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segunda-feira, 28 de julho de 2025

Posições Sociais


Entre o Lugar Que Ocupamos e o Espaço Que Inventamos


A gente nem sempre escolhe onde nasce, com quem vai dividir a mesa de café, nem o tamanho do quarto onde dorme. Mas, com o tempo, começamos a perceber que cada detalhe disso tudo — o sobrenome, o bairro, a profissão dos pais, a cor da pele, até o jeito de falar — já dizia muito sobre a posição que iríamos ocupar no mundo. E, por mais que a vida seja movimento, certas posições parecem ser feitas de cimento.

Este ensaio propõe pensar as posições sociais não como degraus fixos numa escada social ou papéis estagnados num teatro social, mas como zonas de tensão entre o dado e o possível, entre o que herdamos e o que ousamos transformar. Partiremos de uma leitura sociológica inspirada em Bourdieu e Giddens, sem perder o fio filosófico de pensadores como Sartre, Simone de Beauvoir e Achille Mbembe, para então propor um olhar inovador: as posições sociais como ficções performativas que podem ser desmontadas e reinventadas.

 

A armadilha do lugar natural

A sociedade adora nos convencer de que cada um está onde deveria estar. Que a faxineira “tem cara de faxineira”, que o médico branco de voz firme nasceu pra comandar, que a favela é inevitável, que o sucesso tem cheiro de mérito. Pierre Bourdieu chamou isso de habitus: um conjunto de disposições aprendidas que fazem com que o mundo social pareça natural, quando na verdade ele é o resultado de lutas e convenções.

Essa naturalização das posições sociais é um modo sutil (e eficaz) de conservar as hierarquias. Os corpos negros, femininos, periféricos, dissidentes, são convidados a acreditar que não têm “perfil” para certos espaços. As posições sociais não são apenas localizações neutras, mas marcos simbólicos que definem onde se pode falar, amar, trabalhar e até sonhar.

 

A posição como performance

Mas e se, como diria Judith Butler, a posição fosse uma performance? Se aquilo que parecemos ser — o advogado sério, a dona de casa invisível, o “bandido” sem futuro — fosse menos essência e mais repetição? A ideia de performatividade rompe com a fixidez da posição social. Em vez de pensá-la como um ponto fixo, poderíamos vê-la como um movimento coreografado socialmente, mas com margem para improviso.

Quando uma mulher negra ocupa a tribuna do Senado, quando um jovem periférico ensina literatura clássica, quando um homem trans vira obstetra — a posição social é rasgada e costurada de novo. Esses gestos não anulam o peso da estrutura, mas mostram que ela pode ser contestada por dentro.

 

Invenção e deslocamento

Anthony Giddens propôs que a vida social é um fluxo contínuo de reflexividade. As posições não são eternas porque os sujeitos são capazes de refletir sobre o lugar onde estão e projetar deslocamentos. Não se trata de “subir na vida” no sentido capitalista, mas de redesenhar os contornos do possível.

Nesse sentido, as posições sociais também podem ser vistas como zonas provisórias de identidade. O que somos agora — professor, empregada, estudante, desempregado — não precisa ser o que seremos, e nem resume o que somos. Como dizia Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher” — e o mesmo vale para todas as outras construções sociais.

 

Para além da escada

Num mundo que insiste em nos colocar em escadas — onde o alto vale mais que o baixo — talvez seja hora de propor outra imagem: a do campo múltiplo, onde as posições sociais são interdependentes e mutáveis. Onde a dignidade não vem de subir, mas de existir com liberdade e reconhecimento, em qualquer lugar.

Essa nova ética não ignora as injustiças, mas propõe um horizonte onde posição social não signifique destino. Onde o carteiro possa ser poeta, onde a diarista possa ensinar sociologia, onde o menino da quebrada possa ser filósofo — não apesar de onde veio, mas também por causa disso.

 

O desafio contemporâneo é, então, olhar para as posições sociais como construções políticas e poéticas. Como espaços simbólicos que podem ser tensionados, desviados, reinventados. Talvez não tenhamos nascido no lugar ideal. Mas entre o lugar que nos foi dado e o espaço que podemos inventar, cabe o mundo inteiro.


