O gesto de desfazer os enganos
Ver
não é apenas enxergar. É interpretar, filtrar, significar. Quando olhamos o
mundo, não vemos o mundo em si, mas a nossa versão dele: atravessada por
crenças, feridas, desejos, esperanças. O conceito de desver, então,
propõe algo radical: não é ver mais, mas ver de novo — ou melhor, ver sem os
enganos.
Desver
é desfazer as distorções. É quando nos damos conta de que aquilo que parecia
certo era apenas conveniente; que aquilo que chamávamos de amor era apego; que
o medo que chamávamos de prudência era só fuga. Desver é um ato filosófico
porque exige coragem para questionar as lentes pelas quais olhamos a realidade.
O
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty dizia que a percepção é sempre
situada, ou seja, não existe olhar puro, neutro. Nossa experiência é
encarnada, histórica, subjetiva. E, por isso mesmo, a tarefa de desver é uma
pedagogia do corpo e da mente. É desaprender para ver com mais verdade — ou com
menos ilusão.
No
cotidiano, desver pode significar perceber que o colega de trabalho que
considerávamos indiferente, na verdade, era tímido — e não rude. Ou entender
que aquele sonho antigo de ser médico não era seu, mas um desejo projetado da
família. Às vezes, desver é acordar de um casamento onde confundimos rotina com
amor. Outras vezes, é olhar para o espelho e perceber que o corpo que
rejeitamos por tanto tempo não era feio — apenas diferente do padrão.
Há
também o desver político: aquele momento em que alguém percebe que sua visão de
mundo vinha sendo moldada mais por medo do que por valores. Ou o desver
espiritual: quando percebemos que a fé que tínhamos era medo de errar, e não
confiança no mistério.
Desver
é um gesto espiritual, no sentido de que implica purificação da visão. No Bhagavad
Gita, há um trecho em que Krishna concede a Arjuna uma
“visão divina” para que ele veja a realidade como ela é, além da forma. Esse
"terceiro olho" talvez não esteja no meio da testa, mas sim na
capacidade de desfazer os enganos que criamos sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Desver
não é negar o que se viu, mas perceber que se viu através de véus. E que a
lucidez, como uma lâmina de vento, pode retirar esses véus com delicadeza — ou
com brutalidade. Às vezes, desver dói. Porque nos obriga a sair da zona de
conforto e encarar que muito do que tomamos como verdade era só conveniência,
medo ou costume.
No
fim, talvez não vejamos mais do que antes. Mas vemos melhor.