O corpo que obedece sem saber
Nem
sempre o poder grita ordens. Às vezes, ele sussurra no fone de ouvido enquanto
você corre na esteira da academia. Outras vezes, está na sua planilha de
produtividade, na forma como você se veste para o trabalho, ou na sua
preocupação constante em parecer “alguém bem resolvido” nas redes sociais. O
poder moderno não manda, forma. Ele molda a alma como quem
alisa uma peça de barro. É nessa moldagem que surgem os conceitos de biopolítica
e subjetivação.
O
filósofo francês Michel Foucault ajudou a nomear essa mutação.
Antigamente, o poder era soberano: o rei mandava, o súdito obedecia — uma
lógica clara que se expressava, por exemplo, nas execuções públicas da Idade
Média, quando o corpo do condenado era exibido como um aviso e demonstração do
poder estatal absoluto. Esse poder era “poder sobre a morte”.
Mas,
a partir do século XVIII, algo mudou. O poder passou a se preocupar mais com a vida
do que com a morte — com a saúde da população, a disciplina dos corpos, o
aumento da produtividade. Isso é a essência da biopolítica. Um exemplo
histórico marcante desse movimento foi o surgimento das escolas, hospitais e
prisões modernos — instituições que Foucault chamou de “disciplinadoras”. Nas
escolas, por exemplo, o tempo dos alunos é rigorosamente dividido, os corpos
são orientados a sentar, levantar, andar de uma forma precisa. Esse controle
minucioso dos corpos visava formar indivíduos “úteis” para a sociedade
industrial nascente.
Pense
em como o corpo deve estar “em forma”, como a alimentação deve ser
“consciente”, como o tempo precisa ser “bem gerido”. Essas obrigações não vêm
de um ditador, mas de um conjunto difuso de normas sociais que fazem
parecer que você escolheu tudo isso — mesmo que só esteja se adaptando para
sobreviver socialmente.
A
isso Foucault chama de subjetivação: o processo pelo qual nos tornamos
sujeitos... sujeitos de nós mesmos, moldados por discursos, normas e
instituições. Aprendemos a nos olhar com os olhos do poder. O controle,
portanto, deixa de ser externo. Ele se torna interno e cotidiano.
Um
exemplo histórico muito ilustrativo é a forma como as campanhas de saúde
pública, no século XX, passaram a responsabilizar o indivíduo por sua própria
saúde — desde a luta contra o tabagismo até o incentivo à prática de
exercícios. O cidadão moderno é convidado a ser um “empresário de si mesmo”,
como chama o filósofo Michel Foucault, responsável por gerir seu corpo e seu
estilo de vida para se manter “produtivo” e “saudável”.
Outro
exemplo mais recente e marcante foi a pandemia da COVID-19, quando os
governos impuseram medidas que literalmente tocaram o corpo e a rotina das
pessoas: uso obrigatório de máscaras, distanciamento social, quarentenas. Essas
intervenções sanitárias ilustram a biopolítica em ação, onde o controle da vida
coletiva se dá pela regulação detalhada dos comportamentos individuais. E mais:
a vigilância digital para rastrear contatos e o controle da circulação mostram
como o poder biopolítico evolui para formas de controle cada vez mais sutis e
tecnológicas.
Além
disso, regimes autoritários do século XX, como o nazismo e o stalinismo,
revelam outra face da biopolítica: a biopoder pode assumir a forma de biopoder
necropolitico, que decide quem vive e quem morre, e como os corpos são
manejados para preservar ou exterminar populações. Nessas situações extremas, o
controle da vida alcança sua forma mais cruel, com eugenia, campos de
concentração e repressão sistemática.
Veja
o caso das redes sociais. O "perfil" virou nossa pequena monarquia:
ali somos reis da nossa imagem, mas também súditos do que esperam de nós.
Seguimos tendências, performamos felicidade, engajamos com o que é aceitável. A
liberdade é vendida como total, mas a moldura é estreita.
O
mais curioso é que essa forma de poder não quer apenas obedientes — quer
sujeitos ativos, autônomos e produtivos, desde que não saiam do trilho. Ser
"livre", nesse jogo, é saber gerir a si mesmo com eficiência.
Tornamo-nos, sem perceber, nossos próprios administradores e vigilantes.
Como
sair disso? Foucault não propõe uma fuga total, mas o exercício constante da
crítica. Segundo ele, a filosofia serve para inquietar os modos de pensar
dados como naturais. Subverter, ainda que em pequenos gestos, a normalidade
imposta. Ser sujeito, talvez, possa incluir a escolha de não se encaixar
completamente.
No
fim das contas, o corpo que obedece sem saber ainda pode dançar fora do ritmo —
mesmo quando a música do mundo quer que ele siga a batida certa.
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