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terça-feira, 24 de junho de 2025

Ceticismo Indutivo

E aí, já pensou viver sem garantias?

A vida é cheia de suposições silenciosas. Acreditamos que o elevador vai funcionar hoje como funcionou ontem. Que o pão da padaria terá o mesmo gosto de sempre. Que o amigo que sempre responde as mensagens continuará respondendo amanhã. E até mesmo que o sol irá nascer. É um jogo de expectativas baseado num truque antigo: a indução. O cérebro humano, preguiçoso e esperto, observa o padrão e projeta o futuro. Funcionou até aqui? Então vai funcionar de novo.

Mas eis que surge o velho fantasma do ceticismo indutivo, como sussurrou David Hume no século XVIII: não há garantia nenhuma de que o futuro vai repetir o passado. Nenhuma. Só temos o costume de acreditar que sim.

A lógica não consegue provar que o sol nascerá amanhã — apenas que ele sempre nasceu até hoje. A causa e o efeito que observamos no mundo (o fogo aquece a água, a chuva molha o chão) não vêm com um selo metafísico de garantia eterna. Vêm só com a repetição. Por hábito, confiamos. Por lógica, não deveríamos.

Isso parece uma provocação de filósofo preso na biblioteca, longe do mundo real. Mas não é. Está no trânsito: o semáforo verde não assegura que o outro motorista irá frear no vermelho. Está na saúde: o remédio que sempre funcionou pode, de repente, falhar. Está no amor: aquela pessoa que sempre compreendeu seus silêncios pode um dia não entender mais.

Talvez por isso a vida seja um equilíbrio entre dois movimentos: prever (porque sem isso enlouqueceríamos) e desconfiar (porque sem isso seríamos pegos de surpresa). A senhora que confere a validade do iogurte mesmo comprando sempre na mesma marca está, sem saber, exercendo um ceticismo indutivo doméstico. O engenheiro que revisa a ponte todo ano, mesmo ela nunca tendo caído, também.

No fundo, toda prudência é uma espécie de dúvida diante da indução.

Karl Popper tentou salvar a ciência desse buraco dizendo: não provamos que uma teoria é verdadeira; apenas aceitamos que, até hoje, ela não foi refutada. É uma forma elegante de viver com incerteza. Como quem diz: até segunda ordem, esta ponte aguenta o peso.

Talvez o ceticismo indutivo seja, no fim das contas, uma lição de humildade disfarçada. Não podemos viver duvidando de tudo — mas também não podemos viver crendo demais. A arte da existência está em navegar entre as duas margens: confiar o suficiente para atravessar a rua, desconfiar o bastante para olhar para os dois lados antes.

No mundo real, o amanhã não é uma extensão garantida do hoje. É só uma promessa provisória — e ainda assim, é nele que apostamos toda manhã.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Construcionismo Social

Outro dia, enquanto esperava na fila da padaria, ouvi uma senhora reclamar que “hoje em dia ninguém tem mais respeito”. Não era a primeira vez que ouvia essa frase. Aliás, parece que ela está guardada no bolso de todo mundo, pronta para sair a qualquer momento. Mas será mesmo que o respeito “acabou”? Ou será que o que entendemos por respeito mudou? Melhor ainda: e se o respeito nunca tivesse existido como uma coisa em si, mas fosse apenas uma construção social?

Essa pergunta toca o coração do construcionismo social, uma perspectiva que afirma que valores, identidades, instituições e até emoções são produtos da vida em sociedade. São construídos nas interações, nos acordos e também nas tensões do cotidiano.

A Realidade como Obra Coletiva

Para o construcionismo social, a realidade que conhecemos não é simplesmente descoberta: ela é construída. Isso não significa que o mundo físico seja uma ilusão, mas que a forma como o percebemos — o que é certo, errado, belo, ofensivo, desejável — é moldada pelas relações sociais e pela linguagem. Como diria Peter Berger, a sociedade é ao mesmo tempo uma gaiola e um espelho: nos limita e nos reflete.

É aí que entra Anthony Giddens, com sua teoria da estruturação, trazendo uma virada interessante: não somos apenas vítimas passivas de uma sociedade que nos molda — somos agentes ativos nesse jogo. Para Giddens, estrutura social e ação humana estão entrelaçadas num fluxo contínuo. As estruturas nos orientam, sim, mas também dependem das nossas práticas cotidianas para existir. É como uma dança: os passos são ensinados, mas somos nós que dançamos — e, às vezes, mudamos a coreografia no meio do salão.

Scripts Invisíveis e Pequenas Rebeliões

Voltemos ao cotidiano. Pense em como tratamos uma pessoa de terno num banco e como tratamos alguém de chinelo numa loja chique. É automático. Reproduzimos scripts sociais invisíveis que orientam o comportamento. Mas o mais curioso, como diria Giddens, é que ao seguir esses scripts, nós também os reforçamos. Toda vez que aceitamos uma piada preconceituosa em silêncio, damos continuidade a uma estrutura social. Toda vez que interrompemos esse padrão — mesmo que com um olhar torto ou uma pergunta incômoda — abrimos brechas.

Essas pequenas escolhas são fundamentais. O construcionismo social, somado à noção de agência de Giddens, nos lembra que a transformação começa na rotina: na fala interrompida, no hábito questionado, no rótulo recusado. A realidade social, afinal, é frágil — precisa ser sustentada o tempo todo pelas nossas ações para continuar existindo.

Construcionismo e Liberdade: Para Além do Determinismo

Se tudo é construído, tudo também pode ser reconstruído. Isso não significa que vivemos no caos ou que tudo é relativo, mas sim que temos possibilidades de reinvenção.

Se “família” pode significar laços de afeto e não apenas de sangue, se “trabalho” pode ser remoto, flexível ou cooperativo, se “identidade” pode ser fluida e múltipla, então o construcionismo não é só uma ferramenta para entender o mundo — é uma chave para transformá-lo. Giddens reforça essa visão ao mostrar que os indivíduos, mesmo limitados por contextos, não são marionetes. Eles sabem o que fazem — e, às vezes, sabem que poderiam fazer diferente.

Uma Conclusão Aberta (Como Toda Boa Construção Social)

Voltando à senhora da padaria: talvez ela tenha razão no que sente, mas talvez a forma de respeito que ela espera seja diferente da que os jovens reconhecem. O construcionismo social nos convida a parar de tratar o presente como uma queda em relação ao passado e começar a vê-lo como uma nova narrativa em construção.

E com Giddens à mesa, lembramos que não basta entender as estruturas — é preciso assumir responsabilidade pelas nossas ações dentro delas. Porque, no fim, se a sociedade é construída todos os dias, nós somos os pedreiros — ou, quem sabe, os poetas — dessa construção.