Outro dia, peguei-me assistindo a uma discussão acalorada de dois senhores que divergiam sobre política, e a conversa se desenrolava como um duelo medieval. Cada um empunhava suas certezas como espadas, defendendo suas posições com a convicção de que o outro era simplesmente... o mal. Não havia nuances, não havia meio-termo. A cena me fez refletir: por que temos tanta facilidade em dividir o mundo entre bons e maus, certos e errados, luz e trevas?
Essa
tendência tem nome e história: maniqueísmo. Originado do pensamento de Mani,
profeta persa do século III, o maniqueísmo era uma doutrina religiosa que
enxergava a realidade como um campo de batalha entre duas forças opostas e
irreconciliáveis: o Bem absoluto e o Mal absoluto. Embora a religião tenha
desaparecido, sua lógica simplista sobreviveu e se espalhou por nossas relações
sociais, políticas e morais.
O
Conforto da Dualidade
O
maniqueísmo nos seduz porque simplifica o mundo. Em tempos de crise, ele
oferece explicações fáceis: se algo deu errado, deve haver um vilão. Se estamos
do lado certo, o outro lado só pode estar errado. É um pensamento binário que
nos poupa do desconforto da complexidade. Basta olhar para os debates
contemporâneos – sejam sobre ideologia, comportamento ou futebol – e vemos essa
mentalidade em ação.
Mas
o mundo real não opera dessa forma. Pensemos na ética: alguém pode agir de
maneira moralmente correta por razões egoístas, assim como um ato eticamente
duvidoso pode ser motivado por boas intenções. O filósofo Isaiah Berlin,
crítico do pensamento dogmático, advertia contra os perigos de sistemas que
eliminam a pluralidade e impõem dicotomias rígidas. Para ele, a vida humana é
um terreno de valores conflitantes, onde muitas vezes não há soluções
absolutas, mas sim escolhas trágicas.
As
Armadilhas do Pensamento Binário
O
maniqueísmo tem um preço alto. Ele empobrece o debate, pois transforma
argumentos em slogans e pessoas em caricaturas. Nas redes sociais, isso é
evidente: a complexidade de um tema é reduzida a frases de efeito, e qualquer
tentativa de ponderação é interpretada como fraqueza ou conivência com o
"inimigo".
Além
disso, ele desumaniza. Quando enxergamos alguém apenas como a personificação do
erro ou do mal, deixamos de vê-lo como um ser humano com história, contradições
e experiências. É por isso que Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf
Eichmann, alertava para o perigo de reduzir o mal a uma entidade mística, em
vez de compreender sua banalidade. O mal, muitas vezes, não está em um
arquétipo satânico, mas nas pequenas decisões burocráticas que desumanizam o
outro.
Além
do Preto e Branco
Se
quisermos escapar do maniqueísmo, precisamos exercitar a arte da ambiguidade e
da dúvida. Isso não significa relativizar tudo, mas reconhecer que a verdade
raramente se encontra em um extremo absoluto. Nem sempre há um vilão claro. Nem
todo conflito tem uma solução simples. Como dizia Montaigne, "a mais
universal qualidade é a diversidade".
No
fundo, o mundo não é um tabuleiro de xadrez, onde as peças são pretas ou
brancas. Ele se parece mais com uma aquarela, onde as cores se misturam de
formas inesperadas. E talvez seja nessa mistura que resida a verdadeira
sabedoria.