Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Rodhen. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rodhen. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Caminho para Despertar

Às vezes a gente acha que o tal “despertar” é coisa de monge tibetano ou de guru indiano cercado de incenso e mantras complicados. Parece distante da nossa vida real — essa que tem boleto para pagar, fila no mercado e mensagens não lidas no celular. Mas e se o despertar não fosse um evento místico reservado a poucos? E se ele pudesse acontecer numa segunda-feira comum, enquanto você espera o café ficar pronto ou atravessa a rua distraído? Talvez o caminho para o despertar seja bem mais simples — e mais perto — do que imaginamos.

Talvez o maior engano sobre o despertar seja pensá-lo como um destino — uma linha no horizonte onde finalmente descansaremos, completos, invulneráveis. Mas o despertar, como todo evento real da alma, não é um lugar onde se chega. É um modo de estar no caminho.

Quando criança, lembro de ver minha avó rezando de madrugada, em silêncio, enquanto esperava a água aquecer para passar o café. Ela não meditava como os monges do Oriente, nem lia livros de sabedoria. Mas ali, no vapor da chaleira, havia um instante de despertar. Ela sabia, sem saber que sabia, que a vida acontece entre o antes e o depois — no exato ponto onde se ouve a água borbulhar. Lembro também de minha mãe repetindo os passos da sabedoria, hoje, mais velho me sento feliz de ter nascido num ambiente de despertos e consciente sigo a caminhada.

Esse é o segredo que o mundo moderno ignora: que o despertar não é uma coisa separada da vida comum. Ele se insinua na conversa distraída do elevador, no olhar demorado para o céu antes de um compromisso, no suspiro de cansaço que nos revela o limite. Quando paramos para sentir o próprio cansaço, já estamos despertando.

Um amigo me contou que o maior momento de clareza que teve não foi num retiro na montanha, acreditem, foi numa fila, enquanto esperava ansioso ser atendido. De repente, percebeu o ridículo da própria pressa, o desperdício da ansiedade. Riu sozinho. E ali — no lugar mais banal — aconteceu um relâmpago de lucidez. Por um instante, ele estava de verdade.

A tradição zen budista gosta dessas pequenas epifanias sem glamour. Conta-se a história do monge que pediu ao mestre a receita do despertar. O mestre respondeu: "Quando come, coma; quando anda, ande; quando dorme, durma." Parece tolice. Mas quem de nós come sem mexer no celular? Quem anda sem pensar no futuro? Quem dorme sem remorso do passado?

O pensador brasileiro Huberto Rohden dizia que o despertar é acordar para a unidade de tudo — ver que eu e o mundo não somos dois, mas um só movimento. Ele usava a imagem do oceano: cada onda pensa ser separada, mas todas pertencem ao mesmo mar. No instante do despertar, percebemos que não somos ondas isoladas, mas o próprio oceano, vivo em cada forma.

No entanto, o ego resiste. Ele quer que o despertar seja uma medalha, um título, uma superioridade sobre os outros. Ele transforma o caminho em competição espiritual. Por isso os verdadeiros despertos parecem humildes, quase invisíveis. Como dizia Sri Ram, eles não possuem a sabedoria: são possuídos por ela, sem esforço.

É curioso como os momentos mais sinceros de despertar costumam ser involuntários. Uma lágrima solta sem aviso, um cheiro da infância que escapa no ar, um toque inesperado que nos faz voltar ao corpo. O gato que deita aos nossos pés, sem pedir nada. A criança que nos olha como se fôssemos transparentes. São mestres silenciosos que nos chamam ao presente.

O perigo maior talvez seja espiritualizar o despertar demais — torná-lo inalcançável. O trabalhador que acorda cedo para pegar dois ônibus e sustentar a família também desperta, quando ama sem esperar retorno, quando sorri apesar do peso do dia. O poeta sufocado na repartição desperta ao escrever um verso no guardanapo. O pedreiro desperta ao ver o muro pronto, reto e firme, fruto de suas mãos.

Há uma velha parábola sufista que diz:

"Um discípulo perguntou ao mestre: ‘Quanto tempo levarei para despertar?’ O mestre respondeu: ‘Talvez toda a sua vida... se buscar demais. Mas se você esquecer a busca e apenas viver, o despertar pode vir amanhã.’"

