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domingo, 5 de setembro de 2021

Resenha do livro “No Enxame” de Byung-Chul Han

Sinopse

Arrastamo-nos por trás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto. Um enxame digital! Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual.

O livro “No Enxame: perspectivas do digital”, de Byung-Chul Han, apresenta a visão ensaística do filósofo sobre as interações entre sujeitos, mediadas pelos ambientes digitais. Respeito e poder, identidade, predomínio da imagem, excesso de informação e apagamentos ontológicos são alguns dos aspectos tratados. Assim, é possível delinear convergências tanto com as propostas de mediação, quanto de midiatização na Comunicação, que envolvem também o consumo. Dentre essas destacam-se a psicopolítica, a interação humano e não humano, assim como as competências do pesquisador.

O autor Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta sul-coreano, professor da Universidade de Artes de Berlim. Ele estudou Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique. Em 1994, doutorou-se em Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger

No livro vem à baila questões como: O que é a verdade?; O que é a pós-verdade?; As Formações opinião e Comportamento Social.

O impacto do mundo digital no dia a dia de nossa vida na internet são imensos, são mais de 3 bilhões de usuários ativos nas redes sociais, isto é muita gente mesmo, e este número tende a crescer cada vez mais, com a dinâmica de melhorias constantes dessas plataformas e o surgimento de novas haverá um transito gigantesco de comunicações e expressões, logo o tema do livro “O Enxame” é muitíssimo atual expondo algumas verdades e pós-verdades supostamente consideradas verdades pela simples possibilidade de podermos duvidar de tudo, permitimos as versões e opiniões de cada um contaminarem o enxame e também sairmos contaminados, ninguém mais está livre de carregar algum tipo de contaminação, está cada vez mais difícil analisar tanta informação disponível, uma das consequências é o cansaço digital, a tudo e o tempo todo temos de checar, checar e checar de novo, isto é, se a fonte for desconhecida esta é a rotina, o lema é desconfie!

O autor nos alerta para o fato de vivermos na era da pós-verdade, inexiste a verdade, porque as pessoas duvidam de tudo, confundem ruídos de informação e desinformação, coincidências com evidencia, sentimos a presença do pensamento de Nietsche, foi ele que inicialmente afirmou que quando o sujeito vive e propaga só a pós-verdade credita só em versões do fato do que o fato em si, isto coincide com as ideias de Byung.

O privado se tornou público a partir do momento que compartilhamos nossa vida privada na internet, vivemos numa sociedade do espetáculo e do escândalo, onde todos se expõem, todos se dão ao direito de criticar, comentar, influir, estamos todos dentro da mesma casa, deixamos de ser pessoas e passamos a ser imagens, estabelecemos rótulos e somos rotulados, não há mais anonimato, é possível acessar todos os dados das pessoas descortinando suas vidas.

No panóptico digital não é possível nenhuma confiança – ela não chega nem mesmo a ser necessária. A confiança é um ato de fé [Glaubenakt], que se torna obsoleto em vista das informações facilmente disponíveis. A sociedade da informação descredita toda crença. A confiança torna possível relações com outros sem conhecimentos precisos sobre eles. A possibilidade de uma aquisição rápida e fácil de conhecimento é prejudicial à confiança. A crise de confiança atual é, vista desse modo, também medialmente condicionada. A conexão digital facilita a aquisição de informação de tal modo que a confiança, como práxis social, perde cada vez mais em significado. Ela dá lugar ao controle. Assim, a sociedade da transparência tem uma proximidade estrutural à sociedade de vigilância. Onde se pode adquirir muito rápido e facilmente informações, o sistema social muda da confiança para o controle e para a transparência. Ele segue a lógica da eficiência. Pg.69

As notícias fake se tornaram uma doença que desestabiliza a casa de qualquer um, vivemos numa época de afetos e desafetos, todos são comentaristas, poucos são aqueles que tem conteúdo de profundidade, a superficialidade do comentário curto rico de memes abreviam o diálogo construtivo, horas e horas são dedicadas a auto exposição e a olhar a vida dos outros, muitos vivem obsessivamente tornando-se verdadeiros indivíduos afetados pelo voyeurismo frequentemente se transformando em per-seguição.

