

Por outro lado, há a paranoia coletiva, aquela que se espalha como um incêndio. Em tempos de redes sociais e teorias da conspiração, a paranoia não é apenas individual, mas se torna um fenômeno social. Quando grupos inteiros passam a desconfiar sistematicamente de instituições, da ciência e da própria realidade, caímos em um terreno perigoso onde qualquer fato pode ser reinterpretado como parte de uma grande manipulação oculta.

No fim, a paranoia nos convida a refletir sobre a tênue fronteira entre a prudência e o delírio. Um pouco de desconfiança pode nos proteger, mas quando a suspeita se torna regra e não exceção, corremos o risco de perder o contato com a realidade. Talvez a solução esteja em cultivar uma vigilância equilibrada – atentos ao mundo, mas sem nos tornarmos prisioneiros de nossos próprios fantasmas.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Doença como Metáfora

A doença é frequentemente usada como metáfora para ilustrar diversos aspectos da vida humana, desde dilemas pessoais até condições sociais e políticas. Susan Sontag, em seu livro "A Doença como Metáfora", explora como doenças como a tuberculose e o câncer têm sido usadas para representar diferentes medos, preconceitos e problemas culturais.

Doença como Metáfora na Vida Cotidiana

Tuberculose: A Doença Romântica

No século XIX, a tuberculose era vista como a doença dos artistas e dos intelectuais. Pessoas como John Keats, Frédéric Chopin e Emily Brontë, que sofreram com a tuberculose, contribuíram para a ideia de que essa doença estava associada a uma sensibilidade artística e a uma natureza introspectiva. Na literatura e na arte, a tuberculose era frequentemente retratada como uma condição que elevava o espírito e a alma, mesmo enquanto destruía o corpo.

Câncer: A Doença do Século XX

Ao contrário da tuberculose, que foi romantizada, o câncer é frequentemente visto como uma metáfora para o medo e a inevitabilidade da morte. Nos anos 70, quando Sontag escreveu seu livro, o câncer era rodeado de silêncio e estigma, quase como se fosse uma condenação moral. Era uma doença associada a repressões emocionais e, muitas vezes, considerada uma punição por algo não dito ou reprimido. Esse medo silencioso do câncer refletia ansiedades mais amplas sobre a modernidade, a alienação e o rápido avanço tecnológico.

Doença como Reflexo de Problemas Sociais

A metáfora da doença também é usada para descrever problemas sociais. Por exemplo, a corrupção é muitas vezes descrita como um "câncer" que corrói a sociedade por dentro. A violência e a criminalidade são vistas como "vírus" que infectam comunidades. Esses usos metafóricos ajudam a transmitir a gravidade e a insidiosidade desses problemas, evocando a urgência de encontrar "curas" ou soluções.

Reflexão Filosófica

Michel Foucault, em seus estudos sobre biopolítica, argumenta que a maneira como falamos sobre doenças revela muito sobre o poder e o controle na sociedade. Ele explorou como a medicina e a saúde pública são usadas como ferramentas para disciplinar corpos e controlar populações. Assim, a metáfora da doença não é apenas uma forma de expressão, mas também um reflexo de como o poder opera na sociedade.

Em um Café

Imagine estar sentado em um café, observando a vida ao seu redor. Talvez você veja uma pessoa com uma máscara, protegendo-se de um vírus. Esta imagem evoca não apenas preocupações com a saúde, mas também sentimentos de vulnerabilidade e desconfiança na sociedade moderna. O simples ato de usar uma máscara pode ser visto como uma metáfora para o desejo de proteger-se de um mundo percebido como perigoso e imprevisível.

Ao mesmo tempo, você pode notar a vitalidade e a resiliência das pessoas ao seu redor. Elas conversam, riem e vivem suas vidas, mostrando que, apesar das metáforas de doença que permeiam nossa cultura, a humanidade continua a buscar conexão, alegria e significado.

A doença como metáfora oferece uma lente poderosa para entender não apenas como vemos as condições médicas, mas também como refletimos nossas ansiedades, esperanças e valores. Seja na arte, na literatura ou na vida cotidiana, essas metáforas nos ajudam a navegar pelas complexidades da existência humana, proporcionando uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.


domingo, 24 de novembro de 2024

Engenharia Reversa

Engenharia reversa é um desses termos que carregam um fascínio imediato. A ideia de desmontar algo, pedaço por pedaço, para descobrir como funciona nos faz lembrar da curiosidade infantil de desmontar brinquedos, ou até mesmo das perguntas incessantes sobre o "por quê" das coisas. Mas, será que a engenharia reversa pode ser aplicada além da técnica? E se olhássemos para ela como uma metáfora para entender a vida, as relações e nós mesmos?

