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domingo, 23 de março de 2025

Palavras que Pensam

Sabe aquela discussão de bar sobre o que realmente significa "liberdade"? Alguém diz que é poder fazer o que quiser, outro rebate que não é bem assim, porque vivemos em sociedade e, bem, regras existem. E então o debate desanda, e cada um continua acreditando na própria definição como se fosse a única possível. O que acontece aí? Um clássico problema da semântica: palavras são janelas para conceitos, mas essas janelas nunca são totalmente transparentes.

A semântica, dentro da filosofia, estuda como atribuímos significados às palavras e como esses significados se relacionam com a realidade. A questão central é: as palavras refletem a realidade ou apenas impõem uma estrutura artificial ao mundo? Wittgenstein, em sua fase tardia, diria que os significados não são fixos, mas dependem dos usos na linguagem cotidiana. Já Frege buscava uma precisão lógica, separando sentido e referência.

Se o significado depende do uso, então o que dizer de conceitos como "justiça", "verdade" ou "felicidade"? São conceitos que parecem universais, mas mudam conforme a cultura, o tempo e a intenção de quem fala. Quando Platão tentou definir "justiça" em "A República", ele precisou construir uma cidade ideal para ilustrar seu ponto. E aí está o dilema da semântica filosófica: definir é sempre interpretar.

E quando a interpretação se torna uma arma? Termos são ressignificados o tempo todo para manipular percepções. Orwell já alertava para isso em "1984", quando o "Ministério da Verdade" era responsável por reescrever a história. No mundo real, palavras como "progresso" e "ordem" podem significar liberdade ou controle, dependendo de quem fala.

Talvez a semântica não seja só um estudo de significados, mas um estudo sobre como pensamos e moldamos a realidade. Se a linguagem é a casa do ser, como dizia Heidegger, então a semântica é a arquitetura dessa casa. O que nos resta é escolher bem as palavras e, principalmente, escutar o que está por trás delas.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Massa de Quimera

A ideia de "massa de quimera" evoca uma imagem poderosa: algo moldável, imaginativo, mas que também se dissolve facilmente ao toque da realidade. Como um mito da Grécia Antiga, a quimera é um ser híbrido e impossível, uma junção de partes que não deveriam coexistir. A quimera é um ser híbrido com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente ou dragão, que tem a capacidade de lançar fogo pelas narinas. A palavra vem do grego khímaira,as e significa "monstro extraordinário". 

Transportando essa metáfora para o campo filosófico, podemos refletir sobre como lidamos com nossos sonhos, criações e aspirações que, muitas vezes, parecem igualmente híbridas e inalcançáveis.

O Sonho Como Construção

Desde a infância, somos mestres em criar quimeras internas. Montamos nossos desejos como escultores de barro, com pedaços de histórias, influências culturais e sentimentos. A "massa de quimera" simboliza essa capacidade de imaginar o impossível, de projetar mundos que desafiam a lógica. Mas, como Platão já sugeriu em seu "Mito da Caverna", nem tudo que imaginamos é real, e as sombras que criamos podem ser enganosas.

Por outro lado, a imaginação também é um motor criativo. Sem ela, não haveria avanços na ciência, na arte ou mesmo no cotidiano. Construímos "massas de quimera" para depois tentar dar-lhes forma mais sólida, algo que toque a realidade e se torne significativo.

A Fragilidade do Irreal

Se tudo o que moldamos é feito de uma massa maleável e indefinida, surge a questão: até onde podemos confiar em nossas criações? O filósofo brasileiro Vilém Flusser, ao refletir sobre as imagens técnicas, alerta para o perigo de confundirmos o símbolo com o real. Para Flusser, a tecnologia e a cultura contemporânea criaram uma realidade cada vez mais "quimérica", onde a ficção muitas vezes suplanta a verdade.

Da mesma forma, no nível individual, há sonhos que, quando confrontados com a realidade, desmoronam como castelos de areia. É um lembrete de que nem todas as quimeras são destinadas a sobreviver fora do mundo da imaginação.

A Utilidade do Impossível

Porém, seria um erro descartar a "massa de quimera" como inútil. Se os sonhos são frágeis, também são transformadores. Simone Weil, filósofa francesa, certa vez disse que "o impossível é o único caminho para o possível." A construção de sonhos aparentemente inalcançáveis é o que nos impulsiona a transcender nossos próprios limites.

A massa de quimera, mesmo sendo instável, nos obriga a experimentar, a esculpir e a refazer incessantemente. É uma metáfora para o processo humano de tentativa e erro, para a criação de sentido em um mundo frequentemente caótico.

No Cotidiano: Nossas Pequenas Quimeras

No dia a dia, as quimeras se manifestam em situações triviais. Planejamos uma viagem que nunca acontece, idealizamos relações que não correspondem à realidade, ou até imaginamos versões melhores de nós mesmos que, por vezes, nos escapam. A quimera é tanto uma aspiração quanto uma frustração.