Este olhar constante sem mediação e limites na vida do outro passa a interferir na vida do observador, estimulando o consumo de alguma coisa que esteja sendo consumida pelo outro. Vivemos muitas vezes num estado de indignação digital, pouco desta indignação tem uma materialização na vida da sociedade, é mais ódio passageiro, mas de muitos momentos de ódios e invejas passageiras, se há alguma materialização está no consumo passageiro, vivemos no mundo da adição de seguidores, amigos ocasionais, há mais em quantidade em números e pouco em profundidade de conteúdo, as visões são superficiais, se o “amigo” não comentou positivamente o que o produtor inseriu deixa de ser “amigo”, é fácil, é só excluir o comentário e o “amigo”.

 

Também as redes sociais se mostram como espaços de exposição do privado. A mídia digital como tal privatiza a comunicação, ao deslocar a produção de informação do público para o privado. Roland Barthes define a esfera privada como “aquela esfera de espaço, de tempo onde eu não sou uma imagem, um objeto”. Visto desse modo, não teríamos mais hoje qualquer esfera privada, pois não há, agora, nenhuma esfera em que eu não seria uma imagem, em que não haveria nenhuma câmera. O Google Glass transforma os olhos humanos, eles mesmos, em uma câmera. Os olhos mesmos fazem imagens. Assim, nenhuma esfera privada é mais possível. A imperiosa coação icônico-pornográfica a desfaz inteiramente.

 

A Sociologia tem um prato cheio para analisar o quanto a internet vivida pelo enxame interfere na vida da sociedade digital, é uma mídia que pode ser entendida como narcisista, o amor é direcionado única e exclusivamente para o autor, o amor pelo outro não existe.

O respeito é o alicerce da esfera pública. Onde ele desaparece, ela desmorona. A decadência da esfera pública e a crescente ausência de respeito se condicionam reciprocamente. A esfera pública pressupõe, entre outras coisas, um não olhar para a vida privada. A tomada de distância é constitutiva para o espaço público. Hoje, em contrapartida, domina uma falta total de distância, na qual a intimidade é exposta publicamente e o privado se torna público. Pg.8

Tenho algumas ressalvas quanto a toda negatividade expressada por Byung, sabemos que nem tudo são flores, porem a internet permitiu haver integração entre as pessoas através das redes sociais, elas são facilitadoras de conexões sociais entre pessoas, são gigantes influenciadores de marketing em grupos ou organizações que compartilham dos mesmos valores ou interesses, interagindo entre si. São também formas de comunicação e expressão entre os grupos de amigos que temos, sejam eles da faculdade, do trabalho ou mesmo sua família. Cada um desses grupos é uma rede social que nós temos, e através deles podemos fazer parte de suas vidas quase como uma visitinha na porta da sua casa, é lógico que não há a troca do aperto de mão, do abraço, do beijo, mas pode haver a troca de palavras de afeto e carinho muito importantes em nossas vidas.

Fonte:

Han, Byung-Chul. No enxame : perspectivas do digital / Byung-Chul Han ; tradução de Lucas Machado. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2018.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Resenha: A vida é sonho, de Calderón de La Barca

 “Que é a vida? Um frenesí. Que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção, e o maior bem é bisonho: pois toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são”.

O autor desta bela peça teatral “A vida é sonho” (La vida es sueño, no original), é Pedro Calderón de la Barca foi um dramaturgo religioso e poeta espanhol do século XVII, autor dileto do filósofo Schopenhauer.

O texto narra as aventuras de Segismundo o príncipe, filho renegado de Basílio, rei da Polônia que ao nascer é trancado em uma torre.

Qual o crime de Segismundo?