Desconstruindo a Máquina da Vida

Imagine que a vida é como um dispositivo complexo, cheio de engrenagens e circuitos que giram em perfeita ou imperfeita sincronia. Muitas vezes, vivemos sem realmente entender como essa máquina funciona, apenas apertando botões e seguindo instruções implícitas. Mas o que aconteceria se, em algum momento, decidíssemos desmontar nossa "máquina interior"?

Essa engenharia reversa do eu seria um processo desafiador. Desconstruir crenças, hábitos e memórias não é tão simples quanto desparafusar um aparelho. É preciso coragem para olhar para os componentes e perguntar: "Por que isso está aqui? É realmente necessário? Como tudo isso se conecta?"

Nesse ponto, podemos invocar Jean-Paul Sartre, que enxergava a liberdade como um fardo, porque nos obriga a nos reinventar constantemente. Ao aplicar a engenharia reversa em nós mesmos, encaramos essa liberdade: desmontamos o que achávamos ser sólido e, ao mesmo tempo, nos damos conta de que temos a responsabilidade de reconstruir tudo com sentido.

Engenharia Reversa na Sociedade

Expandindo a metáfora, podemos aplicar o conceito à sociedade. Cada sistema social é uma construção histórica: um resultado de décadas ou séculos de decisões, ideologias e estruturas. No entanto, muitas vezes seguimos vivendo dentro desse "dispositivo" sem questionar seu funcionamento.

Aqui entra a crítica de Michel Foucault aos sistemas de poder: a desconstrução das instituições revela os mecanismos de controle e exclusão que se tornaram invisíveis ao longo do tempo. Por exemplo, ao reverter o "projeto" do sistema educacional, percebemos como ele molda comportamentos e classifica indivíduos de maneira funcional, mas não necessariamente justa.

Engenharia reversa, nesse contexto, se torna uma ferramenta de emancipação. Ao desmontar as engrenagens invisíveis da sociedade, descobrimos onde elas falham, onde excluem e onde podem ser reconstruídas para algo mais justo e equitativo.

A Máquina Divina e o Universo

E se tentássemos aplicar a engenharia reversa ao próprio universo? É uma ideia que ressoa com o trabalho dos cientistas e filósofos ao longo dos séculos. Cada teoria científica, em certo sentido, é um esforço para desmontar a máquina cósmica e entender suas leis fundamentais.

Entretanto, essa busca também nos confronta com o mistério. Martin Heidegger diria que, ao desmontarmos o mundo, podemos nos perder no "esquecimento do ser". Afinal, o que sobra quando retiramos todas as peças da máquina? Existe algo essencial que não pode ser desmontado?

Nesse ponto, a engenharia reversa filosófica se transforma em uma jornada de humildade. Descobrimos que, mesmo ao desmontar o universo, sempre haverá algo além, algo que escapa à nossa compreensão.

Reconstruindo com Sentido

Engenharia reversa não é apenas desconstrução; é, também, reconstrução. No processo de desmontar, descobrimos o que é essencial e o que pode ser descartado. Essa lição é valiosa tanto na vida pessoal quanto na sociedade.

Em última análise, o ato de desmontar é um gesto de amor ao conhecimento e ao potencial de transformação. Como um artesão que desmonta uma peça para criar algo novo, nós, ao praticarmos a engenharia reversa da vida, podemos construir algo mais autêntico, mais alinhado com quem somos ou queremos ser.

E, assim, a engenharia reversa deixa de ser apenas uma técnica e se transforma em uma filosofia: a arte de compreender desmontando e de transformar reconstruindo. Que tal, hoje, desmontar um pedaço da sua rotina? Um hábito, uma ideia, ou até mesmo um silêncio. Quem sabe o que você encontrará nas engrenagens escondidas.


domingo, 10 de novembro de 2024

Transumanismo

Imagine acordar um dia e perceber que o conceito de "ser humano" não é mais o que costumava ser. Nossas fragilidades, nossos limites físicos e mentais, tudo isso que costumava nos definir está sendo reescrito em laboratórios e chips de silicone. De repente, o que nos torna "humanos" não é mais a experiência comum do corpo que adoece, envelhece e aprende a lidar com o tempo, mas sim um corpo e uma mente aprimorados, imunes a fraquezas e, quem sabe, até imortais. Parece ficção científica, mas é exatamente isso que o transumanismo propõe: reprogramar as fronteiras do humano para ir além do que conhecemos. A questão que fica é: até onde vai esse "além"? E, afinal, o que estamos prontos para sacrificar nessa busca? Você já ouviu falar em transumanismo?