Esse é o paradoxo: o despertar não se conquista — se permite. Ele é uma flor que nasce no terreno limpo, não na terra ansiosa.

No fim das contas, o caminho para o despertar é também o caminho da aceitação da imperfeição. É perceber que a vida nunca será completamente resolvida, que o caos é parte da dança, que o vazio também respira. Despertar é olhar para si sem máscara, para o outro sem exigência, para o mundo sem defesa.

E então, sem que se espere, o instante se abre. E a alma sorri, desperta, e volta a caminhar.

Os Obstáculos no Caminho do Despertar

Se o despertar é simples como respirar, por que então é tão raro? Por que a maior parte das pessoas parece atravessar a vida sem jamais abrir os olhos interiores? A resposta talvez esteja nos próprios obstáculos que o ego coloca no caminho — muralhas sutis, disfarçadas de virtudes, que mantêm a alma adormecida.

O medo de perder o controle

O primeiro obstáculo é o medo — esse velho conhecido. Despertar é abrir mão do controle absoluto sobre a vida. E isso apavora. Afinal, quem não quer garantir um futuro seguro, uma imagem sólida, uma identidade previsível?

Na prática, o medo se manifesta de modo simples: é o desconforto em ficar em silêncio; é a impaciência no trânsito; é a necessidade de planejar cada detalhe do amanhã para não ser surpreendido. Mesmo o ato de rolar distraidamente o celular esconde o medo de estar só consigo mesmo.

O despertar exige coragem para não saber. Para permitir o mistério. Para deixar a vida surpreender.

O apego à identidade

Outro inimigo silencioso é o apego ao "eu" construído. A imagem que criamos de nós mesmos — “sou advogado”, “sou tímido”, “sou uma pessoa correta” — funciona como armadura contra o fluxo da vida. Só que armaduras pesam. E quem carrega peso não desperta.

Há quem confunda despertar com reforçar sua identidade espiritual: “sou um buscador”, “sou evoluído”, “sou diferente dos adormecidos”. Mas esse é só o ego disfarçado de santo.

Despertar é morrer um pouco — para a velha imagem de si, para a história repetida, para as certezas antigas. É permitir que o “eu” se renove a cada instante.

A vaidade do saber

Quantos buscam o despertar para serem especiais? Para serem vistos como sábios, superiores, “despertos” entre os adormecidos?

Essa vaidade sutil é um veneno. Pois enquanto o saber espiritual inflar o ego, o real não pode ser visto. A verdade é humilde. Ela se mostra só aos que não querem ser mais do que ninguém.

O teósofo N. Sri Ram advertia: “A verdadeira sabedoria não é poder pessoal, mas participação no todo. Não é superioridade, mas unidade.” O sábio de verdade é invisível — age no mundo como a água: silenciosa, necessária, sem vaidade.

O desejo de resultado

Outro obstáculo moderno é o desejo de resultado. Queremos “atingir” o despertar como se fosse um objetivo de produtividade. Queremos prazo, método, certificado.

Mas o despertar é criança selvagem: foge de quem o persegue demais. Ele acontece quando a busca relaxa, quando a mente larga as rédeas. Como o sono: quanto mais você se esforça para dormir, mais insone fica.

Krishnamurti dizia: “Não busque a verdade; apenas veja o que é falso e abandone. O resto virá sozinho.”

O despertar não é conquista; é rendição.

Um exemplo do cotidiano

Outro dia, vi uma cena que resume tudo isso. Um senhor varria a calçada com lentidão. A rua cheia de jovens correndo, carros acelerando, gente apressada com seus fones de ouvido. E ele ali — varrendo com prazer. Sem pressa. De vez em quando parava, olhava o céu, ajeitava o boné. Não ensinava nada, não discursava — mas estava desperto. A vida, para ele, não precisava de mais nada.

Quantos seriam capazes de varrer assim? Sem desejar o fim da tarefa? Sem irritação pelo tempo "perdido"? Sem plano de fuga para o celular ou a fantasia mental?

Esse senhor era mestre sem querer. Este senhor sexagenário sou eu.