Mas eu nasci, e compreendo

que o crime foi cometido

pois delito maior

do homem é ter nascido.

A peça marca o renascimento espanhol em forma de peça de teatro lançado em 1635, da idade média, época do questionamento da realidade e embate do profano com o sagrado e do desejo com a razão.

A vida é sonho, utilizando a metáfora do sonho, o texto permite várias abordagens, sejam desdobramentos sociopolíticos, psicológicos e de dignidade humana, traz um enredo muito rico, o autor produziu uma narrativa entre dois reis que tem um filho e há sobre esta criança um vaticínio de que esta criança um menino, no futuro será um rei um tirano, para evitar esta maldição, resolvem criar o menino trancado numa torre sem dizer a ele que é príncipe. O encargo de sua criação ficou aos cuidados de um servo, a atitude dos pais parece desumana.

Decorrido alguns anos, seus pais bolam um plano de tirá-lo da torre e fazer um teste para ver se ele será um tirano, resolvem dopa-lo e ao acordar ele não está mais na torre e encontra-se no palácio, acorda envolvido pela presença de várias pessoas, com todos os luxos e confortos de um príncipe.

No teste constatam que o vaticínio estaria correto, concluem que ele será um tirano, e ficam em dúvida do que fazer a partir disto, a dúvida é se ele se tornou um tirano por ficar preso longe da convivência social e dos pais ou se ele nasceu com esta índole.

Resolvem leva-lo de volta a torre, bolam um expediente que o sedam e o levam de volta, quando acorda seu servo que o criou diz a ele que havia apenas vivido um sonho, que não era príncipe, daí surge o título da peça.

A peça reflete a vida como um sonho cheia de ilusões.

O fato que mais adiante na narrativa o guarda e servo com pena do príncipe fala a ele a verdade, que ele de fato é príncipe, com ajuda do servo sai da torre, retoma seu posto de príncipe, e então percebe que com ajuda da guarda real poderia destronar o rei, no entanto ele volta atrás na ideia e decide não destronar o rei, diz a guarda: vamos deixar como estar e não vamos ferir as ordens políticas estabelecidas, em seguida ele decide levar a julgamento os guardas que queriam destronar o rei, e agiram contra o seu rei.

Segismundo o príncipe, adotando o princípio da realidade, e não apenas guiando-se pelo princípio do prazer e vingança, restabelece o equilíbrio (“Porque espero obter outras grandes vitórias, vou alcançar a mais custosa hoje: vencer-me a mim próprio”): reconcilia-se com o pai, casa Astolfo com Rosaura (e Clotaldo revela ser o pai dela) e ele pede a mão de Estrela.

Claramente o texto trata do respeito das ordens estabelecidas, fala de uma legitima revolta do povo contra o rei que poderia se tornar num tirano, a obra foi feita para as classes populares.

A peça é uma metáfora para reflexão do que se faz: “se vivemos a realidade ou sonho”

O autor busca no mundo diversos personagens, busca nas classes sociais, gênero, (Rei, Formosura, Discrição, Lavrador, Rico, Pobre, Criança, Mulher, Lei) participes para entrarem e saírem de cena da vida. Quando o papel de cada um na vida “acaba”, todos se igualam, para espanto do Rei. Assim, na metáfora do “grande teatro do mundo”, isto é, o rebaixamento da condição humana, seja rei ou plebeu, no final inexorável e natural da vida, todos se igualam pelo destino comum: a morte.

Personagens da peça:

BASÍLIO, Rei da Polônia

SEGISMUNDO, Príncipe

ASTOLFO, Duque de Moscou

CLOTALDO, Velho

CLARIM, gracioso (criado de Rosaura)

ESTRELA, Infanta

ROSAURA, Dama

Além de soldados, guardas, músicos, comitivas, criados e damas.

Cenário: Cenas na corte da Polônia, numa fortaleza pouco distante, e no campo.