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Concepção Performativa

Não sei se você já parou para pensar sobre como algumas palavras têm o poder de mudar a vida. Talvez tenha sido em um momento crucial, como ao ouvir um “eu te amo” pela primeira vez ou ao dizer “sim” diante de uma proposta de casamento. São palavras que não só expressam sentimentos ou intenções, mas que, de fato, criam uma nova realidade.

Imagine uma situação do dia a dia: você está em uma reunião de trabalho e alguém, de repente, diz: “A reunião está encerrada”. Naquele instante, a reunião, que até então estava em andamento, deixa de existir. A simples declaração não descreve apenas o término do encontro, mas o realiza. É como se as palavras tivessem o poder mágico de transformar a situação de forma quase instantânea.

Esse fenômeno é o que chamamos de concepção performativa, um conceito introduzido pelo filósofo J.L. Austin. Ele argumentava que algumas palavras não apenas dizem algo sobre o mundo, mas fazem algo no mundo. Em termos simples, são palavras que não apenas informam, mas transformam.

De acordo com Austin, algumas declarações são "performativas", o que significa que, ao serem ditas, realizam uma ação. Por exemplo, ao dizer "Eu te batizo..." ou "Declaro vocês marido e mulher", o ato de fala em si realiza a ação de batismo ou casamento. Essas palavras não descrevem apenas um estado de coisas, mas efetivamente criam uma nova realidade.

Esse conceito se expandiu para além da filosofia da linguagem e foi incorporado em áreas como a teoria de gênero e estudos culturais. Por exemplo, Judith Butler utiliza a noção de performatividade para argumentar que gênero não é uma identidade fixa, mas algo que é continuamente construído e reafirmado através de atos performativos repetidos. A concepção performativa sublinha o poder das palavras e ações na constituição da realidade, mostrando como o que dizemos e fazemos pode moldar nossas identidades, relações e o mundo ao nosso redor.

Outro exemplo cotidiano está nos rituais que seguimos sem sequer pensar duas vezes. Pense em um jogo de futebol: o árbitro levanta o braço, apita, e o jogo começa. Ou no contexto de um tribunal, quando o juiz declara alguém culpado ou inocente. Essas palavras e gestos não são apenas simbólicos; eles têm consequências reais e imediatas.

E não para por aí. Nas redes sociais, um simples “curtir” pode transformar o dia de alguém. Uma postagem que viraliza tem o poder de mudar a percepção pública sobre um assunto, criar movimentos, ou até mesmo lançar uma carreira. O ato de "curtir" ou "compartilhar" não é apenas um reflexo do que pensamos ou sentimos, mas contribui para moldar a realidade digital e, por extensão, o mundo físico.

Mas a concepção performativa não se limita apenas a momentos formais ou rituais. Ela está presente nas pequenas interações diárias. Quando você diz “bom dia” a alguém, isso pode mudar o humor da pessoa, transformar a dinâmica da interação, ou até mesmo iniciar uma amizade. Ou, em outro exemplo, pense em quando você se apresenta a alguém novo, dizendo seu nome. A simples apresentação não só informa quem você é, mas também estabelece uma relação, mesmo que breve.

Judith Butler, uma filósofa contemporânea, levou essa ideia adiante ao discutir como o gênero é performado, ou seja, como nossas identidades de gênero são construídas e afirmadas através de ações repetidas ao longo do tempo. Nossas roupas, gestos, e até a forma como falamos contribuem para essa performance constante de quem somos.

Então, quando você se encontrar em uma situação onde as palavras são importantes — seja em um compromisso, no trabalho, ou em uma conversa casual —, lembre-se de que o que você diz pode estar criando uma nova realidade. E que talvez, por trás de cada “sim” ou “não”, existe um poder performativo que vai muito além do que imaginamos.

Sugestão de Leitura:

Marcondes, Danilo. Textos Básicos de Linguagem: de Platão a Foucault.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.