O transumanismo, movimento que defende o uso de tecnologias emergentes para aumentar as capacidades humanas, levanta profundas questões sobre a essência do ser humano. Até que ponto a tecnologia deve nos transformar antes que deixemos de ser "humanos"? Essa questão está no cerne de debates filosóficos e éticos, especialmente quando se considera que o avanço da biotecnologia, da inteligência artificial e da engenharia genética não só permite tratar doenças e melhorar a qualidade de vida, mas também modificar radicalmente a nossa biologia e cognição.

Um filósofo central na discussão sobre o que significa "ser humano" e as implicações da modificação desse estado é Michel Foucault. Embora Foucault não tenha vivido para ver a ascensão do transumanismo, seus estudos sobre o poder e a disciplina corporal oferecem uma lente crítica. Foucault argumenta que o poder sobre o corpo sempre foi uma ferramenta de controle social, e o transumanismo leva essa questão a um novo patamar. Para ele, a "biopolítica" — o poder que se exerce sobre a vida e o corpo dos indivíduos — já regulava a vida social na modernidade. No entanto, o transumanismo sugere uma forma de controle que não apenas disciplina o corpo, mas o altera essencialmente.

Por um lado, o transumanismo promete liberdade individual ao expandir as capacidades de cada pessoa: melhorar o intelecto, prolongar a vida e eliminar doenças. Para muitos transumanistas, a tecnologia oferece a chance de superar as limitações biológicas. É o que Nick Bostrom, filósofo sueco contemporâneo e defensor do movimento, considera uma oportunidade de aprimoramento moral e intelectual da espécie. Bostrom argumenta que a evolução guiada pela tecnologia é a continuidade natural do processo evolutivo e que o uso da biotecnologia e da IA representa o próximo passo para a humanidade. Segundo ele, a humanidade seria definida por sua capacidade de se adaptar e de se melhorar continuamente.

Contudo, há vozes críticas que levantam preocupações importantes. Giorgio Agamben, por exemplo, questiona a perda do "humano" nesse processo. Para ele, quando o homem começa a se modificar de maneira profunda, ele perde sua "vida nua", seu estado essencial, e começa a se transformar em um objeto de manipulação. O risco, segundo Agamben, é que o "pós-humano" se torne o "não-humano", uma figura sem identidade própria, manipulada por forças externas e reduzida a um produto da engenharia.

O desafio do transumanismo, portanto, não é apenas ético, mas existencial. A partir do momento em que se começa a melhorar o ser humano — sua mente, sua saúde, seu corpo — cria-se também uma desigualdade fundamental entre aqueles que podem acessar essas melhorias e aqueles que não podem. Além disso, modifica-se a relação do indivíduo consigo mesmo. Estaríamos nos aproximando do ideal platônico de uma forma perfeita ou apenas despersonalizando o que nos torna únicos? Afinal, se toda a humanidade adotar um conjunto de capacidades melhoradas, o que restará de autêntico e individual?

O transumanismo, portanto, redefine o humano de forma que transforma a vida em um processo de melhoria contínua. Mas ele também nos desafia a pensar em nossa vulnerabilidade. A mortalidade e a fragilidade física, que o transumanismo deseja superar, são aspectos fundamentais da condição humana. Nelas, encontramos uma série de experiências e aprendizagens que moldam a nossa visão de mundo e nossa capacidade de desenvolver empatia e compreensão.

Como aponta Foucault, o perigo pode estar na criação de uma "norma" de existência que empurre os indivíduos a se conformarem com um ideal tecnicamente aperfeiçoado. E o que será do que nos é dado naturalmente? Poderemos aceitar uma humanidade que se desconecte de sua essência biológica? Em última análise, a questão do transumanismo nos leva a perguntar: até que ponto estaremos prontos para aceitar uma nova definição de ser humano, uma que não se baseie na vulnerabilidade e na imperfeição, mas na artificialidade e na busca constante de perfeição?

Essa é a linha tênue que o transumanismo atravessa, e talvez a maior provocação para nossa ética e filosofia.