Trechos da peça:

"Ai de mim, ai, pobre de mim! Aqui estou, ó Deus, para entender que crime cometi contra Vós.

Mas, se nasci, eu já entendo o crime que cometi.

Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor, porque o crime maior do homem é ter nascido.

Para apurar meus cuidados, só queria saber que outros crimes cometi contra Vós além do crime de nascer. Não nasceram outros também? Pois, se os outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei? Nasce uma ave e, embelezada por seus ricos enfeites, não passa de flor de plumas, ramalhete alado quando veloz cortando salões aéreos, recusa piedade ao ninho que abandona em paz. E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade? Nasce uma fera e, com a pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas.

Logo, atrevida e feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade, monstro de seu labirinto.

E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?

Nasce um peixe, aborto de ovas e Iodo e, feito um barco de escamas sobre as ondas, ele gira, gira por toda parte, exibindo a imensa habilidade que lhe dá um coração frio.

E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?

Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente e de repente, entre flores se esconde onde músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto sua fuga. E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?

Assim, assim chegando a esta paixão, um vulcão qual o Etna quisera arrancar do peito, pedaços do coração.

Que lei, justiça ou razão pôde recusar aos homens privilégio tão suave, exceção tão única que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera e a uma ave?"

 

… o viver só é sonhar;

e a experiência me ensina

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.

Sonha o rei que é rei, e vive

com este engano mandando,

dispondo e governando…

Sonha o rico com a sua riqueza,

que mais cuidados lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e sua pobreza…

e neste mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

mesmo que ninguém entenda…

O que é a vida? Um delírio.

O que é a vida? Uma ficção,

uma sombra, uma ilusão,

e o maior bem é pequeno;

que toda a vida é sonho,

e os sonhos, sonhos são.

 

Neste período de pandemia, período de afastamentos, distanciamentos, estamos como que vivendo numa torre, vivendo não um sonho, mas um pesadelo, viver o sonho será o dia seguinte da libertação deste pesadelo, quando entraremos no sonho de retornarmos a nossa convivência, não será a moda antiga, será de uma forma responsável e madura, o susto pregado na humanidade mostrou-nos que não sairemos, pois a práxis humana neste período se alterará completamente, neste momento em que estamos chegando ao final deste período de confinamentos estamos fazendo um questionamento geral ao que estava estabelecido pré-pandemia. Pode-se ficar cético, cínico, indiferente, mais dogmático, mas não ficaremos imunes, ao que se passou neste período, obrigatoriamente sairemos diferentes daqueles a priori.

No filme brasileiro “Tempos de Paz”, estrelado por Dan Stulbach, Tony Ramos e Daniel Filho. Fazem um show de interpretação traz o monologo de Segismundo: https://youtu.be/zkFF9VltBOc

Fonte:

Barca, Calderon de la. A vida é sonho. São Paulo-SP.  Ed. Hedra- 2008


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Os problemas de Arthur Schopenhauer

Pobre Arthur Schopenhauer (1788-1860) filósofo alemão. Por mais que se esforce, ele não consegue se interessar realmente pelos costumeiros “problemas de filosofia”. A única coisa que ele consegue pensar é sexo. Por isso, ele tenta integrá-lo à sua filosofia. “Os órgãos sexuais são o foco da vontade”, rabisca ele no seu pergaminho, e acrescenta, um tanto acidentalmente, que o amor é simplesmente “a expressão da necessidade da espécie de se reproduzir”. E reflui assim que a função genética é cumprida.

Será que isso pode ser verdade?

Arthur observa isso e vê que é bom assim. Todavia, ele acha que ainda não abrange toda a sensibilidade e a sutileza do seu próprio caso e, então, modifica ligeiramente a sua teoria, a fim de permitir a pessoas como ele mesmo, Platão e todos os budistas, que sigam um caminho alternativo, em que seja possível transcender aquela ideia e simplesmente contemplar a realidade, sem empenho e sem sofrimento. “Companhia”, escreve ele, “é um fogo para que nos aqueçamos a distância”.