Os obstáculos do despertar não são monstros fora de nós. São hábitos mentais, confortos do ego, defesas aprendidas. Eles se dissolvem quando percebidos sem medo. Não é preciso lutar contra eles — basta vê-los com clareza. O ver, puro e sem julgamento, já começa a dissolver as muralhas.

Talvez este seja o segredo: o despertar não é um esforço heroico, mas uma simplicidade reencontrada.

O caminho está aqui, agora, sob os nossos pés.


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Ataraxia

 


Então, vamos falar sobre a arte de não se abalar com o mundo em chamas...

Outro dia, estava parado no sinal vermelho, o sol estalando na testa, uma notificação no celular dizendo “urgente” (como quase todas dizem), e uma senhora buzinando atrás de mim como se isso fizesse o semáforo mudar de ideia. Nessa pequena arena cotidiana, percebi que tudo ao meu redor parecia pedir pressa, reação, opinião, posicionamento. E eu, sinceramente, só queria um momento de silêncio. Foi aí que me veio a palavra: ataraxia.

O que é ataraxia e por que ela importa hoje?

Ataraxia é um conceito grego que significa, em sua essência, "ausência de perturbação". Uma serenidade diante do caos, uma paz interior que não depende da calmaria externa. Era buscada por escolas filosóficas como o epicurismo, o ceticismo pirrônico e o estoicismo — embora cada uma a tratasse de maneira distinta.

Mas por que falar disso em 2025, quando o mundo parece pulsar num ritmo histérico? Porque talvez nunca tenhamos precisado tanto dela. Ataraxia não é alienação, não é indiferença fria — é um centro de gravidade interno, que permite atravessar as confusões do mundo sem se dissolver nelas.

O mundo como provocação constante

Hoje vivemos uma espécie de guerra civil emocional. Redes sociais são campos de batalha onde cada frase vira uma granada. A economia, o clima, a política, tudo parece nos chamar para uma trincheira. E não é raro sentir que, se não estivermos em estado de alerta constante, seremos engolidos por tudo.

É nesse cenário que a proposta da ataraxia soa quase como um ato revolucionário. Manter-se impassível não por frieza, mas por lucidez. Não se trata de fechar os olhos, mas de abrir um outro tipo de visão — uma que não se deixa sequestrar pela agitação.

A coragem de não reagir

Viver com ataraxia exige uma forma especial de coragem: a de não reagir automaticamente. É fácil se irritar com um comentário, uma injustiça, um ruído. Difícil é examinar tudo isso sem se tornar refém das próprias reações.

O filósofo pirrônico Sexto Empírico acreditava que a suspensão do juízo — o epoché — levava à ataraxia. Ou seja, quando paramos de tentar determinar se algo é absolutamente bom ou ruim, certo ou errado, abrimos espaço para a tranquilidade. Isso soa radical, mas pense: quantas vezes o sofrimento nasce da nossa ânsia de classificar, julgar, se posicionar?

Ataraxia como gesto de escuta

Em tempos de tanto ruído, a ataraxia também pode ser entendida como uma forma de escuta. Uma escuta do mundo, de si mesmo, do outro — sem o filtro da ansiedade de responder ou vencer. Talvez seja o que faltou em tantas discussões que terminam em gritos: a serenidade de quem sabe que não precisa ganhar o debate para ter paz.

O pensador brasileiro Huberto Rohden dizia que “não há serenidade possível sem autodisciplina interior”. A ataraxia, nesse sentido, não é uma conquista externa, mas um processo de escultura da alma. E talvez ela não nos leve à indiferença, mas sim a uma forma mais sutil e profunda de engajamento com a vida.

A leveza da não urgência

Talvez a pergunta mais urgente de hoje seja: como manter a leveza quando tudo é urgência? A resposta pode estar em cultivar esse centro calmo dentro de nós — esse lugar onde as buzinas, as manchetes e os julgamentos não conseguem entrar.

Ataraxia, afinal, não é se isolar do mundo. É viver no mundo sem deixar que ele tome posse da nossa alma. E isso, no tempo em que vivemos, talvez seja a forma mais autêntica de liberdade.