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Força Subversiva

Sabe aquele momento em que você está lendo as notícias e tudo parece um grande absurdo, uma sucessão de eventos negativos que desafiam qualquer lógica? Pois é, foi exatamente num desses instantes, em que a indignação bateu forte, que surgiu a ideia de escrever sobre a força subversiva. Afinal, diante de tantas injustiças e absurdos, não dá para simplesmente aceitar tudo passivamente. Precisamos questionar, desafiar e, quem sabe, subverter. Porque se o mundo insiste em ser incompreensível, a gente tem todo o direito de ser rebelde e transformar essa realidade de formas inesperadas.

A subversão é um conceito que muitas vezes é visto com desconfiança. No entanto, ela é essencial para a evolução da sociedade, desafiando normas, questionando o status quo e propondo novas maneiras de pensar e agir. A subversão pode estar presente nas pequenas ações do dia a dia e nas grandes revoluções. Vamos analisar como a força subversiva se manifesta no cotidiano e o que pensadores como Michel Foucault têm a dizer sobre isso.

A Subversão no Cotidiano

Imaginemos uma manhã comum: você acorda, se prepara para o trabalho, enfrenta o trânsito e chega ao escritório. Até aqui, nada de subversivo, certo? No entanto, pequenos atos de resistência podem ocorrer ao longo desse trajeto.

Moda e Identidade: Escolher uma roupa que foge do padrão corporativo pode ser um ato subversivo. Usar uma camiseta com uma mensagem política ou um estilo que desafia a norma é uma forma de expressar sua individualidade e questionar regras implícitas.

Transporte Alternativo: Optar por ir ao trabalho de bicicleta ou transporte público, em vez do carro, pode ser um ato de resistência contra a cultura do automóvel e uma declaração a favor da sustentabilidade.

Consumo Consciente: Decidir comprar de pequenos produtores ou escolher produtos orgânicos e sustentáveis é uma maneira de subverter a lógica do consumismo desenfreado e apoiar práticas mais éticas e responsáveis.

Comunicação: No trabalho, utilizar uma linguagem inclusiva e combater micro agressões é uma forma de subversão no ambiente corporativo, promovendo um espaço mais justo e acolhedor.

Michel Foucault e a Subversão

Michel Foucault, um dos grandes pensadores do século XX, explorou como o poder se manifesta nas relações sociais e como a subversão pode ser uma ferramenta para desafiar esse poder. Para Foucault, o poder não é apenas algo que oprime, mas também algo que circula e se manifesta em todos os níveis da sociedade.

Poder e Resistência

Foucault argumenta que onde há poder, há resistência. A subversão, nesse sentido, é uma forma de resistência que pode ocorrer em qualquer lugar: nas instituições, nas práticas cotidianas e até mesmo nas relações pessoais. Ele não vê a subversão como algo grandioso ou heroico, mas muitas vezes como pequenos atos que, cumulativamente, podem provocar mudanças significativas.

A Microfísica do Poder

Foucault introduziu o conceito de "microfísica do poder" para descrever como o poder opera em níveis microscópicos, através de normas, disciplinas e regulamentações que moldam o comportamento dos indivíduos. A subversão, então, pode ser vista como a ruptura dessas pequenas disciplinas, questionando e desafiando as regras estabelecidas.

Exemplos Práticos

Educação: Professores que adotam métodos de ensino alternativos, que incentivam o pensamento crítico e a criatividade, estão subvertendo a tradicional educação padronizada e preparando alunos para questionarem o mundo ao seu redor.

Arte e Cultura: Artistas que criam obras que provocam e desafiam as convenções sociais estão utilizando a arte como uma ferramenta de subversão, inspirando o público a refletir sobre questões importantes.

Tecnologia: Hackers éticos que expõem falhas em sistemas de segurança e lutam pela privacidade dos dados estão subvertendo o uso opressivo da tecnologia e promovendo a transparência.

A força subversiva é uma parte essencial do progresso social. Ela pode ser encontrada em atos cotidianos e em grandes movimentos, e é fundamental para questionar e redefinir o que consideramos normal. Michel Foucault nos lembra que o poder está em todos os lugares, mas onde há poder, também há a possibilidade de resistência. Ao abraçar a subversão, podemos encontrar novas maneiras de viver e conviver, promovendo uma sociedade mais justa e equitativa.

Referências:

FOUCAULT, Michel. "Vigiar e Punir". Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. "A História da Sexualidade- A Vontade de Saber". São Paulo: Paz e Terra, 2014.