Uma vida de contemplação solitária é realmente melhor do que a companhia social – até mesmo o amor?

Vamos as respostas aos problemas de Arthur:

Esses dois problemas não são decorosos, e normalmente não são discutidos, claro. Filósofos não gostam de sexo. Afinal de contas, o sexo altamente irracional. Platão (em A Republica, Livro III, 403) fez Sócrates até perguntar a seu amigo Glauco, no seu costumeiro estilo retórico, se “amor tem algo a ver com frenesi ou qualquer forma de excesso”. A resposta de Glauco é, obrigatoriamente: “certamente não”, mas Sócrates, muito inusitadamente, continua a esmiuçar o assunto.

SÓCRATES: O amor verdadeiro não pode ter nenhum contato com esse prazer sexual, e pessoas que se amam, e cujo amor é verdadeiro, não devem ser indulgentes com tal prazer.

GLAUCO: Certamente não devem, Sócrates.

SÓCRATES: Por isso, suponho que tu hás de criar leis, para o Estado que estamos planejando, que permitam a quem ama estar na companhia de um amigo, beijá-lo e tocá-lo, se ele o permitir, como um pai faz com seu filho, e se seus motivos forem bons. Mas deves exigir que sua convivência com qualquer pessoa amiga nunca deixe surgir a menor suspeita de qualquer coisa além disso; senão, ele será considerado um homem de mau gosto e sem educação.

GLAUCO: É assim que deverei legislar.

Mas Arthur Schopenhauer, que realmente existiu, e realmente se chamava Arthur (um nome útil, até cosmopolita, para uma carreira no mundo dos negócios europeus), certamente tem razão. O impulso reprodutivo, seja simplesmente o sexual, seja o mais respeitável procriativo, é tão forte que se torna fundamental, e realmente os filósofos estarão sendo um pouco evasivos se continuarem a discutir a natureza da vida humana sem qualquer referência a ele. Platão valorizou pelo menos uma espécie de amor filial, o amor desde então sempre chamado de “platônico”. Infelizmente, a Igreja cristã ensinou uma versão bastante extremista dessa doutrina, durante a maioria dos séculos entre Sócrates e Schopenhauer, culminando nas atitudes mais bizarras e mais hipócritas com relação ao sexo (esse aspecto foi bem esclarecido pelo filósofo francês contemporâneo Michel Foucault).

Poderíamos dizer que Scopenhauer refletia simplesmente duas experiências infelizes. A primeira foi a de ter sido mandado para o internato em Winbledon, e a outra a de ter dado a sua primeira aula de filosofia na mesma hora que p célebre colega, o professor Hegel. Quase ninguém foi para a palestra de Schopenhauer, e ele ficou tão amargamente ressentido com isso que jurou não dar nunca mais uma aula pública. Portanto, pode ter sido somente uma questão de “uvas verdes”. Contudo, também de uvas verdes faz-se vinagre.

Schopenhauer era um cara pessimista. Pessimista porque no homem, a Vontade é o fundamento do querer viver, do sentimento de posse, do dominar, do afirmar-se: “A vida humana, pois, passa-se toda em querer e em adquirir”, então, se a base de tudo é a Vontade, a vida em si não possui um significado, uma finalidade, e a humanidade não se encaminha em um progresso contínuo, ele ainda entende que o homem não é um ser unificado e racional, que age conforme os interesses, mas um ser fragmentado e passional, que age influenciado por forças que fogem de seu controle, o sexo estaria dentre estar forças que na maioria das vezes fogem de seu controle, o homem possui um corpo com impulsos inconscientes, sendo o principal deles o impulso sexual.