Mas essas pequenas quimeras não são inúteis. Elas dão cor à vida, servindo como faróis que iluminam caminhos, mesmo que nunca os sigamos por completo. Elas nos fazem sonhar, e sonhar é o primeiro passo para criar.

O Equilíbrio Entre Realidade e Ilusão

A "massa de quimera" nos ensina que a vida é feita de paradoxos. Precisamos do impossível para dar sentido ao possível, da imaginação para alimentar a realidade. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer a fragilidade de nossas criações, para não nos perdermos nelas.

Assim como o escultor que trabalha com argila, moldamos nossas quimeras sabendo que nem todas resistirão ao tempo. Mas, ao final, o que importa não é apenas o produto final, mas o ato de moldar, de criar e de sonhar. Afinal, como já dizia Fernando Pessoa, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce." A massa de quimera, por mais efêmera que seja, é parte essencial dessa jornada.


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Concepção Performativa

Não sei se você já parou para pensar sobre como algumas palavras têm o poder de mudar a vida. Talvez tenha sido em um momento crucial, como ao ouvir um “eu te amo” pela primeira vez ou ao dizer “sim” diante de uma proposta de casamento. São palavras que não só expressam sentimentos ou intenções, mas que, de fato, criam uma nova realidade.

Imagine uma situação do dia a dia: você está em uma reunião de trabalho e alguém, de repente, diz: “A reunião está encerrada”. Naquele instante, a reunião, que até então estava em andamento, deixa de existir. A simples declaração não descreve apenas o término do encontro, mas o realiza. É como se as palavras tivessem o poder mágico de transformar a situação de forma quase instantânea.

Esse fenômeno é o que chamamos de concepção performativa, um conceito introduzido pelo filósofo J.L. Austin. Ele argumentava que algumas palavras não apenas dizem algo sobre o mundo, mas fazem algo no mundo. Em termos simples, são palavras que não apenas informam, mas transformam.

De acordo com Austin, algumas declarações são "performativas", o que significa que, ao serem ditas, realizam uma ação. Por exemplo, ao dizer "Eu te batizo..." ou "Declaro vocês marido e mulher", o ato de fala em si realiza a ação de batismo ou casamento. Essas palavras não descrevem apenas um estado de coisas, mas efetivamente criam uma nova realidade.

Esse conceito se expandiu para além da filosofia da linguagem e foi incorporado em áreas como a teoria de gênero e estudos culturais. Por exemplo, Judith Butler utiliza a noção de performatividade para argumentar que gênero não é uma identidade fixa, mas algo que é continuamente construído e reafirmado através de atos performativos repetidos. A concepção performativa sublinha o poder das palavras e ações na constituição da realidade, mostrando como o que dizemos e fazemos pode moldar nossas identidades, relações e o mundo ao nosso redor.

Outro exemplo cotidiano está nos rituais que seguimos sem sequer pensar duas vezes. Pense em um jogo de futebol: o árbitro levanta o braço, apita, e o jogo começa. Ou no contexto de um tribunal, quando o juiz declara alguém culpado ou inocente. Essas palavras e gestos não são apenas simbólicos; eles têm consequências reais e imediatas.

E não para por aí. Nas redes sociais, um simples “curtir” pode transformar o dia de alguém. Uma postagem que viraliza tem o poder de mudar a percepção pública sobre um assunto, criar movimentos, ou até mesmo lançar uma carreira. O ato de "curtir" ou "compartilhar" não é apenas um reflexo do que pensamos ou sentimos, mas contribui para moldar a realidade digital e, por extensão, o mundo físico.

Mas a concepção performativa não se limita apenas a momentos formais ou rituais. Ela está presente nas pequenas interações diárias. Quando você diz “bom dia” a alguém, isso pode mudar o humor da pessoa, transformar a dinâmica da interação, ou até mesmo iniciar uma amizade. Ou, em outro exemplo, pense em quando você se apresenta a alguém novo, dizendo seu nome. A simples apresentação não só informa quem você é, mas também estabelece uma relação, mesmo que breve.

Judith Butler, uma filósofa contemporânea, levou essa ideia adiante ao discutir como o gênero é performado, ou seja, como nossas identidades de gênero são construídas e afirmadas através de ações repetidas ao longo do tempo. Nossas roupas, gestos, e até a forma como falamos contribuem para essa performance constante de quem somos.

Então, quando você se encontrar em uma situação onde as palavras são importantes — seja em um compromisso, no trabalho, ou em uma conversa casual —, lembre-se de que o que você diz pode estar criando uma nova realidade. E que talvez, por trás de cada “sim” ou “não”, existe um poder performativo que vai muito além do que imaginamos.

Sugestão de Leitura:

Marcondes, Danilo. Textos Básicos de Linguagem: de Platão a Foucault.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.