Este é o foco da coisa-em-si do mundo, a Vontade, ímpeto cego desejante que jamais encontra uma satisfação final, logo corpo e sexualidade, assim, têm funções cruciais no pensamento schopenhauereano, no sentido de justificar a sua pretensão de uma metafísica imanente, que enraíza o investigador no mundo por meio das vicissitudes de sua sensibilidade e sentimento, dos quais emerge um tipo de conhecimento acerca do núcleo dos corpos do mundo em analogia com o corpo do investigador, que revela, no núcleo de sua subjetividade, aquilo denominado pelo termo vontade. Ora, nesse horizonte do corpo e da sexualidade como foco da coisa-em-si do mundo, entra em cena o amor.

As reflexões de Schopenhauer sobre o amor entre os sexos, sobre o impulso sexual, levam-no a colocar este como o primeiro motor da ação humana. O fim privilegiado do amor é a cópula. Quando esta não é consumada, há os seus desvios, as suas sublimações. No fundo, é o amor sexual que move a humanidade. Mesmo porque, ele é o “foco” da coisa-em-si, a Vontade. Com isso, o autor abre um horizonte de reflexão que aponta para o irracional como definidor das criaturas (humanas e animais), invertendo, assim, a tradição filosófica, que colocava na razão o princípio do mundo.

Schopenhauer aplica essa inversão de sua obra magna à teoria do amor, pois é exatamente a Vontade como coisa-em-si, “ímpeto cego” do organismo, que é aqui ativa. Ela exige ser obedecida, todo-poderosa que é, e o indivíduo apenas representa a sua natureza que quer viver, porém na espécie, e nesse sentido não chora a morte do indivíduo. Dessa perspectiva explicam-se as mortes de amor, os suicídios relacionados a tal sentimento, as brigas e duelos no mundo humano e animal, pois a espécie tem de triunfar e o indivíduo é um instrumento para a perpetuação dela. Espécie na qual ele, indiretamente, sobrevive.

Outra reflexão que pode ser feita é que o amor, no fundo, quando surge na consciência filosofante e o filósofo medita sobre ele, insere-se na compaixão. O amor move o indivíduo a unir-se com outro porque, como vimos, quer suprir as carências deste, daí a escolhas inconscientes relativas que complementam e equilibram, corrigem as escolhas absolutas. Ou seja, tem-aí um frágil equilíbrio entre espécie e indivíduo, do contrário este não realizaria os desígnios daquela.

O sexo é afirmação da vida, que é essencialmente sofrimento psicológico, mesmo ligado ao prazer, e o sofrimento no qual está falando não está se referindo ao sadismo, é um paradoxo de dicotomia, pois o sexo fica entre o prazer e o sofrimento. Este pessimista metafísico que é Schopenhauer, que não foi nenhum santo em termos de sexo, e teve lá as suas amantes, concluirá que felizes não são os que afirmam a Vontade, mas os que a negam, a começar pelo corpo nas imolações. Daí a imagem dos ascetas felizes, apesar da aparência contrária. Portanto, a filosofia do amor de Schopenhauer aponta que o culto a ele em moldes românticos é coisa de pessoas fracas, que sucumbem à espécie. Forte é o santo, que nega o sexo e seu resultado final, uma nova vida sofredora, retirando-se da existência, retirando-se do teatro do sofrimento da afirmação do querer. A satisfação do amor é paga com a dívida de uma possível criança que, sintomaticamente, nascerá chorando, e que assim assume a dívida dos seus criminosos, os pais. Daí o filósofo citar o poeta Calderon de la Barca: “o maior crime do homem é ter nascido”. A morte se encarrega de liquidar esta dívida, e de punir impiedosamente os criminosos, e é onde todos se igualam sejam reis ou plebeus, é na morte seu destino comum.

Fontes:

Cohen, Martin. 101 problemas de filosofia. Ed. Loyola. São Paulo-SP, 2005

SCHOPENHAUER, A. Metafísica do amor, metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Artigos

Barboza, Jair. Teoria do amor sexual: uma reflexão em torno de Platão, Schopenhauer e Freud disponível em file:///C:/Users/ADAORO~1/AppData/Local/Temp/1162-1879-1-SM-1.pdf